RIO —
Em 2012, no auge das escavações do Cais do Valongo, na Zona Portuária — que revelaram ao mundo um dos maiores e mais significativos acervos pertencentes aos negros escravizados que aportaram naquele área entre 1811 e 1843 —, a arqueóloga Tania Andrade Lima experimentou um dos momentos mais comoventes de sua vida. Um colega enviou para ela a reprodução de uma fotografia do convés de um navio negreiro repleto de crianças. A imagem a remeteu a tudo que já havia achado no sítio arqueológico da região. Além de milhares de artefatos, como miçangas, pedras e material usado em rituais religiosos ou como amuletos pelos negros, havia centenas de pequenos anéis feitos de piaçava que adornavam os dedinhos delicados de garotos africanos. Diante daquele registro de meninos e meninas trazidos para o Brasil no século XIX para serem comercializados como objetos num dos armazéns da atual Rua Camerino, veio por terra a teoria de que cientistas precisam conter a emoção.
— Fiquei muito comovida por conta daquela foto. O Valongo mexeu muito comigo porque uma coisa é você pegar um livro e ler que, pelo Valongo, passaram 500 mil escravos para a ter a vida que nós sabemos que tiveram, sendo vendidos brutalmente. Outra coisa é pegar e encarar essas peças. Trabalho com a materialidade dos fatos, mas nunca havia lidado com a materialidade da história dos escravos — explica Tania, cuja equipe, entre janeiro de 2011 e junho de 2012, vasculhou cinco quarteirões da Região Portuária, num trabalho que precedeu as obras de revitalização da área.
ARTIGOS EM REVISTAS CIENTÍFICAS
Mãe Celina, presidente do Centro Cultural Pequena África, conheceu Tania nessa ocasião. Foi uma das lideranças religiosas de ascendência africana convidadas pela especialista para decifrar o significado dos pedaços de potes, cordões, pedras e cacos de louça com desenhos geométricos que começavam a se amontoar nos contêineres do sítio arqueológico à medida que a empreitada avançava.
— O que mais me impressionou nela foi a simplicidade e o tratamento respeitoso que teve comigo. É uma cientista, cheia de conhecimento, mas teve a humildade de nos procurar para pedir ajuda quando se deparou com aquilo tudo. E o que ela e a equipe encontraram foi muito importante para nossa religião. Após a descoberta do Valongo, minha vida mudou — diz Mãe Celina, que, na semana passada, foi a Paris participar de eventos relacionados aos achados arqueológicos — Tenho certeza, e já disse isso a ela, que Tania foi guiada pelos orixás para encontrar o Valongo — completa a mãe de santo, que jogou os búzios para a arqueóloga e descobriu que ela é filha de Oxum.
Com mais de 30 anos de trabalho de campo, em que fez escavações para pesquisas de arqueologia pré-histórica e histórica, Tania considera o Cais do Valongo um marco na sua carreira. E isso não tem nada a ver com a repercussão internacional do trabalho, que lhe rendeu dezenas de convites para seminários, entrevistas, telefonemas de pesquisadores de universidades de todo o mundo e artigos publicados em revistas científicas.
— Era uma pesquisa arqueológica de natureza sociopolítica, pois sabíamos que, se esses remanescentes estivessem na região, isso seria de enorme importância para comunidade negra no Brasil — comenta Tania, que é professora do Departamento de Arqueologia do Museu Nacional, ligado à UFRJ.
Após o contato com tantos objetos que pertenceram aos negros, a professora começou a notar a presença quase imperceptível dos escravos nas escavações que passou a realizar no Centro do Rio. Uma sensibilidade que ela atribuiu ao seu olhar antropológico e não a qualquer possível misticismo.
— Depois do Valongo, quero saber onde estão os escravos urbanos. Nas escavações, temos trazido de volta, maciçamente, a materialidade das classes dominantes, mas quase não encontramos nada deles. Eles aparecem muito pouco nas amostras que recolhemos. Estamos desenvolvendo um olhar muito mais aguçado para percebê-los no registro arqueológico das áreas urbanas — conta ela, que, ao vasculhar o subsolo do Rio à procura de vestígios das ocupações da cidade, tem recolhido, entre louças e objetos da classe média e média alta do século XIX, itens que classifica como pertencentes aos “subalternos”.
AMULETO DE LOUÇA PORTUGUESA
Uma das peças que se repetem nas escavações é uma espécie de amuleto, feito com louça portuguesa, que mostra um desenho do grupo étnico bacongo.
— Esses escravos urbanos não tinham muitos pertences e tudo deles era perecível, feito de palha, de pano. Achamos alguns elementos de uso pessoal e algum objetos relacionados a crianças. Estamos encontrando um tipo de artefato que não apareceu no Valongo, mas que foi achado na Praça Quinze e que vem se repetindo em alguns sítios: um fragmento de cerâmica portuguesa, que eles cortavam em forma de triângulo, com um desenho da espiral bacongo. O espetacular é isso: encontrá-los por baixo dos dominantes. As coisas deles passando despercebidas — acrescenta, sorrindo, a arqueóloga.
Se o Valongo revelou Tania para a opinião pública e as lideranças de religiões de base africana, ela já era referência há tempos entre arqueólogos, antropólogos e historiadores.
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— Ela escreveu artigos que marcaram a história da arqueologia brasileira, como o texto “Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, no século XIX’’, uma leitura obrigatória para qualquer estudante de arqueologia, e outro sobre os sapateiros. Ambos marcaram a pesquisa arqueológica brasileira— afirma a arqueóloga Gláucia Sene, que trabalha com a professora, desde a década de 1990, e também participou das escavações no Valongo.
Tania se considera uma caçadora de objetos do capitalismo. Ela vem revirando o subsolo de áreas urbanas e rurais em busca de restos de construções e objetos, como louças, urinóis, vidros de óleo de rícino e uma infinidade de “tralhas domésticas”, que ajudam, de acordo com a cientista, a compor o perfil de uma “sociedade escravagista, com comportamento burguês”, que consumia produtos que, na maioria das vezes, não combinavam com seu modo de vida.
— Desde a década de 90, faço arqueologia do capitalismo e do trabalho com a emergência dessa pequena burguesia prematura. Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil e a abertura dos portos, o mundo inundou o Rio de Janeiro de mercadorias. Abriu-se uma febre de consumo, e a sociedade recebeu uma tonelada de produtos. Muitos eles nem sabiam para que serviam, mas compravam mesmo assim. Um comportamento que temos até hoje. Podemos encontrar resquícios desses produtos nas escavações da cidade — diz Tania, que acaba de achar, num quarteirão inteiro, no Centro do Rio, pisos de ladrilhos hidráulicos, ainda em bom estado de conservação, de sobrados do século XIX.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/tania-andrade-lima-arqueologa-que-desenterrou-historia-do-cais-do-valongo-14002079#ixzz3UJufvgDx
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