O que é literatura? Você sabe identificar um texto literário ou sua classificação é feita de acordo com seu gosto pessoal? Ou o que é pior: sua definição de literatura é feita a partir de comentários como “o livro de Fulano de Tal não é literatura, porque ele cometeu um errinho de português na primeira frase do primeiro parágrafo”? Neste texto, mostraremos que o texto literário tem características específicas e sua identificação nada tem a ver com juízos de valor.
Observemos dois textos:
Texto I
Poema brasileiro
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
(Ferreira Gullar)
Texto II
Programa “Mais médicos” zera a mortalidade infantil em municípios do Piauí (fragmento)
Os médicos cubanos Olívia Rodriguez Gonzalez e Omar Diaz, professores da Universidade Che Guevara, em sua cidade natal, Pina del Rio, em Cuba, estão trabalhando há um ano no do Posto de Saúde de Barras, na região Norte de Piauí, e sorriem quando falam da conquista em vida que obtiveram no trabalho da atenção básica.
“Há um ano não registramos nenhuma morte de criança e de gestante. Estamos sem mortalidade materna e infantil”, afirmam Olívia Rodriguez Gonzalez e Omar Diaz, no Posto de Saúde de Barras, atuando no Programa Mais Médicos, do Governo Federal. (RIBEIRO, 2015)
O primeiro texto foi publicado pelo poeta Ferreira Gullar em 1975; o segundo, publicado em um site de notícias no início de 2015. Embora ambos tratem do mesmo tema (a mortalidade infantil no estado do Piauí), é possível observar que a abordagem e a estrutura dos textos são diferentes.
Algumas características do texto literário:
1. Complexidade
O discurso não-literário caracteriza-se, na maioria dos casos, pelo predomínio da função referencial da linguagem, visto que é necessário transmitir a mensagem de maneira objetiva. “A linguagem literária produz; a não-literária reproduz” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 37). Observemos novamente o texto de Ferreira Gullar; o sentido do texto é produzido a partir da reelaboração constante de uma mesma frase. O leitor pode inferir que primeiro o eu lírico ouviu ou leu uma notícia; em seguida, analisou cada um dos dados recebidos e, por último, escandalizou-se com um deles.
2. Multissignificação
O título do texto I permite mais de uma leitura. Qual a razão de ser um “poema brasileiro”? Será pelo fato de ter sido escrito no Brasil? Ou por mostrar a realidade de um dos vários estados? Ou, ainda, por aquela ser a realidade de muitas crianças brasileiras, não apenas as piauienses?
O título do texto II não permite dupla interpretação. É um texto jornalístico cujo objetivo é apenas a transmissão de um dado: a redução da taxa de mortalidade, suas causas e efeitos nas cidades observadas.
3. Liberdade de criação
Muitos movimentos literários se constituíram pela adesão, transformação ou ruptura com tradições, quer sejam técnicas, estéticas ou linguísticas. O Modernismo foi um movimento cultural que se apresentava como um rompimento com todas as tradições (Cabe aqui lembrar o Manifesto do Futurismo, de F. T. Marinetti: “Vamos destruir os museus e as bibliotecas”). Já estava presente no Manifesto Técnico da Literatura Futurista (1912) a exaltação àquilo que os futuristas chamaram de “destruição da sintaxe”: disposição das palavras ao acaso, “abolição dos sinais de pontuação, sem as paradas absurdas das vírgulas e dos pontos” (MARINETTI, 2002, p. 95-6).
No texto I, temos a ausência total de sinais de pontuação. Tal característica, muito presente em textos do Modernismo, determina o ritmo de leitura e, na primeira estrofe favorece a representação da notícia transmitida com ligeireza. Esse uso da pontuação não seria encontrado em um texto verdadeiramente jornalístico, como aquele que usamos como exemplo neste artigo.
4. Ênfase no significante
Os gêneros textuais não-literários (o ensaio, o editorial, o relatório, a notícia etc) privilegiam o conteúdo do texto: aquilo que é dito. Já o texto literário apoia-se no significado e no significante; ou seja, como é dito. A compreensão do texto literário está vinculada também ao seu aspecto estético.
A primeira estrofe do poema é construída de modo semelhante a uma notícia jornalística: um único período em que se evidencia a objetividade da função referencial da linguagem. Em uma mesma frase temos o fato, o local e o que acontece. Ao continuarmos com a leitura, percebemos que os mesmos dados são repetidos em todas as estrofes. A mudança consiste apenas na distribuição das informações, conforme o eu lírico analisa a notícia lida e toma consciência da gravidade dos fatos. Podemos compreender que, na sua visão, o dado mais chocante é a idade das crianças (“antes de completar oito anos de idade”).
Nós vamos propor um pequeno exercício! Observe o texto abaixo, de autoria de Augusto de Campos. Depois de ler algumas características do texto literário, tente identificar aquela que mais se evidencia. Fique à vontade para deixar sua resposta nos comentários!
Referências bibliográficas
GULLAR, F. Poema brasileiro. Disponível em <http://www.cic.unb.br/~facp/docs/poetas/FerreiraGullar2.html> Acesso em 9 mar 2015
MARINETTI, F.T. Manifesto do Futurismo. In: TELLES, G. M. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. 7.ed. São Paulo: Ática, 2004.
RIBEIRO, E. Programa “Mais médicos” zera a mortalidade infantil em municípios do Piauí. Disponível em <http://www.meionorte.com/blogs/efremribeiro/programa-mais-medicos-zera-a-mortalidade-infantil-em-municipios-do-piaui-306569>. Acesso em 10 mar 2015.
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