Um espaço para se ler, refletir, discutir Literatura ....
sábado, 14 de junho de 2014
Te Contei, não ? - Capítulos proibidos
Daniel Filho entrou nervoso no estúdio. Passavam poucos minutos das 10h, e aquele 27 de agosto de 1975 já havia lhe rendido uma enxaqueca. A dor de cabeça seria sua companheira durante meses. Daniel recebera de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, a missão de dar a notícia ao elenco. Quanto antes contasse, melhor.
No set de gravação, um dos poucos de que a Globo dispunha em sua apertada sede na Rua Von Martius, no Jardim Botânico, os atores que estrelariam a principal aposta da emissora nos últimos anos se aprontavam para gravar. Logo mais, quando estreasse após o “Jornal Nacional’’, “Roque Santeiro” inauguraria na faixa das oito o jeito brasileiro de fazer novela, já consagrado nas tramas das dez. Seria o primeiro folhetim em cores com sotaques, gírias e trejeitos nacionais apresentado no mais nobre dos horários da TV. Mas foi sem pensar nisso que o diretor de 37 anos tomou coragem e encarou a equipe:
“A censura proibiu a estreia de ‘Roque’. Não estou deixando a direção, mas tenho que suspender a gravação. A emissora está brigando para tentar a liberação. Vamos conseguir”.
Não conseguiram. “Roque” se tornaria a segunda de três novelas proibidas na íntegra entre 1964 e 1985, durante a mais longa ditadura brasileira. Outras centenas de obras, em maior ou menor grau, também sofreram cortes, restrições ou tiveram que passar pelo crivo dos censores para serem exibidas.
Com a censura, não fui herói. Nem fui idiota
Daniel Filho
Após um trabalho de seis meses, que envolveu o levantamento de 2.227 páginas de documentos da ditadura em Brasília e no Rio e entrevistas com autores, atores, diretores e censores, o EXTRA publica a partir de hoje uma série de reportagens sobre a censura prévia às novelas brasileiras na ditadura. Vinte e cinco anos após o fim da prática no Brasil, extinta pela Constituição de 1988, e na semana em que se completam os 50 anos do golpe de 1964, o distanciamento histórico permite que memórias, testemunhos, documentos e situações sejam analisados, confrontados e nos mostrem como funcionava essa engrenagem.
Ela era afiada.
Naquele 27 de agosto, quando Daniel Filho dividiu com o elenco o que ocorria, uma guerra vinha sendo travada havia dias entre a Globo e a ditadura. O diretor geral da emissora na época, Walter Clark, viajara na semana anterior a Brasília para negociar a liberação da novela escrita por Dias Gomes, sem sucesso.
Intrigava a todos o fato de que a censura vinha, até ali, acenando com a autorização. Quatro documentos daquele ano, enviados à TV Globo e encontrados pelo EXTRA, reconstituem passo a passo a tensão daqueles dias. Dois deles mostram que, embora soubesse do enredo crítico de “Roque”, a ditadura chegou a permitir a exibição da novela às 20h.
O primeiro, de 16 de maio, é assinado por Rogério Nunes, diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), o órgão do Ministério da Justiça encarregado de controlar as principais expressões artísticas no país. No ofício, Nunes pede os 20 capítulos iniciais, para que possa analisar com profundidade a obra, que, segundo ele, abordaria “problemas sociais da região nordestina, envolvendo diferentes classes”. O diretor admite ainda que o horário das 20h obrigaria a censura a ter “maior atenção e cuidado” com as cenas e os diálogos de “Roque”. Não se falou em proibição.
O outro documento é de 4 de julho, 54 dias antes da estreia, e autoriza a sinopse e os capítulos examinados. Ele determina apenas cortes modestos, limando uma cena de beijo e outra sequência em que um casal está deitado, insinuando uma relação sexual – algo inconcebível para a censura.
À medida que a estreia se aproximava, vinhetas na programação anunciavam “Roque” como a nova novela das oito. Mas o certificado de liberação não chegava.
No dia 20 de agosto, um terceiro ofício, estranhamente, negava a classificação para 20h e dizia que a obra trazia cenas “intoleráveis”. A emissora propôs trocar a novela de horário. “Roque” iria para as 22h, e “Gabriela”, para as 20h.
Mas um quarto documento, enviado na véspera da estreia, mostrou que “Gabriela” era considerada intragável para as 20h. As “festas comemorativas” da cafetina Maria Machadão, o “contato voluptuoso” do insaciável Mundinho Falcão, a “anomalia sexual” do homossexual Miss Pirangi, tudo afligia a censura. A troca foi proibida e o comunicado, em tom ameaçador e desta vez assinado pelo diretor da Polícia Federal, Moacyr Chaves, era duro: se exibisse “Roque”, caberia à “empresa assumir o risco de ver interrompida, a qualquer momento, a transmissão do programa”.
Ao ver este último ofício, o jornalista Roberto Marinho encomendou à direção de jornalismo da emissora um editorial, para ser lido por Cid Moreira no “Jornal Nacional”, cujo conteúdo denunciasse a censura. O plano só seria colocado em prática caso a operação para exibir “Roque” fracassasse.
Seria um desastre perder 30 capítulos prontos e seis em produção, fruto de 500 horas de gravação, além de 15 já escritos. Um investimento de 500 mil cruzeiros – o equivalente a R$ 980 mil em dinheiro atual. Até uma Asa Branca cenográfica fora erguida em Barra de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio.
Lima Duarte, que interpretaria Sinhozinho Malta, já estava em sua casa, no Rio, quando o “JN” começou. Em seu apartamento, Betty Faria, a Porcina, dividia-se entre ver o telejornal e os cuidados com João Daniel, seu filho com Daniel Filho. O marido estava com Dias Gomes, Boni e outros diretores da Globo na sala de Clark.
Havia censura desde sempre. Sabíamos lidar
Lima Duarte
Eles e outros milhões de brasileiros ouviram, no último bloco do “JN”, a voz grave de Cid ler o texto de 128 palavras, em quase dois minutos. Dizia que a censura prejudicava a elevação da qualidade da TV. Em seguida, foi exibida a vinheta de abertura preparada para “Roque”, como se a emissora fosse desobedecer a ditadura e lançar a novela. Mas Cid Moreira voltou e leu de novo o texto. Pela primeira vez, o arbítrio censor era exposto em rede nacional. Mas isso não amenizava as frustrações de Boni e Daniel. Enquanto subiam os créditos do telejornal, o superintendente de programação da TV Globo e seu principal diretor de novelas se abraçaram. Choraram.
O dia seguinte à leitura do editorial por Cid Moreira foi de trabalho. A emissora decidira produzir outra novela com o mesmo elenco. Boni e Daniel convocaram Janete Clair. Seu marido, Dias Gomes, estava destroçado com a censura a “Roque”. Três meses depois, estreava “Pecado capital”, assinada por Janete e dirigida por Daniel.
Lima deixou o Sinhozinho Malta e se tornou o empresário Salviano Lisboa. Em vez de Roque, Francisco Cuoco era o motorista de táxi Carlão. Betty Faria abandonou Porcina e se transformou na operária Lucinha. Em meio a um triângulo amoroso, a obra falava de ética, honestidade e violência urbana. Ambientada nas esquinas do Méier, na Zona Norte do Rio, com externas gravadas nos trens e samba cantado por Paulinho da Viola, “Pecado capital” estreou às 20h. Ainda não era “Roque”. Mas o Brasil estreava no horário nobre.
A censura havia descoberto que a novela era uma adaptação para a TV de “O berço do herói”, uma peça de Dias Gomes proibida em 1965. Ao grampear o telefone do historiador Nelson Werneck Sodré, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) flagrou uma conversa entre ele e o autor, em que Dias Gomes gabava-se de que enganaria os “milicos”. Irritado, o governo determinou a proibição.
Talvez pelo enorme sucesso que a segunda versão alcançou em 1985, a censura a “Roque” foi a mais traumática para a televisão brasileira. Mas existiram outras duas novelas proibidas, “Pedreira das almas” e “Despedida de casado”.
A primeira, adaptação de uma peça do autor Jorge de Andrade, sequer saiu do papel. Um dos pareceres de proibição à sinopse, em 1974, dizia que o protagonista, um rebelde das Minas Gerais de 1842, poderia ser associado a um guerrilheiro. A outra, de Walter George Durst, chegou a ter capítulos gravados e tratava da separação de casais. Teria sido o lançamento do par romântico Regina Duarte e Antonio Fagundes. Mas, para a censura, falar do tema em 1977, o ano em que o Brasil debatia a Lei do Divórcio, seria jogar gasolina num incêndio.
A censura atentava contra o chamado Padrão Globo de Qualidade?
Não. De certa forma, a censura naquele momento fez com que a televisão se organizasse, porque eu tinha que ter um capítulo 40 dias antes. Tinha que escrever o capítulo, mandá-lo para a censura, e ainda gravá-lo simultaneamente. Depois que voltava, nós tínhamos que regravar, acertar e editar. Tínhamos que entregar os capítulos prontos 20 dias antes de ir ao ar.
A censura sempre foi um jogo de gato e rato. Era mais ou menos como um xadrez, em que nós tínhamos mais habilidade, mas eles tinham a possibilidade de mudar a regra do jogo a qualquer momento. Eu os ameaçava. “Todas as vezes que vocês aumentam o poder da censura, nós vamos fazer uma televisão de pior qualidade”. Era esse o nome do jogo.
Se pudesse, a censura colocaria um revólver na nossa nuca
Boni
E funcionava?
Era difícil, porque era o “me engana que eu gosto”. Nós tínhamos que fazer cartas aceitando parte das coisas que eles impunham. Às vezes, éramos mais agressivos e atribuíamos a culpa a eles, aos funcionários deles. Imaginamos que o caminho era enganá-los. Às vezes, nós resistíamos, às vezes, tínhamos que aceitar mexer em alguma coisa. Como eles não tinham muita habilidade, deixávamos mexerem no que comprometia menos. Eu tinha aquele papel de prometer que nós íamos fazer uma coisa que depois nós não faríamos.
Naquele tempo, era importante uma coisa: nós não queríamos que transparecesse para o público que nós estávamos sendo censurados, porque o produto perderia a credibilidade; e eles não queriam que parecesse que censuravam. Além da preocupação de fazer um bom produto, de construir um padrão de qualidade, tínhamos o objetivo de vencer a censura.
As idas a Brasília de executivos, diretores e autores eram frequentes, na tentativa de reverter cortes que prejudicassem a obra. Mesmo quando punidas, as emissoras mantinham uma postura conciliatória, em busca de mais liberdade. Em “Mulheres de areia”, de 1973, a Tupi enviou Ivani Ribeiro para negociar com os censores os cortes. Janete Clair e Lauro César Muniz fizeram isso diversas vezes pela Globo.
A rebeldia era rara, mas existia. Ofícios mostram os censores reclamando da diferença entre as cenas escritas e as gravadas. Dias Gomes e outros autores reproduziram na TV uma prática do teatro e salpicavam palavrões de propósito nos textos, para que isso chamasse a atenção dos censores e desviasse a atenção para críticas políticas.
– Quando a gente queria dizer alguma coisa mais significativa, largava um “merda” e um “porra”, porque eles ficavam muito preocupados com isso e não censuravam o que a gente queria dizer – descreveu o ator José Wilker.
Mensagens subliminares também eram empregadas. Boni orgulha-se de ter conseguido durante meses tocar na abertura de “O Bem-Amado” a música “Paiol de pólvora”. Ele entendia que Toquinho fazia uma alusão à ditadura ao cantar o verso “estamos trancados no paiol de pólvora”.
Lima Duarte tentou fazer uma crítica ao arbítrio em seu Salviano Lisboa, o empresário autoritário de “Pecado capital”. Numa festa de aniversário organizada pelos empregados, Salviano saldou a todos levantando o braço e inclinando a mão para trás, como fazia Adolf Hitler.
Custava caro ser censurado. Do ponto de vista econômico, poderia ser fatal, sem contar o impacto que um atraso na aprovação do capítulo poderia ter no cronograma de gravações e de exibição. Faltava estrutura à DCDP para dar conta de tantos capítulos, e o ritmo de evolução tecnológica da Globo era mais rápido. De certa forma, explicou Boni, a censura ajudava a emissora a se organizar.
Existia censura à cultura no Brasil desde o Império. Teatro, música, livros, cinema. Segundo documentos da DCDP, foi com “Quem casa com Maria?”, de 1965, que o órgão deu início aos trabalhos. Mas Lima Duarte lembra que a primeira novela brasileira, “Sua vida me pertence”, exibida pela TV Tupi em 1951, teve o beijo do capítulo final censurado. Virou um simples selinho.
Todo corte era político, mas prevalecia a censura aos costumes, àquilo que, para os censores, atentava contra a ordem, a moral e os bons modos. Embora até isso tivesse um pano de fundo político, o entendimento era de que a destruição de tradicionais valores morais e familiares seria o primeiro passo para a instalação do comunismo no Brasil. Os pareceres levantados pelo EXTRA mostram que havia diretrizes bem definidas. Coerentes com o que a ditadura acreditava – e temia.
A censura defendia o casamento. Só se casava por amor, separações eram inaceitáveis, sexo só depois do “sim”. Bigamia ou traições eram cortadas. Na primeira versão de “Selva de pedra”, em 1972, Janete Clair fez Francisco Cuoco largar Dina Sfat na porta da igreja por imposição dos censores. Regina Duarte, a primeira mulher do personagem de Cuoco, fingia-se de morta para todos na trama. Mas Dina e Cuoco não poderiam se casar, aos olhos da DCDP, porque isso seria bigamia. Janete chegou a argumentar que nenhum personagem sabia que Regina estava viva. E daí? A navalha levou ao pé da letra: o público sabia.
A censura era contra sexo sem compromisso. Em “Duas vidas”, de 1977, a mesma Janete foi alertada de que não poderia “explorar o namoro de personagens descompromissados”, pois isso iria mostrar “de forma clara ou camuflada que eles praticam o ato sexual”. O problema é que a novela era cheia de situações desse tipo. A viúva Leda Maria, interpretada por Betty Faria, tinha um caso com Dino, vivido por Mário Gomes. Maurício (Stephan Nercessian) traía a noiva Juliana (a estreante Christiane Torloni) com Sônia (Isabel Ribeiro), em cenas que insinuavam que os dois transavam. Mas sexo não era coisa de novela, e Janete teve que casar Maurício e Sônia.
Não sou de lutar, tentava obedecer para não me chatear
Gilberto Braga
A censura vetava homossexuais. Houve cortes a personagens gays ou com trejeitos afeminados em pelo menos cinco novelas. Em 1977, um censor avisava que “situações de homossexualismo” poderiam prejudicar a aprovação de capítulos de “O astro”, de Janete Clair. Nos últimos suspiros da Divisão, em julho de 1988, Raimundo Mesquita, o último chefe da repartição, disse à revista “Veja” ter cortado uma cena de “Vale tudo” para “proteger as crianças”. A cena em questão fazia uma alusão à relação lésbica das personagens interpretadas pelas atrizes Lala Deheizelin (Cecília) e Cristina Prochaska (Laís). Em diversos pareceres, os censores expuseram a preocupação com o romance das duas.
A censura não queria que se abordasse o racismo. Mostrar que havia preconceito no Brasil significava à DCDP incitar a discriminação. Retalhada da sinopse ao desfecho, “O homem que deve morrer”, lançada por Janete Clair em 1971, incomodou por apresentar uma briga entre um operário branco e um negro. Cinco anos depois, em “Escrava Isaura”, de Gilberto Braga, os censores mandaram que fosse atenuada a agressividade dos feitores com os escravos.
A censura protegia militares e policiais. Em 1973, implicaram com a menção a patentes em “O Bem Amado”. Zeca Diabo quase deixa de ser capitão, e Odorico, coronel. Em “Bandeira 2”, Dias Gomes foi advertido logo no início da trama a cortar as planejadas cenas de policiais torturando.
A censura preservava a Igreja Católica. Qualquer comportamento negativo do clero era vetado. Em 1972, padres retratados como gananciosos em “O bofe” foram limados. O celibato era sagrado. Outras religiões, para eles, nem sempre. A Tupi foi orientada a cortar um casamento feito na umbanda, em “Tic-tac”, de 1978.
A censura queria que o telespectador visse o mundo com óculos cor-de-rosa. Vilões tinham que ser punidos sempre, o bem devia prevalecer sobre o mal e toda novela tinha que passar uma lição de moral. Ao analisar a sinopse de “Espelho mágico”, de 1977, um censor chegou a recomendar que a obra não fosse liberada, por falar de “intrigas, inveja, cobiça, injúrias, vinganças”, o que seria “demais adulta, perigosa e inadequada” para a TV. Seus colegas foram menos rígidos, e o texto, atenuado, foi ao ar.
A censura às vezes não tinha lógica. Um close em Zilka Salaberry em “Supermanoela”, de 1974, foi cortado porque o censor não gostou do que a personagem estava pensando naquele momento. Palavras e expressões inocentes eram riscadas. Em “Locomotivas”, escrita por Cassiano Gabus Mendes em 1977, Boni teve que pedir a liberação da expressão “fazer pipi”, lembrando que era a forma ensinada por “nossas mamães” desde a “mais tenra idade”, para “pedir licença para ir ao banheiro na frente de visitas”. Em 1975, uma fala de “Escalada”, de Lauro César Muniz, abriu uma crise na DCDP. As censoras tiveram que justificar a seus superiores por que haviam deixado ir ao ar um personagem dizendo que queria “fazer cocô”, expressão de “abominável mau gosto”.
Em “Cavalo de aço”, de 1973 e escrita por Walther Negrão, Daniel Filho quis saber por que uma censora sempre cortava as cenas do personagem Lucas, interpretado por Edson de França. Descobriu que era por um motivo singular. O filho da censora, excepcional, agitava-se ao ver o ator.
Nenhum comentário:
Postar um comentário