quinta-feira, 19 de março de 2015

Te Contei, não ? - Samba em ritmo de ditadura

Pode uma escola de samba financiar seu desfile com o dinheiro de uma ditadura mundialmente famosa pela violação de direitos humanos? Foi essa a pergunta que ficou no ar quando a Beija-Flor venceu o Carnaval carioca deste ano. De acordo com o jornalista Ricardo Noblat, de O Globo, os R$ 10 milhões que financiaram as fantasias e alegorias da escola vieram da Guiné Equatorial, país governado há mais de 35 anos pelo ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo. Ele é denunciado por violações de direitos humanos por várias entidades internacionais. “O patrocínio ao Carnaval da Beija-Flor é um insulto ao povo da Guiné”, disse Tutu Alicante, militante oposicionista contra a ditadura de Obiang, que vive nos Estados Unidos.


O patrocínio do ditador teve um efeito negativo sobre a imagem do Carnaval carioca no exterior. Os jornais americanos The Washington Post e The Wall Street Journal abriram espaço para reportagens sobre o assunto. Há razões para tal. Embora a Guiné Equatorial, rica em reservas de petróleo, tenha o maior PIB per capita da África (US$ 19 mil), a riqueza do país é controlada pela família do ditador Teodoro Obiang, que vive em mansões e palácios suntuosos. A maior parte dos guinéu-equatorianos vive abaixo da linha de pobreza. Setenta e cinco por cento da população de 1,6 milhão de pessoas vive com apenas US$ 2. Segundo estimativas das Nações Unidas, a expectativa de vida é de 53,1 anos. A média de escolaridade está estacionada desde 2000 em 5,4 anos. Dez por cento das crianças morrem antes de completar 5 anos.
Viajologia: A Guiné Equatorial que não vimos no Sambódromo do Rio
O filho do ditador, Teodorín Nguema Obiang, de 45 anos, já frequenta o Carnaval carioca há muito tempo. Nos camarotes do Sambódromo, comentava-se que a aproximação entre ele e a Beija-Flor foi feita pela rainha de bateria da escola, Raíssa Oliveira, que manteria um namoro com Teodorín. Em entrevista à coluna de Bruno Astuto, Raíssa confirmou a aproximação, mas negou o namoro. Teodorín é investigado no Brasil, na França e nos Estados Unidos por suspeita de lavagem de dinheiro desviado por meio de esquemas de corrupção na Guiné Equatorial. No Brasil, Teodorín é dono de imóveis luxuosos no Rio de Janeiro e em São Paulo – inclusive um apartamento avaliado em R$ 56 milhões.

Para piorar ainda mais, o enredo do financiamento da Beija-Flor se junta a outro enredo vigente no Brasil: o do petrolão. O governo da Guiné Equatorial, em nota, disse que o dinheiro para o desfile partiu de empresas brasileiras com negócios no país – visitado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em julho de 2010, em um de seus périplos pela África. Um dirigente da Beija-Flor citou três empreiteiras: a Odebrecht e a Queiroz Galvão, ambas citadas na Operação Lava Jato, e a ARG (a Odebrecht negou qualquer doação à  Beija-Flor).
Não se trata de questionar o resultado do Carnaval. A Liga das Escolas de Samba tem seu regulamento e, como entidade privada, pode estabelecer seus critérios de premiação. Do ponto de vista estritamente carnavalesco, a Beija-Flor mereceu a vitória. Desfilou com alegorias impecáveis, uma bateria que levantou a avenida e um samba lindíssimo, defendido pelo intérprete Neguinho da Beija-Flor com a garra de sempre.

Também não é novidade que os Carnavais sejam financiados com dinheiro de procedência duvidosa.  O comandante da Beija-Flor é um conhecido contraventor, assim como o mandachuva da Portela é chefe de uma milícia, grupo paramilitar que controla a segurança de uma comunidade em troca da cobrança de uma taxa de proteção de seus moradores. Também é antiga a complacência das autoridades com essa promiscuidade. Várias tentativas de abrir licitação pública para a organização dos desfiles foram arquivadas. Questionado em uma sabatina do jornal O Globo,  quando disputava a reeleição em 2012, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), respondeu assim a uma pergunta sobre a permanência dos bicheiros no comando do Carnaval. “Chato é, mas vou fazer o quê? Acabar com o Carnaval?”

A questão que surge, com a grita nas redes sociais e a repercussão internacional, é até que ponto vale manter essa situação – que, além do constrangimento ético, pode interferir na imagem do próprio Carnaval e, consequentemente, com todo o negócio do turismo que gira em torno dele.

O grande acontecimento deste ano na Sapucaí, para além do samba, talvez seja justamente a indignação. Talvez estejamos nos aproximando da situação ideal descrita por Michael Freitas Mohallem, professor de direitos humanos da Fundação Getulio Vargas (FGV), em artigo publicado na semana passada. Por mobilizarem tantas paixões, atraírem tanta atenção e recursos, as escolas de samba devem passar a ser mais rigorosas na escolha dos patrocinadores de seus desfiles. Quando houver investimento de dinheiro público, as prefeituras devem exigir contrapartidas. No país do Carnaval, essa seria uma bela – e nada desprezível – novidade. 


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