terça-feira, 24 de março de 2015

Personalidade - François Dossa: “Que país é este? Não é sério”

Em 6 de outubro de 2011, a Nissan, sexta maior montadora do mundo, anunciou o plano de investir o equivalente a R$ 2,6 bilhões para construir uma fábrica de carros e motores em Resende, no Rio de Janeiro. Naquele dia, o dólar valia R$ 1,56. Na semana passada, ultrapassou os R$ 3. A desvalorização do real nesse período, de 48%, diminui a recompensa de quem apostou no Brasil. Não é só. O mercado de automóveis encolheu e o número de competidores aumentou. O Inovar-Auto, programa do governo de incentivos fiscais às montadoras, é questionado na Organização Mundial do Comércio. Falhas na oferta de água e energia elétrica, na Região Sudeste, obrigam a fábrica a fazer reformas menos de um ano após a inauguração. Presidente da Nissan no Brasil desde 2013, o economista francês naturalizado brasileiro François Dossa diz por que, apesar das surpresas desagradáveis, mantém a aposta no país.

ÉPOCA – Em 2015, as montadoras já suspenderam mais de 1.500 operários de suas linhas de produção em São Paulo. Em 2014, o setor inteiro demitiu 12.400 trabalhadores. Apesar disso, o presidente mundial da Nissan, Carlos Ghosn, afirma que não vai demitir nem adiar investimentos no Brasil. O que justifica esse aparente otimismo?
François Dossa – A Nissan não é mais otimista que as outras, apenas está em uma fase diferente. Abrimos a fábrica há menos de um ano, sem a ilusão de recuperar esse dinheiro em seis meses. Continuamos investindo por acreditar que, já em 2016, o mercado vai voltar a crescer. Estamos em aceleração, com planos de crescer 25% neste ano, avançando na fatia de marcas estabelecidas há mais tempo no país. Estas, sim, têm um número muito maior de funcionários e precisam se adaptar à nova realidade do mercado.
ÉPOCA – Que nova realidade é essa?
Dossa – A indústria se organizou para fazer 5 milhões de carros por ano, mas o mercado consumidor estacionou em 3 milhões. Achava-se que o Brasil conseguiria exportar mais, com a atual taxa de câmbio, mas isso também não está acontecendo. Então é muito simples: o setor tem um excesso de capacidade e vai ter de cortar. Não existe milagre.

ÉPOCA – O Brasil tem mais marcas de automóveis com produção local do que os Estados Unidos. O programa Inovar-Auto, do governo federal, incentivou a implantação de uma fábrica da Nissan e incentiva a chegada de outras oito marcas. Há espaço para todas?
Dossa – Se o mercado consumidor chegar a 6 milhões, haverá espaço para todo mundo. O Inovar-Auto obrigou as montadoras a se instalar no Brasil, e, agora, o câmbio está nos obrigando a nacionalizar cada vez mais as peças. É bom para o país.
ÉPOCA – A União Europeia está processando o Brasil na OMC, com apoio dos Estados Unidos e do Japão, por considerar o Inovar-Auto um incentivo desleal. Como um eventual cancelamento do programa afetaria o mercado?
Dossa – A gente não trabalha com a possibilidade de o Inovar-Auto ser cancelado. O programa terminará em 2017. Será que até lá esse caso vai ser julgado? Duvido. A gente sabe quanto um processo desses demora, o Brasil pode recorrer... A reclamação da Europa é uma forma dos políticos de agradar a seus eleitores. Não sei dizer se e até que ponto o Inovar-Auto infringe as regras da OMC. Tudo que eu vi e sei das batalhas da OMC é que elas não dão em nada. Deve ser muito bom para os advogados. Eles trabalham, fazem relatórios... Raramente você vê um país punido.
ÉPOCA – A Nissan busca incentivos para vender no Brasil o Leaf, carro elétrico mais popular do mundo. Com o governo federal interessado em salvar a Petrobras e investimentos no pré-sal, qual a perspectiva para carros movidos a energias alternativas no país?
Dossa – O Brasil está se atrasando na oportunidade histórica de ter carros com zero emissão de gases poluentes. Estamos defendendo essa causa entre as autoridades brasileiras, sem sucesso. Acredito que existam forças contrárias, principalmente entre os produtores de etanol, numa batalha completamente fora de propósito. Não entenderam que o carro elétrico não vai substituir 100% a frota de qualquer país. Se chegar a 10%, é bastante. Mas, para a saúde pública, esses 10% seriam muito. Há um ano, a Nissan cedeu 15 carros elétricos para taxistas do Rio de Janeiro. Em 500.000 quilômetros rodados, eles deixaram de lançar na atmosfera cerca de 75 toneladas de gás carbônico. É uma loucura. Uma loucura. Não sei se o governo vai se convencer, mas a opinião pública pode convencer o governo.

ÉPOCA – Que oportunidades o país pode perder ao se fechar ao carro elétrico?
Dossa – Perde a oportunidade de desenvolver tecnologias. A balança industrial do Brasil passou de um excedente para um deficit cruel. Isso é muito grave. Ao barrar inovações como o carro elétrico, o Brasil se fecha às exportações. Você continuará fazendo carros diferentes da demanda dos outros países. O desenvolvimento da tecnologia do carro elétrico terá aplicações também fora da área automotiva. A gente não tem um problema de energia no Brasil? O carro elétrico poderia ajudar. Ele pode recarregar, em horários de menor consumo, e fornecer eletricidade à casa, em horários de pico. É a tecnologia do futuro. Por que o Brasil vai se fechar?
ÉPOCA – Como é ter uma fábrica quase na fronteira entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, Estados que enfrentam instabilidade no fornecimento de água e energia?
Dossa – Você imagina nossa dificuldade ao saber que vai ter racionamento? O governo diz que não, mas nós sabemos que vai ter racionamento sim, pelo nível extraordinariamente baixo dos reservatórios. É uma hipocrisia muito séria, porque o que está em jogo é a produção industrial, são os empregos. Para nós, o racionamento é uma certeza.
 ÉPOCA – Para quando o senhor espera racionamento?
Dossa – A gente trabalha e se prepara para ter de racionar energia e água dentro de mais ou menos dois meses. Não acredito em apagão, mas acho que um belo dia vamos receber uma ordem para consumir 20% menos energia. Como na região da fábrica não tem vento, energia eólica não vai ser solução. Tem bastante sol, então a gente está estudando o aluguel de captadores de energia solar. Lidar com a falta de água será mais difícil. Queremos captar a água das chuvas, que cai no enorme telhado da fábrica, para usar principalmente no processo de pintura dos carros.
ÉPOCA – Falhas na oferta de água e eletricidade já afetaram a produção?
Dossa – Em setembro, a variação na eletricidade afetou a qualidade da pintura. Perdemos 71 carros. Cada um custa cerca de R$ 35 mil, então não foi pouco dinheiro. Para evitar novas variações de energia, a gente instalou máquinas que não estavam previstas no projeto da fábrica.

ÉPOCA – Quanto a empresa já investiu, na fábrica, para contornar imprevistos como a instabilidade da energia?
Dossa – Foram vários milhões de reais, não sei exatamente quantos. É muito difícil calcular o custo das ineficiências e da burocracia. No dia em que eu entrei na Nissan, recebi uma denúncia de crime ambiental. Disseram que um pássaro queria fazer o ninho dele justamente no lugar destinado à construção da fábrica. Dissemos “tudo bem, a preocupação também é nossa”. Queríamos fazer, e fizemos, a fábrica de carros mais verde do Brasil e a mais verde da Nissan em todo o mundo. Tivemos de adotar um lago que fica ao lado da fábrica, criar uma área de proteção ambiental permanente, controlar o nível da água etc. Isso não estava previsto no investimento. O tal pássaro, eu não vi. Ninguém viu. Se existe, eu não sei. Só sei que tivemos de fazer uma coisa que não estava prevista. Meu negócio não é adotar lagoa, é fabricar carros. Tivemos de fazer uma série de adaptações por causa dessas coisas bem tipicamente brasileiras.
ÉPOCA – Como o senhor se sente ao reformar uma fábrica menos de um ano depois da inauguração?
Dossa – Como explico para minha matriz no Japão que instalei uma fábrica, que fiz um investimento brutal e não vai ter água e luz? Eles não entendem. Que país é este? Não é sério. Falta planejamento dos governos. Falta dizer a verdade. A gente sabe desse problema há meses. Se a gente tivesse usado essa água de maneira mais consciente, um ano atrás, não passaria a dificuldade atual. A gente não pode usar um recurso rezando para São Pedro mandar chuva. Isso não existe. A reza tem sua força, mas você não faz um plano industrial com base em Deus ou São Pedro. 

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