Deveríamos dispor de instrumentos legais para punir quem abusa do poder contra os eleitores
RUTH DE AQUINO
Não somos vândalos. E deveríamos ganhar flores. Cidadãos que respeitam as regras são diariamente maltratados por serviços públicos ineficientes. Como processar o prefeito e o governador se nossos impostos não se traduzem no respeito ao cidadão? Como processar um Congresso que se comporta de maneira vil, ao manter como deputado, em voto secreto, o presidiário Natan Donadon, condenado a 13 anos por roubo de dinheiro público?
Se posso ser multada (e devo ser) caso jogue no chão um papel de bala, por que não posso multar o prefeito quando a cidade não funciona? E por que não posso multar o governador, se o serviço público me provoca sentimentos de fúria e impotência? Como punir o vandalismo moral do Estado? Ah, pelo voto. Não, não é suficiente. Deveríamos dispor de instrumentos legais para processar quem abusa do poder contra os eleitores – e esse abuso transcende partidos e ideologias.
A história seguinte ocorreu no Detran do Rio de Janeiro. Poderia ser em qualquer órgão público de qualquer cidade ou Estado. O psiquiatra Luiz Alberto Py, de 73 anos, se sentiu “vítima de truculência moral” no Detran-RJ, em sua terceira visita ao órgão. “Me sinto na mão de carcereiros que torturam seus presos”, disse Py, ao me telefonar, sentado dentro de seu carro no posto do Detran, sem saber o que fazer.
– Vim há 15 dias para a vistoria anual (exigida no Estado do Rio de Janeiro). Me disseram que o farol de neblina estava torto. Eu precisava consertar e voltar em cinco dias úteis. Ali começava a gincana. Consertei e voltei. Depois de aguardar não sei quanto tempo, fui chamado ao guichê e me disseram: “Ah, tem uma pendência: uma multa. O pagamento só entra no sistema depois de dois dias, e o senhor precisa voltar aqui em cinco dias úteis”. (É um absurdo demorar tanto para efetuar um pagamento nos dias de hoje.) Paguei a multa e voltei ao Detran no quinto dia. Depois da fila e do tempo em pé, sem lugar para sentar, a mulher berrou meu nome (o sistema é de “senhas berradas”, no Detran-RJ de 2013) e fui ao guichê. “Perdemos seus papéis”, disse a funcionária. “Foi na troca do plantão. O senhor precisa recomeçar todo o processo.” Aí comecei a gelar, a pressão começou a subir. Como assim “perderam meus documentos”? “Ah, isso acontece.” “Não vou sair daqui enquanto não encontrarem os meus papéis.” “Não vamos resolver nada para o senhor enquanto seu carro continuar estacionado ali.” Não havia outro lugar para deixar o carro dentro do posto atulhado de motoristas estressados. “Tem mais”, disse a funcionária com um risinho, “estou vendo que, agora, o prazo de vistoria venceu e o senhor precisa pagar multa.”
Foi nesse momento que Py voltou ao carro e me telefonou, desesperado. O Detran deveria ter um cartaz na frente: “Cuidado. Prejudicial à saúde”. Telefonei ao Detran, avisando o que acontecia, e tudo se resolveu. Py voltou para casa como um autômato. “É assustador o que as pessoas com pequeno poder fazem com você. Sou o que chamam de idoso e passei mal por me sentir impotente. Saí dali e não consegui mais trabalhar naquele dia. Queria só voltar para casa, esquecer, estava cansado, porque tentei fazer tudo certo, mas me tratavam aos gritos: ‘Agora vai pra lá, agora vem pra cá’.”
>> Conheça o Blog da RuthSe posso ser multada (e devo ser) caso jogue no chão um papel de bala, por que não posso multar o prefeito quando a cidade não funciona? E por que não posso multar o governador, se o serviço público me provoca sentimentos de fúria e impotência? Como punir o vandalismo moral do Estado? Ah, pelo voto. Não, não é suficiente. Deveríamos dispor de instrumentos legais para processar quem abusa do poder contra os eleitores – e esse abuso transcende partidos e ideologias.
A história seguinte ocorreu no Detran do Rio de Janeiro. Poderia ser em qualquer órgão público de qualquer cidade ou Estado. O psiquiatra Luiz Alberto Py, de 73 anos, se sentiu “vítima de truculência moral” no Detran-RJ, em sua terceira visita ao órgão. “Me sinto na mão de carcereiros que torturam seus presos”, disse Py, ao me telefonar, sentado dentro de seu carro no posto do Detran, sem saber o que fazer.
– Vim há 15 dias para a vistoria anual (exigida no Estado do Rio de Janeiro). Me disseram que o farol de neblina estava torto. Eu precisava consertar e voltar em cinco dias úteis. Ali começava a gincana. Consertei e voltei. Depois de aguardar não sei quanto tempo, fui chamado ao guichê e me disseram: “Ah, tem uma pendência: uma multa. O pagamento só entra no sistema depois de dois dias, e o senhor precisa voltar aqui em cinco dias úteis”. (É um absurdo demorar tanto para efetuar um pagamento nos dias de hoje.) Paguei a multa e voltei ao Detran no quinto dia. Depois da fila e do tempo em pé, sem lugar para sentar, a mulher berrou meu nome (o sistema é de “senhas berradas”, no Detran-RJ de 2013) e fui ao guichê. “Perdemos seus papéis”, disse a funcionária. “Foi na troca do plantão. O senhor precisa recomeçar todo o processo.” Aí comecei a gelar, a pressão começou a subir. Como assim “perderam meus documentos”? “Ah, isso acontece.” “Não vou sair daqui enquanto não encontrarem os meus papéis.” “Não vamos resolver nada para o senhor enquanto seu carro continuar estacionado ali.” Não havia outro lugar para deixar o carro dentro do posto atulhado de motoristas estressados. “Tem mais”, disse a funcionária com um risinho, “estou vendo que, agora, o prazo de vistoria venceu e o senhor precisa pagar multa.”
Foi nesse momento que Py voltou ao carro e me telefonou, desesperado. O Detran deveria ter um cartaz na frente: “Cuidado. Prejudicial à saúde”. Telefonei ao Detran, avisando o que acontecia, e tudo se resolveu. Py voltou para casa como um autômato. “É assustador o que as pessoas com pequeno poder fazem com você. Sou o que chamam de idoso e passei mal por me sentir impotente. Saí dali e não consegui mais trabalhar naquele dia. Queria só voltar para casa, esquecer, estava cansado, porque tentei fazer tudo certo, mas me tratavam aos gritos: ‘Agora vai pra lá, agora vem pra cá’.”
O caso de Py é corriqueiro, um entre milhões. Foi resolvido porque ele conhecia uma jornalista? Está tudo errado então. Como podemos processar a esfomeada máquina estatal? Quem tem energia para processar prefeito e governador se não dará em nada? É enlouquecedor agendar uma vistoria no Detran. O jornal O Globo publicou uma série sobre os maus-tratos a proprietários de carros no Rio de Janeiro. Sob o argumento de manter a qualidade da frota, o Estado exige uma vistoria anual para renovar o licenciamento. Mas os carros estão caindo aos pedaços nas ruas e estradas. Por que será? Haverá então um jeitinho tortuoso para evitar danos à saúde?
Um conhecido não conseguia concluir a vistoria, porque, a cada visita, surgia uma pendência. Na última vez, um pneu não estava em perfeitas condições. Ele alegou falta de tempo porque viajaria. A resposta do funcionário veio rápido: “Se o senhor deixar uma moral dentro do envelope, fica tudo beleza”. Uma “moral”? Ele deixou o que tinha na carteira: R$ 20. Errado? Sim. Mas saiu dali, foi à oficina, trocou o pneu. E não correu o risco de infartar. A vistoria inclui a análise de 80 itens do carro. A taxa de licenciamento anual é uma das mais altas do Brasil, R$ 101,77.
Odeio o Detran. O Detran não me representa. O Estado precisa acabar com essa máquina de caça-níqueis. Chamar essa vistoria anual obrigatória de “serviço oferecido à população” é escarnecer da tolerância de contribuintes que não são vândalos. Deveríamos ganhar desculpas e flores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário