A peça
nos permite ver atores negros em papéis complexos e não subjugados
“Salina”, da Cia. Amok, não é apenas um dos melhores espetáculos em cartaz da atual temporada teatral na cidade do Rio. A montagem é a possibilidade de ver, numa cena carioca que se acostumou a ser majoritariamente branca, a renovação vigorosa da presença de um teatro feito por atores negros, como protagonistas em papéis complexos e não subjugados, onde os personagens precisam encarar virtudes e valores não apenas como habilidades pessoais ou talentos e qualidades do temperamento, mas como ensinamentos dolorosos para o desafio da vida comunitária.
Casada à força, violada pelo marido, Salina recusa seu filho e deixa o esposo morrer no campo de batalha. Ela, de outra etnia, quando jovem, adotada por este reino/comunidade/clã, queria viver com Kano Djimba — irmão mais novo de seu marido —, mas o primogênito tinha prioridade. Expulsa no deserto, vagando com sua ira, faz sozinha um filho para executar sua vingança matando aqueles que considera responsáveis por sua tragédia e punição. Na cena final da peça, quando banida pela segunda vez, Salina volta a vagar novamente pelo deserto, e é surpreendida pela chegada da atual esposa de Kano Djimba, a tocante Alike — que foi dar seu filho mais novo, recém-nascido, para Salina criar, como forma de perdão e de dar fim ao derrame de sangue. “Eu lhe dou o que eu tenho de mais precioso porque você não tem nada, Salina” — diz com compaixão a jovem Alike, segura da decisão, por já ter sido alertada pelo oráculo, antes de se casar, que seu sexto filho não seria criado por ela.
A experiência como espectador — em três horas de peça — é envolvida pela vivência delicada de emoções e percepções através de uma encenação que não “didatiza” de forma redutora, mas sim potencializa a experiência com o mito e a oralidade, para além de uma dimensão folclórica, forjando um tipo de estética coletiva, que cria a presença comunitária no interior de uma estética contemporânea. Canto, dança, escolhas imagéticas e disposição cênica dos atores e do músico em roda na cena colocam o centro em toda parte — a peça é o próprio ancião nos envolvendo em suas histórias e ensinamentos de uma cultura oral.
Essas opções, numa liga entre dramaturgia e encenação, fazem com que questões individuais se tornem questões públicas. A vida de Salina passa a ser uma questão de todos. Conflitos e motivações individuais são revertidos para exposição étnica, antagonismo social e catarse comunitária. A unidade construída a partir do ponto de vista individual apenas a partir da psicologia individual — tão incensada na cena contemporânea — é transformada num ensinamento de todos, lembrando um anticartesianismo africano do “Sou, portanto, somos; e como somos, logo sou” — como apontam Ella Shohat e Robert Stam no livro “Crítica da imagem eurocêntrica”.
Assistir a “Salina”— reconhecendo todo fio de delicadeza que a peça produz — é também um gesto de amor ao teatro, de atenção às contradições que vivemos para levar a cena processos e pesquisas radicais — e, sabemos, caro leitor, que não é tão fácil momentos assim acontecerem para quem leva uma vida de espectador e público que deseja mais da arte do que ser o antepasto do menu no restaurante a seguir.
A peça está em cartaz no Espaço Sesc, em Copacabana, até o final deste mês. A direção de Ana Teixeira e Stéphane Brodt faz as devidas honras ao inventivo texto do francês Laurent Gaudé, mas sobretudo respeita os atores. É visível que todo o processo, disparado por uma convocação para oficinas, não foi tratado apenas como aulas para inclusão social. A troca entre criadores — atores e equipe de direção — aparece na coragem do elenco em encarar a condução de um espetáculo que passeia — sem ser episódico ou panorâmico — por agenciamentos estéticos, éticos e políticos complexos. Os atores e atrizes Luciana Lopes, Sergio Ricardo Loureiro, Tatiana Tibúrcio, André Lemos, Thiago Catarino, Ariane Hime, Graciana Valladares, Reinaldo Júnior, Sol Miranda, Robson Freire e o excelente músico Fábio Soares são artistas que merecem atenção e respeito.
Por fim, vale ressaltar um momento. Kano Djimba, já rei, no meio da peça, diz que não quer mais sangue derramado, que é preciso deixar o sangue para o passado. Nesse gesto há algo de precioso, de aprendizado, para desanuviar valores que são proclamados na vida contemporânea mas pouco colocados em prática por conta da confusa e paralisante bricolagem subjetiva que vivemos de mistura de mensagens publicitárias e das salvações semanais de autoajudas. Quando joga para o passado e determina o fim das vinganças inventando uma outra vida, Rei Kano faz sua comunidade aprender a tolerar, responsabilizar-se por ela — a tolerância que responsabiliza o outro não é tolerância.
Optar por assistir à peça “Salina” no teatro é um gesto poderosamente político do espectador.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/por-um-teatro-mais-salina-15613929#ixzz3Ux0wHFy6
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