terça-feira, 24 de março de 2015

Te Contei, não ? - A Democracia Inconclusa

O político e jornalista Aristides Lobo escreveu que o povo assistira “bestializado, atônito, surpreso” aos acontecimentos da Proclamação da República, em 1889. Não foi o caso da transição para a democracia, em meados dos anos 1980. Na linguagem da época, a transição se deu “pelo alto”, ainda que hoje nos reste a imagem dos milhões de pessoas nas ruas, ao embalo do canto emocionado de Fafá de Belém.

Nossa democracia é fruto de alguns acertos e uma nota triste. O cansaço dos generais, a derrota da esquerda revolucionária, a fixação de Geisel e Golbery em conduzir, desde meados dos anos 1970, uma “distensão lenta e gradual”, a reestruturação partidária de 1979. Finalmente o grande movimento de massas pelas Diretas, o colégio eleitoral, e logo a morte de Tancredo Neves. “Alguma coisa havia mudado no país”, observou Francisco Weffort, em seu livro Por que democracia?, de 1984. Se o ciclo militar era uma página virada, o mesmo podia ser dito da ideia da “revolução”. O Brasil havia encontrado um “novo jeito de caminhar”.  Weffort busca a alegoria do poeta Thiago de Mello para dizer que esse “novo jeito” era uma escolha. Uma escolha e um grande consenso, inédito, na história republicana, em torno da ideia da democracia.
Uma escolha que deu certo, sem a menor sombra de dúvida. Os tempos são de desencanto, estagnação econômica, de Operação Lava Jato e profunda crise ética do país. Observando-se em perspectiva, porém, não é difícil reconhecer os avanços da democracia inaugurada em 1985. O país promulgou sua Constituição, em 1988, e a fez cumprir, com erros e acertos. Enfrentou e superou o impeachment de um presidente, venceu a inflação e multiplicou por cinco a renda per capita. Preservamos uma Justiça Eleitoral confiável, geramos políticas de Estado em meio à alternância de partidos rivais, e a palavra “golpe” sobrevive apenas como retórica malandra – ainda que irresponsável – no cotidiano do nosso pequeno embate político.
O Brasil mudou, e muito, nestes últimos 30 anos. Quem desembarcasse por aqui para assistir à posse do presidente José Sarney, naquele 15 de março de 1985, encontraria um país com um terço da população vivendo no campo, 35% abaixo da linha de pobreza e menos de 4% com um diploma universitário. Três décadas depois, somos um país urbano, com mais de 85% da população vivendo em cidades, tendo-se alcançado 12% de brasileiros com um curso superior.
Na comparação internacional, ainda vivemos no andar de baixo. Os países da OECD dispõem, em média, de 32% da população com diploma universitário. Temos sido habitualmente lentos na mudança e na  inovação social. De qualquer modo, nos tornamos um país de renda média. Nossa democracia contou com o destino: seu tempo  coincide com o crescimento vertiginoso da economia global, na esteira da abertura comercial e da revolução tecnológica. Seguimos o curso do mundo em desenvolvimento. Algo como 50 milhões de brasileiros cruzaram a linha da pobreza e alcançaram um novo padrão de consumo. Mais de 50% da população tem acesso à internet e 75% dispõem de um telefone celular.
Há uma nova classe média, no Brasil, maciçamente presente nos centros urbanos, mais bem informada, com traços cosmopolitas. Pessoas com horizontes mais amplos, senso crítico mais apurado, mais seguras de seus direitos e menos passivas diante do Estado. Uma pesquisa Datafolha, realizada no ano passado, mostra que, na última década, saltou de 6% para 38% o percentual da população que se diz “insatisfeita” com a saúde pública. Junto à maior exigência, o desencanto. Uma pesquisa realizada pela USP, sob a coordenação de José Álvaro Moisés, revela que, no mesmo período, subiu de 30% para 45% o número de brasileiros que considera que a democracia pode funcionar sem os partidos políticos.
Em boa medida, trata-se de um fenômeno global. Vivemos a época dos “cidadãos críticos”, na expressão de Pippa Norris, pesquisadora de Harvard. A época da “revolução do mais”, de Moisés Naim, cuja linha de força é aumento das critícas dos cidadãos e de seu poder na sociedade. Pesquisas mostram, em toda parte, que a sensibilidade ética e a exigência de qualidade nos serviços públicos crescem conforme aumentam a renda e a escolaridade. É perfeitamente previsível – e saudável – que isso aconteça. Nossa democracia “versão anos 80”, com seu sistema político disfuncional, profusão de partidos de baixa representatividade, 22 mil cargos de confiança apenas na União, encontra-se em uma encruzilhada. Ou avançamos ou corremos o risco de uma progressiva corrosão da legitimidade das instituições.
Por óbvio, a nova classe média está longe de ser homogênea e não apresenta nada parecido com uma “ideologia” ou programa de reformas. Amar ou odiar a classe média, à parte gesto de mau gosto intelectual, não faz nenhum sentido. Setores médios ascendentes simplesmente trazem consigo exigências renovadas quanto aos costumes políticos e o funcionamento do Estado.
O tema não é propriamente novo. Já nos anos 1930, Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil, chamou a atenção para o influxo modernizador provocado pela “urbanização contínua, progressiva, avassaladora”. A modernização da República como síntese da “revolução brasileira”. Sua direção? A superação do viés patrimonialista, da política de clientela, da indistinção entre público e privado, e a gradativa afirmação da “ideologia impessoal do liberalismo democrático”. Esta última vista por Buarque como estranha à nossa formação, desde os tempos coloniais.
Aqui há um curioso paradoxo. Intenso na academia, o tema do patrimonialismo tem sido um notável ausente em nosso debate político. Talvez pela sofisticação, talvez pela fragilidade crônica de nosso pensamento liberal, o fato é que a disputa entre o “arcaico e o moderno” foi, no dia a dia político, disfarçada sob a oposição fácil,  e em geral fraudulenta, entre esquerda e direita.
Reinventar a narrativa que usamos para compreender o país é a primeira lição a se extrair destes 30 anos de vida democrática. Aprender, de uma vez por todas, que a superação da corrupção, a afirmação do hábito republicano, da autonomia dos órgãos reguladores, a eficiência do Estado e dos programas sociais passam longe da ladainha “esquerda e direita”. Melhor seria tratar esses temas com racionalidade, no interesse dos mais pobres, à luz do que ensinam nossos tropeços e a experiência internacional.
Há que reconhecer que soubemos, nestes 30 anos, gerar alguns consensos mínimos. O primeiro gira em torno do próprio valor das “regras do jogo”.  Deixamos para trás a cultura do “golpismo democrático” e a instabilidade endêmica que marcou nossa história republicana, em especial no período que se seguiu ao fim do Estado Novo.
Produzimos ainda um segundo consenso, ainda nos anos 1990, em torno da estabilidade econômica. O Plano Real foi seu evento fundador. O país compreendeu o potencial desestabilizador e concentrador de renda da inflação e soube mudar. E mesmo o PT, com alguma relutância, incorporou como sua a agenda da estabilidade, na transição para o governo Lula, em 2003.
Nossa democracia é inconclusa, não obstante. Nos falta produzir um terceiro e grande consenso em torno da modernização do Estado. Nossos serviços públicos se assemelham a um velho apartamento decorado nos anos 1980. A gestão é lenta, a estabilidade no emprego rígida, a cultura meritocrática inexistente. Produzimos um curioso híbrido: um sistema político de traço patrimonial acoplado a uma máquina pública burocrática. Os cidadãos sabem disso. Quem dispõe de maior renda migra para as escolas e planos de saúde privados, deixando os serviços estatais para os mais pobres. Como resultado, cresce o fosso da desigualdade social. A ação do Estado, prevista para produzir equidade, gera o efeito inverso.
Por fim, nossa democracia falhou no tocante à questão ética. Depois de três décadas de democracia, nos tornamos uma sociedade tolerante com o delito. Parcela significativa da sociedade optou por colocar, acima da exigência ética, a paixão partidária. Somos relativamente mais severos quando a corrupção é “pessoal”, quando o sujeito enche os próprios bolsos com o dinheiro público. Se, não obstante, a corrupção for “sistêmica”, feita para comprar a base do governo no Congresso ou pagar as contas da campanha, comandada pelo partido, em escala industrial, está tudo bem. Dizemos que “faz parte do jogo”, nos convencemos de que sempre foi assim, desde que Dom João III distribuiu as capitanias hereditárias.
Quiçá estejam mesmo contidos, no coração de nossa nova classe média, cada vez mais escolarizada, citadina e segura de si, traços modernizadores, na direção imaginada por Sérgio Buarque. Se é verdade que a democracia é um grande processo de aprendizagem, que ela possa nos ensinar, uma vez mais, um novo jeito de caminhar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário