quinta-feira, 19 de março de 2015

Te Contei, não ? - O Teatro de José de Alencar


A origem do teatro alencariano: o ‘teatro ao correr da
pena’ e a fundação do Ginásio Dramático
Em 1857, José de Alencar já era um escritor
consagrado entre o público. Iniciara sua carreira na
seção Ao correr da pena, como folhetinista das páginas
dos jornais Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro
entre 1854 e 1855. 


Em 1856 o autor publica seu
primeiro romance, Cinco minutos. Em 1857, Alencar
lançaria também, nas páginas do Diário do Rio de
Janeiro, aquele que viria a ser o seu maior sucesso de
público como escritor: O Guarani, publicado em 54
capítulos, obra que o consagraria como o maior
homem de letras de seu tempo, com papel central no
movimento romântico brasileiro.
Por sua vez, o interesse de Alencar pelo teatro
surge antes do lançamento de O Guarani, como
afirmou João Roberto Faria (1987), ao contrário de
alguns biógrafos do escritor, que observam apenas a
linha cronológica de lançamento de suas peças.
É certo que a peça de estreia de Alencar, O Rio de
Janeiro, verso e reverso, data de 1857, após o
lançamento e consagração de O Guarani, mas é certo
também que a atenção de Alencar pelo teatro se
origina de seu papel como folhetinista, exercido
anteriormente.
Quando escreveu a seção Ao correr da pena, Alencar
exercia aquela que era uma das principais obrigações do
folhetinista ao retratar o cotidiano da corte: frequentar
teatros, óperas e salões de baile da então capital do
império. O contato com tal ambiente fez Alencar
perceber a estagnação na qual se encontrava o teatro
brasileiro, com a representação resultante da mera
transposição de peças estrangeiras, especialmente
francesas. Nessa época, em folhetim de 19 de
novembro de 1854, escreveu Alencar no sentido de que
cabia ao maior ator da época, João Caetano, a tarefa de  liderar a criação de um teatro que o autor considerava
nacional:
Se João Caetano compreender quanto é nobre e
digna de seu talento esta grande missão, que outros,
antes de mim, já lhe apontaram; se corrigindo pelo
estudo alguns pequenos defeitos, fundar uma escola
dramática que conserve os exemplos e as boas lições
de seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para
ele uma nova época (ALENCAR, 2004, p. 109).
Os ‘pequenos defeitos’ aos quais Alencar se
referia visavam justamente o estilo de interpretação
de Caetano, que Alencar considerava exagerado,
grandiloquente, sem poupar a falta de
comprometimento do ator com o que considerava a
causa do teatro genuinamente brasileiro. Afirma João
Roberto Faria (1987) que João Caetano não teria
ficado indiferente aos apelos e às críticas de Alencar,
mas que teria agido demasiado tarde. Neste sentido,
Alencar partilha nesse momento das ideias de toda
uma nova geração de intelectuais acerca do teatro,
ideias vindas da França, com o realismo teatral
iniciado por Alexandre Dumas Filho com A dama das
camélias, em 1852, na qual já vigorava o estilo de
interpretação considerado mais ‘natural’, sem lances
dramáticos artificiais.
E os apelos de Alencar são finalmente atendidos
em março de 1855, pelo empresário Joaquim
Heleodoro Gomes dos Santos, que funda o Teatro
Ginásio Dramático, em resposta à estagnação do
Teatro São Pedro de Alcântara, que era liderado por
João Caetano. Inspirado no Gymnase-Dramatique,
reduto dos realistas franceses, o ginásio acolheria a
encenação de peças do repertório de seu congênere
francês. Ademais, já se preocupava o autor com
questões que até hoje são discutidas no meio
artístico, como a autonomia do teatro em relação a
subvenções governamentais.
Em crônica de 15 de abril de 1855, Alencar
comenta a criação e o início dos ensaios do Ginásio
Dramático:
E isto vem a propósito, agora que a nova empresa do
Ginásio Dramático se organizou, e promete fazer
alguma coisa ao bem do nosso teatro. [...] O que
resta, pois, é que os esforços do Sr. Emilio Doux
sejam animados, que a sua empresa alcance a
proteção de que carece para poder prestar no futuro
alguns serviços. Cumpre que as pessoas que se
acham em uma posição elevada deem o exemplo de
uma proteção generosa à nossa arte dramática
(ALENCAR, 2004, p. 283).
Em novembro de 1855, Alencar encerra a seção
ao correr da pena, mas em 1856 ainda escreve alguns
folhetins, ainda que de forma dispersa, sendo que,
segundo João Roberto Faria, apenas dois interessam
para demonstrar o interesse de Alencar pela carreira
de dramaturgo. São os folhetins de 12 de junho e 1
de julho de 1856, nos quais o escritor, em vez de
‘conversar’ com seus leitores, apresenta no espaço
uma comédia, intitulada O Rio de Janeiro às direitas e
às avessas: comédia de um dia, a qual teve apenas três
atos publicados e restou inacabada. Afirma o autor
sua intenção no folhetim de 12 de junho:
O título é um pouco original; mas o que talvez ainda
vos admire é o enredo da peça; cada cena é uma
espécie de medalha que tem o seu verso e o seu
reverso; de um lado está o ‘cunho’, do outro a ‘efígie’
(ALENCAR, 2003, p. 280).
Outra peculiaridade na ‘peça’ apresentada por
Alencar é que as personagens não possuem nomes,
mas são nomeadas por tipos específicos que
compõem a sociedade de então, e até mesmo a
instituições. Assim, fazem parte da trama o Bacharel,
o comércio, a indústria e a pérfida política, por
exemplo.
Assim, tanto na literatura quanto no teatro, José
de Alencar se mostra um experimentador, primeiro
fazendo algo mais amplo, ou genérico, em um
exercício da escrita teatral semelhante ao que seria
feito em sua literatura, com a publicação de Cinco
minutos, para depois lançar-se em uma empreitada
mais ambiciosa e bem sucedida, com O Guarani.
Já nesse período, portanto, o escritor milita em
duas vertentes: a primeira pela edificação de um
teatro independente da subvenção governamental e,
portanto, com autonomia para acolher a nova
geração de dramaturgos adeptos da escola realista
francesa, e a segunda vertente para a criação e
encenação de uma obra teatral concebida por autores
brasileiros, tendo Alencar à frente. Mostra o autor,
portanto, conhecimento da estrutura social que
influencia na produção artística e, sobretudo,
consciência ‘midiática’, ciente de que a propaganda e
a divulgação são essenciais para o sucesso do
espetáculo.
Alencar, escritor de papel fundamental no
movimento romântico brasileiro, no que diz respeito
à literatura, considerava-se um adepto da escola
realista no teatro, o que significa dizer que ele, assim
como os mestres franceses nos quais se inspirava,
defendia valores burgueses fundamentais para a
época, como o trabalho e a família, abordando as
questões sociais pelo prisma da moralidade,
destinando-se o texto teatral realista a dar lições
edificantes ao público.
No caso do teatro realista, acreditava-se que a
naturalidade e espontaneidade necessárias não se
encontravam no texto, mas nos elementos
extratextuais, tais como o jogo cênico e a interpretação dos atores, características estas que
andavam em sentido inverso no terreno textual, em
que imperavam o conservadorismo e o conteúdo
sempre moralizador, com a valorização da família e
do capitalismo. Estes e outros tópicos são tratados
demoradamente por Alencar em seu artigo A
Comédia Brasileira, que, segundo João Roberto Faria,
seria uma ‘profissão de fé realista’ e a prova de que o
autor se iniciou no teatro com um projeto definido,
que tinha como um dos principais alvos pôr fim ao
romantismo teatral no Brasil.
A adoção de uma escola crítica, contudo, não dá a
qualquer autor a chancela de que este trilhará o
caminho destinado aos viajantes deste trajeto, de que
chegarão sãos e salvos ao porto do realismo, por
exemplo. Fato é que a época de Alencar foi aquele
período de transição em que seguir um vocabulário
crítico faz que o autor apresente determinados
conceitos, mas estes não seriam capazes de delimitar
ou aprisionar seus textos em determinada escola, só
porque o dramaturgo assim escolhera. E foi desse
modo que se deu o embate nos textos de Alencar
entre a escola romântica e a realista no teatro.
Elucida melhor o assunto Martin Esslin:
Em períodos ou civilizações dotados de visão do
mundo unificadas, coerentes e aceitas sem
contestação por sua vasta maioria – períodos como o
da Grécia clássica ou da Idade Média – as artes e o
drama em particular tendem a refletir tal visão por
meio de um estilo único e unificado de apresentação
(ESSLIN, 1978, p. 60-61).
E no século XIX, em que a burguesia ascendente
consolidava seus valores de defesa da família, do
casamento e do dinheiro empregado sem ganância,
nada mais conveniente do que aliar um modo de
interpretação mais ‘natural’ com a representação pelo
texto dos valores conservadores da sociedade de
então, conceitos que Alencar seguiu em grande parte
de suas peças, nas quais a sociedade, via de regra,
subjuga o indivíduo.
Mas essa delimitação de gêneros pretendida por
autores como Alencar não restaria indiferente à
infiltração do romantismo, de suas soluções
inverossímeis e grandiloquentes, rompendo com as
normas que delimitam tais gêneros. Definido por
Antonio Candido por “[...] complexo e amplo,
anticlássico por excelência, é o mais universal e
irregular dos gêneros modernos” (CANDIDO,
1969, p. 109), o romantismo, no que diz respeito à
dramaturgia, opõe o modo de interpretação mais
natural em face do mais afetado; o texto mais
conservador e linear em face de lances ousados e
inverossímeis; a predominância do social em face
dos painéis humanos particulares.
Foi entre esses mundos que o teatro de José de
Alencar se situou, professando a fé do autor no
realismo como caminho para a afirmação do teatro
nacional, recorrendo, entretanto, com frequência a
recursos claramente afetos à escola romântica
quando a situação lhe parecia conveniente ou
necessária, fator que será discutido novamente
quando da conclusão deste trabalho.
A fim de avaliar como tais concepções teóricas se
refletem na obra teatral de Alencar, dois trabalhos
serão analisados, dentre as sete peças que escreveu.
Trata-se de O demônio familiar, comédia realista que
significou uma evolução em relação à estreia de
Alencar como dramaturgo em O Rio de Janeiro: verso e
reverso, bem como As asas de um anjo, peça mais
sombria e polêmica de Alencar, que viria a ser
censurada logo em sua segunda apresentação.
O demônio familiar, a primeira comédia realista do Brasil
Ao discorrer sobre O demônio familiar, João
Roberto Faria (1987) afirma que esta peça está para
O Rio de Janeiro, verso e reverso assim como O Guarani
está para Cinco minutos. Vale dizer: a primeira seria a
evolução e a consagração dos primeiros passos
ensaiados na peça anterior, assim como a
consagração de O Guarani teria sido antecedida da
experimentação em Cinco minutos. Neste sentido,
afirma João Roberto Faria que
Assim como O Guarani abre uma nova fase do
romance nacional, marcada pela preocupação com os
fundamentos de uma nacionalidade literária
brasileira, O demônio familiar coloca em xeque toda a
estética teatral romântica e aponta aos jovens
escritores o caminho da renovação do teatro nacional
(FARIA, 1987, p. 37).
Fato é que, enquanto Rio de Janeiro: verso e reverso,
não obstante sua qualidade dramática, configura-se
como uma comédia ligeira, O demônio familiar se
mostra a primeira comédia realista brasileira, cujas
características principais estão presentes: a
moralidade do texto e a naturalidade do jogo cênico.
Os próprios folhetinistas da época consideraram
como primordial para o sucesso da peça a encenação
levada a efeito pelos atores do Ginásio Dramático.
Para Faria, O demônio familiar representa um
divisor de águas na história do teatro brasileiro,
momento de ruptura com o romantismo teatral e o
início do realismo, com uma dramaturgia voltada
para a discussão de problemas sociais.
A peça, escrita em três atos, gira em torno das
peripécias do escravo Pedro, o ‘demônio familiar’ do
título, moleque extremamente astuto que pretende
arrumar um casamento rico para seu senhor
Eduardo, através da intriga e da calúnia, primeiro afastando-o de Henriqueta. Depois, arrependido,
tenta recuperar Henriqueta para o patrão, afastandoa
de Azevedo, a quem havia sido prometida em
casamento após a desilusão com Eduardo. Tudo isso
com um objetivo: a realização do sonho de se tornar
cocheiro e de vestir uma libré.
As confusões que o escravo desencadeia e suas
tentativas de reparação renderam justa comparação à
época com o célebre Figaro, criação de
Beaumarchais, como o próprio autor colocando na
fala da personagem, na cena V do ato II:
PEDRO: Sim. Pedro fez história de negro, enganou
senhor. Mas hoje mesmo tudo fica direito.
CARLOTINHA: Que vais tu fazer? Melhor é que
estejas sossegado.
PEDRO: Oh! Pedro sabe como há de arranjar este
negócio. Nhanhã não se lembra, no teatro lírico, uma
peça que se representa e que tem homem chamado Sr.
Fígaro, que canta assim:
Tra- la-la-la-la-la-la-la-tra!!
Sono un barbiere di qualitá!
Fare la barba per caritá!...
CARLOTINHA: (rindo-se) Ah! O barbeiro de
Sevilha!
PEDRO: é isso mesmo. Esse barbeiro, Sr. Fígaro,
homem fino mesmo, faz tanta coisa que arranja
casamento de sinhá rosinha com nhonho Lindório. E
velho doutor fica chupando no dedo, com aquele frade
de d. Basílio!
CARLOTINHA: Que queres dizer com isto?
PEDRO: Pedro tem manha muita, mais que Sr. Fígaro!
Há de arranjar casamento de Sr. Moço Eduardo com
sinha Henriqueta. Nhanhã não sabe aquela ária que
canta sujeito que fala grosso? (Cantando) La calunia!..?
(ALENCAR, 1960, p. 100).
Como se vê, a própria personagem revela a fonte
na qual Alencar buscou inspiração para criá-lo. A
ação dramática da peça é composta, por assim dizer,
dos diversos ‘nós’ criados por Pedro, os quais, ao
tentar desfazê-los, acaba por criar novas situações
embaraçosas. Além da personagem baseada no
Barbeiro de Sevilha, e da evidente semelhança com o
teatro de Molière, a peça apresenta questões caras à
comédia realista: a defesa da família e do casamento
por amor, sem interesse financeiro que o
impulsionasse, o que era chamado em tal escola
teatral de question d’argent. Há também uma defesa da
arte brasileira, em uma crítica à importação e
assimilação de tudo o que fosse estrangeiro, sem
qualquer critério, embora Alencar não negasse que o
ponto de partida fosse os padrões europeus.
Tal crítica vem materializada na peça pela
personagem de Azevedo, indivíduo abastado a quem
Henriqueta é prometida em casamento pelo pai
endividado. Azevedo é europeizado e prima,
segundo a peça, pelo ‘mau costume de falar metade
em francês e metade em português’, mania que
trouxe de Paris e que o ridiculariza. O embate entre
Eduardo e Azevedo, portanto, não se dá somente
pelo amor de Henriqueta, mas também na defesa da
arte nacional em face da arte estrangeira, como se
denota do diálogo abaixo transcrito da cena XIII do
ato III:
AZEVEDO: Uma caricatura, naturalmente... Não há
arte em nosso país.
ALFREDO: a arte existe, Sr.Azevedo, o que não
existe é o amor dela.
AZEVEDO: sim, faltam os artistas.
ALFREDO: Faltam os homens que os
compreendam; e sobram aqueles que só acreditam e
estimam o que vem do estrangeiro.
AZEVEDO: (com desdém) Já foi a Paris, Sr.
Alfredo?
ALFREDO: Não, senhor; desejo, e ao mesmo
tempo receio ir.
AZEVEDO: Por que razão?
ALFREDO: Porque tenho medo de, na volta,
desprezar o meu país, ao invés de amar nele o que há
de bom e procurar corrigir o que é mau
(ALENCAR, 1960, p. 118).
Assim, como afirmado por Faria (1987), O
demônio familiar, embora escrito sob a cartilha do
realismo teatral francês, não deixa de defender um
programa de nacionalização da arte brasileira. Assim,
Alencar busca o equilíbrio entre a adoção de um
modelo europeu e a defesa de caracteres brasileiros
inseridos dentro desse modelo, esforço que também
conduziria boa parte de sua obra literária.
Além da moralidade da peça e da defesa da arte
nacional dentro de um modelo originariamente
francês, outro elemento destacado da peça e muito
comentado à época da encenação foi o desfecho da
peça, no qual o escravo Pedro, após tantas confusões
e peripécias que acabam mais prejudicando seu
patrão Eduardo do que o ajudando, acaba sendo
‘punido’ com a liberdade, transcrito da cena XVII do
ato IV:
EDUARDO: Os antigos acreditavam que toda a casa
era habitada por um demônio familiar, do qual
dependia o sossego e a tranqüilidade das pessoas que
nela viviam. Nós os brasileiros, realizamos
infelizmente esta crença; temos no nosso lar
doméstico esse demônio famílias. Quantas vezes não
partilha conosco os carícias de nossas mães, os
folguedos dos nossos irmãos e uma parte das afeições
da família! Mas vem um dia, como hoje, em que ele
na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz
doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação,
de todos esses objetos santos, um jogo de criança.
Este demônio familiar de nossas casas, que todos
conhecemos, ei-lo. (...) EDUARDO: Por que, minha irmã? Todos devemos
perdoar-nos mutuamente; todos somos
culpados por havermos acreditado ou consentido no
fato primeiro, que é a causa de tudo isto.
O único inocente é aquele que não tem imputação, e
que fez apenas uma travessura de criança, levado
pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do
autônomo homem; restituo-o a sociedade, porém
expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para
sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é
tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje
em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente
sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta
severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do
trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos
que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão)
(ALENCAR, 1960, p. 135-136).
Referido desfecho, à época, foi considerado por
muitos como antiabolicionista, por Alencar tratar a
liberdade concedida a Pedro como uma punição.
De fato, o escritor era conhecido como conservador
e, portanto, contrário à ideia abolicionista, por
considerar que a simples extinção do regime
escravista jogaria no mercado de trabalho milhares
de pessoas sem preparação e condições para manterse
dignamente. Alencar, no entanto, defendia
também uma solução por ele considerada
intermediária, com a extinção gradual da escravidão
e a incorporação do liberto à sociedade. Trata-se
ainda de uma posição conservadora, mas que não
poderia, principalmente na época em que o escritor
viveu, ser considerada como reacionária, tampouco o
desfecho concebido para a peça, como relatado por
R. Magalhães Junior, em José de Alencar e sua época
(FARIA, 1987, p. 49).
Ou, como afirmado por Magaldi:
O demônio familiar, que passou em julgado como uma
das melhores comédias brasileiras de todos os tempos,
suscita discussões quanto à sua exegese. Viram-lhe logo
um cunho abolicionista, que outros críticos timbraram,
mais tarde, em contestar. A nosso ver, é impossível não
distinguir na peça a condenação do cativeiro, embora o
autor o tenha feito com as armas próprias do ficcionista.
[...] A ‘tese’ de Alencar é revolucionária: integra o
escravo, com iguais direitos e deveres do senhor, na
sociedade, fazendo dele um cidadão brasileiro. Nessa
convicção, como em tantas outras de sua obra, o
escritor mostrou o seu profundo e progressista instinto
da nacionalidade (MAGALDI, 1997, p. 101-102, grifo
do autor).
Como em uma boa comédia realista, como esta,
o texto e a força do palco constituem espaço da
defesa de valores e teses, como transformação social.
A conclusão de Magaldi, a nosso ver, é precipitada,
pois Alencar não estava tão preocupado com as
condições dos libertos, mas com as consequências da
libertação: prova disso é que Alencar militou suas
ideias não apenas nos palcos, mas também pelos
jornais, em suas cartas políticas ao imperador, quando
assume o pseudônimo de Erasmo. Foram sete cartas
e em pelo menos três delas o assunto é a libertação
dos escravos. Dentre outras ideias, Alencar ou
Erasmo considerava o cativeiro uma ‘instituição
justa, útil e moral’, que sem escravos não teria sido
possível a colonização do continente e que a América
seria, então, um ‘vasto deserto’, chegando a ponto de
afirmar que a escravidão, em verdade, teria trazido
inúmeros ‘benefícios’ aos escravizados, como o
contato da ‘raça bárbara’ com uma ‘raça branca’, o
que aceleraria o seu processo de ‘evolução cultural’.
Alencar acreditava que a abolição não poderia ser
apressada por decretos ou leis, mas que seria
resultado da ação natural do tempo, com a raça
negra, em menor número, sendo absorvida pela raça
branca, após gerações de cruzamentos inter-raciais.
O maior temor do escritor era de que a abolição
jogasse o Brasil em um caos econômico e social,
com a possibilidade até mesmo de uma insurreição
civil, a médio ou a longo prazo. Assim, a afirmação
de Magaldi soa, no mínimo, ingênua.
Nesse sentido, Faria mostra-se mais equilibrado
ao afirmar:
Parece não haver dúvidas quanto ao caráter
abolicionista de O demônio familiar, afirmado pelo
próprio autor e reconhecido por vários críticos.
Contudo, é preciso esclarecer o seguinte: Alencar
não abordou os verdadeiros ‘perigos e horrores’ da
escravidão, mas o seu lado ameno, colocando no
centro da ação um escravo travesso, movido por um
objetivo fútil. Assim, embora a comédia condene a
instituição do cativeiro, a questão é vista pelo lado do
senhor, ou seja, ‘a escravidão é condenada, em
primeiro lugar, pelo mal que faz aos patrões’. Não é
sem motivo, pois, que Pedro é caracterizado como
um elemento perigoso para a estabilidade da família
de Eduardo. Em um sentido mais geral equivaleria
dizer: a presença do escravo no seio da família
brasileira é uma ameaça constante à paz doméstica,
pois introduz nos lares a calúnia, a perfídia, a
bisbilhotice, a intriga. Aos laivos abolicionistas que
são inerentes ao enredo e fecho da comédia, Alencar
sobrepõe a tese da defesa da família, enquanto
instituição social moralizadora e civilizadora
(FARIA, 1987, p. 50-51, grifo do autor).
O polêmico desfecho de O demônio familiar, na
verdade, reflete claramente as ideias de Alencar sobre
a escravidão: embora os autores acima citados, cujas
análises devem ser respeitadas, tentem amenizar as
intenções do dramaturgo, a verdade é que a
liberdade para o escravo equivale a um castigo, em
face das tentativas de Pedro em desestabilizar a família e o casamento, por força do dinheiro.
Ou seja, Pedro é o desestabilizador que cria o conflito
necessário à movimentação da trama. As posições
defendidas por Erasmo em suas Cartas ao imperador
estão presentes na peça, com Eduardo fazendo o papel
do Estado ao decretar artificialmente a liberdade de
Pedro.
Nesse sentido, em A comédia nacional no teatro de
José de Alencar, Flávio Aguiar cita Décio de
Almeida Prado, o qual afirma que Alencar, nesta
peça, olha muito mais o problema da escravidão
pelo ponto de vista ‘branco’, considerando a
escravidão como um mal social muito mais do
ponto de vista do senhor branco e da manutenção
da pureza familiar. Afirma o autor:
A atitude de Alencar, liberal e paternalista, é
perfeitamente evidenciada pelo tom e pelo enredo de O
demônio familiar, uma peça sem dúvida abolicionista, mas
que vê a questão, sobretudo, pelo lado do senhor. A
escravidão é condenada, em primeiro lugar, pelo mal
que faz aos patrões, introduzindo em seus lares a
mentira, a alcovitice, o mexerico, a intriga. Pedro não se
limita a malquistar a família, a criar inimizades, a
desfazer casamentos projetados. Tem uma influência
perniciosa sobre a própria estrutura familiar, ensinando
Jorge a enganar os pais, colocando bilhetes amorosos
nos bolsos de Carlotinha (AGUIAR, 1984, p. 74).
Apoiado em tal afirmação, Flávio Aguiar apresenta
um argumento interessante:
Aqui está uma questão central para o conjunto do teatro
de Alencar. O senhor branco, ao dar liberdade par o
escravo negro, liberta-se da condição de ser escravo do
escravo. Isto significa que o movimento próprio da
comédia – que é o de integrar o herói na sociedade que
ele mesmo ajuda a transformar em desejável – é
complementado por outro, de caráter ascensional. Este
segundo movimento é o do próprio microcosmo da
peça, ou seja, o universo das pessoas representadas no
placo, que ascende de um mundo ínfero, confuso,
atrapalhado, demoníaco – que é o mundo da escravidão
– a um mundo bem-aventurado, iluminado, claro,
arejado, onde tudo está no seu lugar – que é o mundo
do trabalho livre e, por consequência, do senhor livre
de seu escravo. Este movimento, que se dá no
microcosmo da peça, se apresenta como o movimento
desejável para a sociedade como um todo, que é o
horizonte da ação. Esta é, portanto, a ação desta peça,
realizada em pequena escala, na família de fato
representada, mas projetada, em grande escala, para o
conjunto da sociedade nacional: a ascensão a uma
melhor forma de organização social, tida como mais
civilizada, como culturalmente mais elevada, como
libertadora frente à ‘prisão moral’ da escravidão
(AGUIAR, 1984, p. 74-75, grifo do autor).
A transcrição é longa, mas necessária, na medida
em que Aguiar faz uma perspicaz reflexão acerca do
intuito do texto, em paralelo com as observações de
João Roberto Faria anteriormente comentadas.
De fato, o teatro realista, do qual Alencar adota o
modelo e o molde, constitui-se, sobretudo, pelo
poder que os autores teatrais da época supõem que o
drama tenha como divulgador de ideias acerca de
uma sociedade imaginada como a correta, em um
tempo em que se valorizava o teatro como
disseminador de uma ideologia, ainda que seja a
ideologia da burguesia ascendente.
Trata-se, enfim, da primeira comédia realista
brasileira, na qual Alencar adota não só o modelo
francês, tornando-o mais palatável ao gosto nacional,
sem deixar de lado as questões inerentes a essa escola
dramática, com a defesa dos valores burgueses, como
a família e o casamento, bem como a question d’argent
e a preocupação com a doutrinação social.
No aspecto cênico, o jogo de cena mais fluido, as
situações mais naturais e a interpretação menos
grandiloquente dos atores, surtindo o efeito do que
Martin Esslin denomina o drama, como a ‘realidade
representada’.
Mas nem tudo seria sucesso para o maior
dramaturgo brasileiro do século XIX. A fim de
seguir com seu projeto realista para o teatro
brasileiro, Alencar traz a lume uma peça com outro
tema polêmico, mas que não teria a mesma
repercussão, principalmente por parte do Estado,
gerando o desencanto e a queda do autor, como se
verá a seguir.
As asas de um anjo: a prostituição como tabu e o sofrimento
de um decaído
Após o sucesso de O demônio familiar, Alencar
viria a lançar no mesmo ano de 1857 a peça O crédito,
a qual, ao contrário de sua antecessora, resultaria em
grande fracasso de público. Depois da estreia, em 19
de dezembro de 1857, seria encenada apenas duas
vezes, logo na semana posterior sendo,
melancolicamente, retirada de cartaz.
Tamanho fracasso que se seguiu a tão
retumbante sucesso terminaria por afetar a
personalidade suscetível de Alencar, que, em 1858,
encaminha ao Conservatório Dramático, órgão
oficial responsável pela aprovação ou censura dos
espetáculos, os originais daquele que o escritor
nomeava como sua última peça teatral, acompanhada
de uma justificativa na qual anunciava o fim de sua
carreira como dramaturgo e os motivos que
acreditava serem suficientes para tal decisão.
A peça, no caso, é As asas de um anjo, que conta a
história de Carolina, moça pobre que foge da casa dos pais e entrega-se à prostituição. A família
desmorona, o pai entrega-se ao álcool. Cortejada por
ricos e poderosos, Carolina se vê pobre a
abandonada. Termina casando-se com Luís, primo
que sempre a amara e de quem obtém perdão por
seu passado de vícios. Na cena mais polêmica da
peça, o pai de Carolina, bêbado, não a reconhece e
tenta possuí-la à força.
Ao analisar a peça, o Conservatório Dramático
liberou a sua apresentação, ressaltando que, apesar
do tema polêmico, distinguiam-se no texto o alcance
moralizador e a originalidade da ideia. Quanto à
originalidade, a afirmação é questionável, já que o
próprio Alencar declina as fontes nas quais bebeu
para compor sua peça. Neste sentido, afirma Sábato
Magaldi:
A organização burguesa, sobretudo nas relações entre os
sexos, abriu as suas feridas, e As asas de um anjo as expôs
ao julgamento público. O autor conhecia bem os
vínculos de sua peça com as criações européias da
mesma família, tendo assim definido a sua
contribuição: ‘Victor Hugo poetizou a perdição na sua
Marion Delorme; Alexandre Dumas Filho enobreceu-a
n’A dama das camélias; eu moralizei-a n’As asas de um anjo;
o amor, que é a poesia de Marion, e a regeneração de
Margarida, é o martírio de Carolina (sua protagonista);
eis a única diferença, não falando do que diz respeito à
arte, que existe entre aqueles três tipos’ (MAGALDI,
1997, p. 104, grifo do autor).
Não obstante as fontes nobres das quais Alencar se
servira e o intuito declaradamente moralizador da peça,
fato é que parte do público, mesmo assim, ficou
escandalizada. Após duas apresentações, em 30 de maio
e 3 de junho de 1858, a peça foi retirada de cartaz, sob a
alegação de que um dos atores ficara doente e que não
seria possível substituí-lo. No retorno das
apresentações, em 17 de junho de 1858, o chefe de
polícia da corte, Izidro Borges Monteiro, determinou
fossem as portas do teatro fechadas no dia seguinte, em
nome da moralidade pública. Alencar reagiria
escrevendo um artigo em 22 de junho de 1858, no
Diário do Rio de Janeiro, no qual criticaria a proibição da
peça, argumentando que montagens já exibidas no
Brasil de A dama das camélias, de Alexandre Dumas
Filho, e de As mulheres de mármore, de Lambert Thiboust
e Théodore Barrière, teriam obtido enorme sucesso
sem qualquer intervenção governamental, enquanto
que sua peça teria sido rotulada como um espetáculo
pornográfico. “Esqueci-me, porém, que tinha contra
mim um grande defeito, e era a ser a comédia produção
de um autor brasileiro”, afirmou Alencar (apud
NETO, 2006, p. 191).
Afirmaria ainda Alencar, nesse artigo, que apenas
retratava o vício e a imoralidade presentes na
sociedade e que a peça trazia tais aspectos para os
palcos, objetivo maior de toda comédia realista.
Escreveu, assim, que
[...] o espectador encontra a realidade diante de seus
olhos, e espanta-se sem razão, de ver no teatro, sobre a
cena, o que vê todos os dias à luz do sol, no meio da
rua, nos passeios e espetáculos (ALENCAR apud
NETO, 2006, p. 191).
Além da reação do próprio autor da peça, outras
vozes se ergueram contra o ato de censura, como a
de Quintino Bocaiúva, por exemplo, que também
publicou artigos no mesmo Diário do Rio de Janeiro,
defendendo a peça de Alencar e atacando a
proibição.
Nada disso, porém, surtiu maior efeito. A peça
continuou proibida por muitos anos e não restou
alternativa a Alencar senão publicá-la em forma de
livro. Sabe-se também que As asas de um anjo não
seria a última peça de Alencar. Ele ainda traria a
lume O que é o casamento, Mãe e sua última peça, O
jesuíta, considerada por muitos seu melhor trabalho.
Mas o fato é que, malgrado toda a polêmica
associada à peça, a verdade é que esta não se justifica:
em contraposição à leveza da composição e a
agilidade dos diálogos de O demônio familiar, em As
asas de um anjo vemos um Alencar tentando, na
precisa definição de João Roberto Faria, conciliar o
inconciliável.
Para demonstrar tal assertiva, seguiremos o
caminho do autor citado e faremos uma comparação
entre o papel desempenhado pela prostituta na
literatura romântica e no teatro realista, chegando à
conclusão de que as soluções dramáticas propostas
por Alencar soam inverossímeis e até mesmo
contrárias à escola realista que o autor dizia seguir.
Tudo em nome do viés moralizante que também faz
parte da proposição do realismo dramático, levando
Alencar a uma contradição da qual não conseguiu se
desincumbir a contento.
Analisemos, portanto, as peças que originaram as
ideias tratadas por Alencar em As asas de um anjo. Em
A dama das camélias, representada em Paris no ano de
1852, de autoria de Alexandre Dumas Filho, ainda
que a naturalidade de algumas cenas e o preceito
moralizador nos digam que se trata de uma peça que
segue a escola realista, da qual a peça foi um divisor
de águas no que diz respeito ao realismo teatral, não
há como não observar uma boa dose de romantismo
na composição da personagem Marguerite Gautier,
cortesã apaixonada e regenerada pelo amor, o
verdadeiro símbolo de queda e ascensão tão caro à
estética romântica.
Desse ponto de vista, Dumas Filho foi
contestado por Theodore Barrière e Lambert Thisboust, que escreveram As mulheres de mármore,
em 1853. A trama da peça é centrada na paixão de
um jovem escultor pela prostituta Marco, retratada
aqui não com a capacidade de amar de Marguerite,
mas como alguém sem caráter, incapaz de amar
desinteressadamente. A peça em questão faz uma
defesa intransigente da moral burguesa, com a defesa
da família e do casamento, bem como a total
condenação à cortesã, que não pode se salvar sequer
pelo amor, pois não é capaz de senti-lo, como a
personagem de Dumas Filho. Nesse texto, os
autores também apresentam uma espécie de
personagem que seria muito utilizada por alguns
autores realistas, inclusive por Alencar em As asas de
um anjo: trata-se do raisonneur, – na peça em questão,
o nome dessa personagem é Desgenais –, cuja
função é comentar os fatos que presencia na ação
dramática, emitindo as opiniões dos autores.
Portanto, o papel da cortesã na sociedade
burguesa da época encontra seu campo de embate
nas ideias romântica e realista, papel este que Alencar
destacou em As asas de um anjo. Assim, não obstante
o declarado realismo da peça e das intenções de
Alencar, certo é também que o escritor é um
romântico por formação e acredita na regeneração da
prostituta e em sua integração à sociedade burguesa,
mas não sem o devido ‘castigo’ por seu
comportamento pregresso, como será comentado
adiante.
Nesse sentido, novamente precisas são as
palavras de João Roberto Faria:
Diante do que expusemos, não há como fugir à
constatação de que a prostituta, no teatro de ficção
romântica, era capaz de amar com dignidade e
pureza, enquanto que no realismo teatral era
retratada como um ser desprovido de qualquer
sentimento nobre. Está claro para nós que a
dramaturgia realista, repudiando o mito romântico
da cortesã regenerada pelo amor, colocava-se
abertamente a serviço da sociedade burguesa, pois,
ao mesmo tempo em que espicaçava um dos seus
mais terríveis inimigos, procurava também revelar ao
espectador/leitor as vantagens do casamento e da
vida em família. [...] Alencar, que já havia
transplantado para a nossa dramaturgia a question
d’argent, assumiu mais uma vez, ao escrever As asas de
um anjo, o papel pioneiro de incorporar um
problema da civilizada Europa aos nossos atrasados
trópicos. Em sua peça, procurou mostrar que a nossa
vida urbana – ou pelo menos a da corte –, à
semelhança da parisiense, tinha também as suas
mulheres de mármore, ou seus anjos decaídos,
ameaçando a vida plácida da família burguesa
brasileira e contaminando inclusive os mais
humildes. Ocorre, porém, que Alencar não se
limitou a apresentar essa visão negativa da cortesã,
comum às peças do realismo teatral. Sua formação
era romântica, não esqueçamos, e isso o levou a
considerar também a figura da cortesã boa de
coração, capaz de se regenerar e de ter sentimentos
puros (FARIA, 1987, p. 78-79).
Alencar apresenta estes dois lados da moeda em
sua peça. Carolina, rebelde e aventureira, concentra
todo o lado romântico da peça e se assemelha muito
mais à Marguerite de Dumas Filho. Por sua vez,
Helena, a experiente cortesã que encaminha
Carolina ao mundo da prostituição, tem muito mais
da Marco de As mulheres de mármore e, por
consequência, da estética puramente realista, como
uma legítima ameaça à estável moral burguesa de
então. Em contraposição ao romantismo de Carolina
encontra-se a racionalidade de Luís, que encarna os
valores mais caros à sociedade da época, como a
estabilidade nos negócios, o trabalho, o apego à
família e ao casamento.
É o caso do episódio abaixo transcrito, em que
Luiz defende os valores caros à escola realista,
enquanto Carolina permanece atada à
impossibilidade de reintegração, cena transcrita do
segundo ato, cena VI:
Carolina – Fale; não tenho receio.
Luís – Todos nós, Carolina, homens ou mulheres,
velhos ou moços, todos sem exceção, temos
faltassem nossa vida; todos estamos sujeitos a
cometer um erro ou praticar uma ação má. Uns,
porém, cegam-se ao ponto de não verem o caminho
que seguem; outros se arrependem a tempo. Para
estes o mal não é senão um exemplo
e uma lição: ensina a apreciar a virtude que se
desprezou em um momento de desvario. Estes
merecem, não só o perdão, porém muitas vezes a
admiração que excita a sua coragem.
Carolina – Não, Luís; há faltas que a sociedade não
perdoa, e que o mundo não esquece nunca. A minha
é uma destas.
Luís – Está enganada, Carolina. Se uma moça que,
levada pelo seu primeiro amor, ignorando o mal,
esqueceu um instante os seus deveres, volta
arrependida à casa paterna; se encontra no coração de
sua mãe, na amizade de seu pai, na afeição dos seus,
a mesma ternura; se ela continua a sua existência
doce e tranqüila no seio da família; por que a
sociedade não lhe perdoará, quando Deus lhe
perdoa, dando-lhe a felicidade?
Carolina – Nunca ela poderá ser feliz! A sua vida
será uma triste expiação.
Luís– Ao contrário, será uma regeneração. Em vez da
paixão criminosa que a rouba de seus pais, ela pode
achar no seio de sua família o amor calmo que
purifique o passado e lhe faça esquecer a sua falta
(ALENCAR, 1960, p. 250-251).
Tal embate de conceitos e de possibilidades
também se dá entre Carolina e Meneses, o raisonneur
da peça, uma imitação do Desgenais, também jornalista, de As Mulheres de Mármore. Boa parte do
terceiro ato constitui uma disputa verbal entre
Meneses e a heroína, como no seguinte diálogo:
Meneses – Ri; é o melhor; não tomes isto a sério.
Carolina – Como quiserem; para mim é indiferente!
Essa sociedade de que o senhor me fala, eu a
desprezo.
Araújo – Porque a repele!
Carolina – Porque vale menos do que aquelas que
ela repele do seu seio. Nós, ao menos, não trazemos
uma máscara; se amamos um homem, lhe
pertencemos; se não amamos ninguém, e corremos
atrás do prazer, não temos vergonha de o confessar.
Entretanto as que se dizem honestas cobrem com o
nome de seu marido e como respeito do mundo os
escândalos da sua vida. Muitas casam por dinheiro
com o homem a quem não amam; e dão sua mão a
um, tendo dado a outro sua alma! E é isto o que
chamam virtude? É essa sociedade que se julga com
direito de desprezar aquelas que não iludem a
ninguém, e não fingem sentimentos hipócritas?...
Araújo – Têm o mérito da impudência!
Carolina – Temos o mérito da franqueza. Que
importa que esses senhores que passam por sisudos e
graves nos condenem e nos chamem perdidas?... O
que são eles?... Uns profanam a sua inteligência,
vendem a sua probidade, e fazem um
mercado mais vil e mais infame do que o nosso,
porque não tem nem o amor nem a necessidade por
desculpa; porque calculam friamente. Outros são
nossos cúmplices, e vão, com os lábios ainda úmidos
dos nossos beijos, manchar a fronte casta de sua
filha, e as carícias de sua esposa. Oh! Não falemos
em sociedade, nem em virtude!... Todos valemos o
mesmo! Todos somos feitos de lama e amassados
com o mesmo sangue e as mesmas lágrimas!
Meneses – Não te iludas, Carolina! Esse turbilhão
que se agita nas grandes cidades; que enche o baile, o
teatro, os espetáculos; que só trata do seu prazer, ou
do seu interesse; não é a sociedade. É o povo, é a
praça pública. A verdadeira sociedade, da qual
devemos aspirar a estima, é a união das família
honestas. Aí se respeita a virtude e não se profana o
sentimento; aí não se conhecem outros títulos que
não sejam a amizade e a simpatia. Corteja-se na rua
um indivíduo de honra duvidosa; tolera-se numa
sala; mas fecha-se-lhe o interior da casa (ALENCAR,
1960, p. 258-259).
É possível notar, no discurso de Meneses, a
tentativa de mascarar os aspectos da sociedade
burguesa que são desmascarados por Carolina, como
os casamentos por dinheiro e o falso moralismo.
Todavia, o discurso de Alencar é orientado, através
de Menezes, no sentido de que tais aspectos são
apenas parte do funcionamento de uma estrutura
social à qual todos devem se adaptar. Trata-se de
uma visão maniqueísta da realidade, tentando
idealizar uma sociedade burguesa baseada na ‘união
das famílias honestas’. Como observado por João
Roberto Faria, essa concepção doutrinadora do
teatro termina por prejudicar o desenvolvimento
dramático da obra, pois este intuito muitas vezes leva
o escritor a encontrar soluções dramáticas artificiais,
inverossímeis, apenas para não se desviar da lição
moral que pretende transmitir.
Para servir ao propósito moralizador do qual o
texto se incumbe, Alencar adota a solução clássica de
submeter a rebelde heroína a todo tipo de
sofrimento: Carolina perde tudo, fica doente, não
sem antes sofrer uma tentativa de estupro do pai
bêbado, que não a reconhece no escuro, em uma
cena polêmica à época, mas tão forçada e
inverossímil que se descola de todo o frágil restante
da peça. Ao final, casa-se com Luís, em uma
redenção de sua vida anterior, mas tendo como
‘punição’ por seus atos a ausência de sexo no
relacionamento. Tamanha fragilidade dramática em
benefício da doutrinação moral burguesa foi bem
apontada por Sábato Magaldi:
A mentalidade retrógrada deve ter influído no
escritor, que, apesar da audácia básica, impôs severos
freios morais ao desfecho. Consentiu ele no
casamento da heroína, redimida dos tempos de
prostituição. Mas, se foi pelo sexo que ela pecou, a
completação carnal lhe seria agora vedada. O próprio
marido, preso a um código que incide para nós em
absoluta verossimilhança, considera-a irmã, não
esposa. E resume a felicidade dela nos cuidados com
a filha, nascida da união com o antigo sedutor: ‘Sê
mãe!...’ – nessa amputação de uma existência total
estava a única possibilidade de volta da decaída à vida
familiar (MAGALDI, 1997, p. 105, grifo do autor).
Deste modo, Alencar tenta conciliar o ideal
romântico da regeneração da mulher decaída com o
instituto moralizador do teatro realista. E o resultado
soa absolutamente irreal, antinatural, ao contrário do
que pregava a escola dramática na qual Alencar se
considerava inserido. E ainda temos o fato de que na
tentativa de moralizar a conduta da prostituta,
Alencar impôs a ela como punição o casamento,
justamente uma das instituições defendidas pelo
escritor. Por fim, a personagem Carolina, que sofre
por amor e se resigna com o sofrimento, mostra que
o rebelde romantismo acaba por desequilibrar o
universo moralizante e linear do realismo teatral.
Este foi um problema que Alencar não conseguiu
resolver.
Considerações finais: um realista por convicção, um
romântico por hábito
Feitas tais considerações, a pergunta é inevitável:
José de Alencar foi o primeiro dramaturgo realista
do Brasil, como ele mesmo se definia? 
Antes de apresentar a resposta, é preciso entender
que o enquadramento de determinado autor em
uma escola, seja ela literária, dramática, ou sob
qualquer outro prisma, mostra-se um expediente
sujeito a inúmeras variações. É preciso entender
também que, no século XIX em que Alencar viveu e
produziu a sua obra, eram comuns as tentativas de
classificação e enquadramento, a reboque do
positivismo da época. Deste modo, Alencar assumiu
pertencer a uma escola crítica já existente e dela
assumiu seus preceitos. Mas um autor não se torna
realista simplesmente dizendo que o é.
Em Uma Anatomia do Drama, Martin Esslin
afirma:
Há duas espécies diferentes de termos críticos dessa
natureza: os que foram deliberadamente criados
como recursos programáticos ou como rótulos ou
lemas de grupos ou escolas de dramaturgos ou
artistas, e aqueles que são meramente descritivos e
originam-se de uma necessidade de impor alguma
ordem a uma série de características espontâneas já
existentes (ESSLIN, 1978, p. 63).
Esslin apresenta como exemplo de sua afirmação
uma comparação entre o romantismo alemão,
tributário de um movimento que recebeu diversas
influências, mas que não tinha um programa
definido, e o romantismo francês, herdeiro do
romantismo alemão, que foi lançado por um grupo
de escritores com uma forma programática definida.
Teoricamente, pode-se dizer que classificar um
objeto dentro de uma perspectiva, em muitos casos,
apenas aumenta a nebulosidade da classificação.
Assim, as peças ditas realistas de Alencar possuem
também claros toques românticos na composição
das personagens e no encadeamento de situações. É
bom que se diga, aliás, que o realismo na
dramaturgia nasceu espontaneamente e o termo
‘realismo’ surgiu post factum, ao passo que o
naturalismo que o sucedeu, capitaneado por Émile
Zola, tinha um programa de ação claramente
definido, qual seja, a aplicação do espírito positivista
e cientificista da época à literatura.
Alencar considerava-se um realista, herdeiro da
escola iniciada por Alexandre Dumas Filho, a quem
considerava seu mestre. Havia um atrito, contudo,
entre a estética realista adotada pelo escritor e a
composição romântica de algumas personagens, bem
como determinadas soluções dramáticas
inverossímeis e voltadas para o grandiloquente,
características típicas do teatro romântico.
Entendemos que é nesse atrito, nesse conflito, nos
acertos e mesmo nos erros que se sucederam, que
reside a importância da obra de Alencar para o
teatro.
Ou, como afirmou Magaldi:
O julgamento artístico de sua obra teatral apresenta,
a nosso ver, saldo amplamente favorável. É preciso
considerar que Alencar abandonou a dramaturgia
ainda muito jovem, e a insistência no gênero teria
aprimorado as suas imensas virtudes. Encontram-se
nas peças, lado a lado, exemplos de romantismo e de
realismo, e a segunda escola, se lhe deu instrumentos
mais precisos para que se desmontasse o mecanismo
social, trouxe também o que há de pior nas peças: a
figura do raisonneur, comentarista da ação segundo a
perspectiva do autor ou da sociedade. Sem a beleza
poética do coro antigo e transmitindo quase sempre
ensinamentos éticos simplórios, esse tipo de
personagem entrava os diálogos com frases
grandiloqüentes e uma presença abstrata, difícil de
tolerar. [...] O talento do romancista, afeito aos
grandes painéis enovelados, não se simplifica no
teatro em tramas pobres e elementares. Em qualquer
peça revela-se a capacidade fabuladora do
dramaturgo. Lança ele no palco numerosas
personagens, e cada uma cumpre sua função
dramática, num jogo complexo de inter-relações
(MAGALDI, 1997, p. 111).
Se Alencar usa dos recursos realistas colocados a
sua disposição, foi principalmente, como o próprio
autor afirma mais de uma vez em seus escritos, para
retratar um panorama da sociedade brasileira de
então. Mas Alencar também pretende pregar as
virtudes da sociedade burguesa no Brasil do século
XIX e para tanto não hesita em apresentar seus
preceitos morais, conceituando não só o que viria a
ser uma sociedade virtuosa, com a família centrada
no casamento, no dinheiro usado racionalmente e
sem ganância e ainda a baixa tolerância a desvios
sociais.
O escritor, entretanto, era também um
romântico. Devemos nos lembrar que à sua
produção teatral antecedeu a publicação de O
Guarani, romance folhetinesco, de lances grandiosos
e inverossímeis, tendo como herói um fidalgo em
pele de índio, livre e com um código moral próprio,
que nem sempre coincide com os ditames de uma
sociedade regida por máscaras. Assim, se em O
demônio familiar o escravo Pedro reconhece os
códigos sociais e os manipula de forma a conseguir
determinado objetivo, em As asas de um Anjo,
Carolina se mostra a heroína romântica de uma
trama realista, deslocada e rebelde dentro do
contexto social no qual está inserida, sofrendo duras
consequências por seus atos.
Trata-se de uma trajetória irregular, mas que
parece fechar um círculo dentro da obra
dramatúrgica de Alencar, no qual O demônio familiar
representa um precoce ápice e As asas de um anjo um
ponto de ruptura e um começo da irregularidade e,por fim, decadência, que o autor tentaria a todo
custo evitar.
A resposta à pergunta feita no começo deste
item, portanto, é sim e não. Sim porque Alencar
foi um adepto da escola teatral realista e a iniciou
de forma brilhante no Brasil, com Rio de Janeiro,
verso e reverso e, especialmente, com O demônio
familiar. Mas Alencar, em verdade, nunca deixou
de ser um romântico, o que, se de um lado
prejudicou o desenvolvimento de alguns de seus
trabalhos, como As asas de um anjo, de outro lado
tornou mais rica a análise e compreensão de sua
obra teatral.
Finalmente, todas as tentativas empreendidas
pelo autor em temperar o realismo teatral e as
soluções românticas foram, pode-se dizer,
essenciais à compreensão de Alencar dos anseios e
aspirações do público que o autor pretendia
atingir, pois o teatro é uma forma ainda
inigualável de interação entre autor e público,
atraindo diversos elementos que depois
auxiliariam a produção posterior do artista,
aprimorando-a. A obra de um dos maiores
escritores brasileiros e maior dramaturgo
brasileiro do século XIX compõe um mosaico de
acertos e erros que somente a qualifica ainda mais,
e que a torna única para cada espectador, ou leitor.


Referências
AGUIAR, F. A comédia nacional no teatro de José de
Alencar. São Paulo: Ática, 1984.
ALENCAR, J. Obra completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar,
1960. v. 4.
ALENCAR, J. Melhores crônicas. Dir. de Edla van
Steen. Seleção de João Roberto Faria. São Paulo: Global,
2003.
ALENCAR, J. Ao correr da pena. Edição preparada por
João Roberto Faria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. São
Paulo: Martins, 1969. v. 2.
ESSLIN, M. Uma anatomia do drama. Tradução de
Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
FARIA, J. R. José de Alencar e o teatro. São Paulo:
Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
MAGALDI, S. Panorama do teatro brasileiro. 3. ed.
São Paulo: Global, 1997.
NETO, L. O inimigo do rei. São Paulo: Globo, 2006.
Received on August 5, 2010
Accepted on April 13, 2012 

Douglas Ricardo Hermínio Reis 

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