segunda-feira, 23 de junho de 2014

Te Contei, não ? - Shakespeare encontra Machado de Assis


Coletânea de ensaios do escritor e professor José Luiz Passos disseca a dimensão moral dos personagens machadianos e aponta a forte influência do dramaturgo inglês

Por Leonardo Cazes

Ainda um aspirante a escritor, em 31 de dezembro de 1862 Machado de Assis assumiu o cargo de censor teatral no Conservatório Dramático Brasileiro. Sua função era escrever pareceres e autorizar, ou não, a encenação de textos no Rio de Janeiro. Na época, apesar de ter apenas 23 anos, já acumulara experiência na crítica teatral colaborando com jornais, publicara no ano anterior a comédia “Desencantos” e a tradução da sátira “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Foi desta posição privilegiada que o escritor assistiu à chegada avassaladora das montagens de peças de William Shakespeare aos palcos da cidade. O contato com a obra do dramaturgo inglês despertou o interesse do jovem para as questões morais e marcaria sua produção literária.


A dimensão moral dos personagens machadianos e a influência de Shakespeare na sua formação estão dissecadas no recém-lançado “Romance com pessoas — A imaginação em Machado de Assis” (Alfaguara), do escritor José Luiz Passos, professor da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA). Trata-se de uma coletânea de ensaios que analisam os nove romances do escritor, em ordem cronológica, e que traz no apêndice um inventário com mais de 200 referências, alusões e citações diretas a obras de Shakespeare nos poemas, contos, crônicas e romances de Machado.

O apêndice é uma das novidades em relação à primeira edição, de 2007, lançada pela Edusp. O prefácio de Pedro Meira Monteiro, professor da Universidade de Princeton, também é inédito. O trabalho foi feito por Passos ao longo da década de 1990, durante sua pesquisa de doutorado. É o segundo livro da coleção iniciada no ano passado com “O encantador: Nabokov e a felicidade” (Alfaguara), de Lila Azam Zanganeh.

— Não estou dizendo que Machado é Machado por causa de Shakespeare. Muito pelo contrário, porque o Shakespeare que ele apanha é muito particular — afirma Passos que, como romancista, ganhou no mês passado o Prêmio Brasília de Literatura com “O sonâmbulo amador” (Alfaguara), de 2012. — Joaquim Nabuco escreveu numa crônica na década de 1860 que havia uma tripla pulverização de Shakespeare no Brasil: a tradução e adaptação francesa para o palco pós-revolucionário; a tradução do francês para o português, feita por Gonçalves de Magalhães; e a encenação de João Caetano. Shakespeare serviu para Machado como um guia, um modelo para representar dramas de consciência

Na biblioteca de Machado de Assis — sob a guarda da Academia Brasileira de Letras (ABL) — é possível notar, conta o professor, que o interesse pelo dramaturgo inglês não foi superficial. Machado buscou as traduções mais modernas para o francês, adquiriu os originais em inglês e leu muitos ensaios sobre personagens e peças. Exemplos dessa influência são notadas desde o primeiro romance, “Ressurreição” (1872). Nesta obra, Passos argumenta que o autor reescreve o drama de “Otelo”: dois homens que possuem uma ligação muito forte, uma triangulação amorosa baseada mais na suspeita do que em provas, que culmina no fim de uma era ou de uma família. Qualquer semelhança com Bento Santiago, Escobar e Capitu, de “Dom Casmurro”, não é mera coincidência.

Para o professor, o dinamismo moral dos personagens shakespeareanos, capazes de grandes metamorfoses, impressionou Machado. Tanto que a “novidade machadiana” na literatura brasileira, na sua opinião, é exatamente o adensamento da vida interior, que se torna objeto do romance. Nos romances do romantismo e do naturalismo do século XIX, os personagens, em geral, são arquétipos ou símbolos da virtude, da ganância, da determinação racial ou social.

— Vida moral ou mundo moral são os valores associados à deliberação ética que o sujeito faz acerca de si mesmo quando entra em contato com outros. Como os outros me veem, o que eu devo aos demais. É o valor que você atribui à representação da sua pessoa no espaço público — explica ele. — No início de “Iaiá Garcia”, a protagonista é uma adolescente relativamente chatinha, ingênua. Quando acaba, Iaiá é uma mulher com a plena dimensão da complexidade do amor conjugal, do cálculo social. Esse aprofundamento da vida moral é a contribuição que Machado deu ao gênero.

“Iaiá Garcia” é uma obra da fase romântica de Machado. No entanto, já guarda as sementes daquilo que seria desenvolvido plenamente em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro” e “Quincas Borba”. Ao contrário de críticos que veem uma virada radical do escritor em “Brás Cubas”, Passos prefere ressaltar as linhas de continuidade nas obras. Diversos tipos sociais, por exemplo, estão presentes desde “Ressurreição”: a viúva, o adúltero, o especulador financeiro, o médico desocupado da profissão, a jovem buscando casamento.

Os famosos monólogos de Shakespeare também o influenciaram, como os de “Hamlet”. O professor destaca que, entre o primeiro e o último verso, o personagem muda tanto a imagem que faz de si quanto a sua perspectiva das coisas.

— Muito dos melhores romances e contos de Machado de Assis são grandes monólogos interiores. São grandes confissões, grandes momentos de reavaliação que o sujeito faz de si.

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