Na virada do século XIX para o XX, a experiência coletiva da tuberculose constrói-se basicamente pelo cruzamento dos esforços, em princípio frustrados, do saber médico-científico de controle da doença com a estigmatização do doente. Este período, que se inicia com o incremento das iniciativas médico-higienistas de controle da tuberculose nas camadas sociais mais pobres, estendendo-se para além do ano da descoberta do bacilo de Koch, caracteriza-se, em termos de representação social da doença, por uma marcante ambigüidade. A tuberculose é algo que assusta e estigmatiza, mas ainda conserva alguns de seus traços mitificadores.
No eixo desse cruzamento de sentimentos e emoções despertados pelo tuberculoso, visto como um agente corruptor do meio social, ou mais precisamente como ‘suporte’ e transmissor do germe, é que podemos ler os processos de construção de uma identidade específica do doente, ou, caso se prefira, de um sujeito patológico, como efeito não só da representação que a sociedade faz do enfermo, mas, fundamentalmente, como resultado da relação do enfermo consigo mesmo, marcada pela profunda experiência da dor e do aniquilamento, e com o mundo circundante. O sujeito tuberculoso constrói-se a partir de um complexo trabalho de reestruturação de sua identidade rompida pelo surgimento da doença. A ‘experiência extrema’ de se saber acometido de uma grave moléstia, para a qual não há cura, envolve, primeiramente, o esforço de preservação da própria identidade. Este esforço será bem-sucedido na medida em que aquele que se descobre doente for capaz de acionar seus recursos individuais, ou desenvolver habilidades que possam ajudá-lo em sua trajetória singular. Por outro lado, a vivência progressiva da doença conduzirá também a um trabalho intenso e sistemático de reconstrução da identidade, entendendo-se por isso todo um processo de desenvolvimento da capacidade de administrar a própria vida após a experiência trágica dos primeiros tempos de doença. O impacto da doença sobre a vida de Manuel Bandeira, seu caráter instaurador de um doloroso movimento de destruição e reconstrução de si, pode ser detectado em fases já muito avançadas de sua produção poética. Isto quer dizer que tanto a experiência dramática de se descobrir doente, com o conseqüente rompimento dos vínculos de pertencimento social e da imagem que se acredita ser legitimamente sua, quanto o processo de reconstrução de si, no interior das novas condições de existência propostas pela doença, caracterizam situações que não se resolvem sem um diálogo permanente do doente de si para consigo e com o mundo circundante. Está claro que este diálogo encena o conjunto de sentimentos e concepções que o doente tem de si mesmo a partir da representação do fenômeno patológico que lhe é própria, quer como indivíduo, quer como ser social. Levando-se em consideração este parti pris é que podemos afirmar que, ao longo de boa parte de sua vida, Manuel Bandeira esforçou-se por construir uma auto-imagem que lhe respondesse as dolorosas perguntas nascidas sob o impacto da doença, ao mesmo tempo que lhe garantisse, ainda que marcado por ela, sobreviver e afirmar-se no mundo. Este esforço jamais seguiu uma linha progressiva, isto é, Manuel Bandeira não pensou sua condição de tuberculoso de modo linear, ao sabor das sucessivas e árduas vitórias sobre a doença. Ao contrário, o poeta, ao que parece, para além de toda a disciplina e sacrifícios necessários à consecução do único projeto verdadeiramente viável para ele — o de sobreviver à doença —, buscou alimentar-se do impacto inaugural da enfermidade sobre sua vida com vistas a repensá-la, a reprojetá-la nas bases inusitadas que agora lhe eram dadas. Mas este trabalho só pôde ser realizado com o concurso de alguma coisa que lhe garantisse uma saída, ou seja, que lhe garantisse emergir como sujeito íntegro, apto a existir social e psicologicamente. Descobrindo-se doente ao final da adolescência, transcorrida no início do século XX, é natural que Manuel Bandeira tivesse seu espírito povoado pelos elementos que constituíam o imaginário coletivo sobre a doença. Entretanto, este imaginário aparece, na virada do século XIX para o XX, matizado por formas e sentimentos muitas vezes contraditórios, próprios aos momentos de transição. Por outro lado, Manuel Bandeira não apenas reflete os sentimentos de uma época sobre a doença, ele também os elabora e, portanto, contribui para o deslocamento do modelo romântico para o naturalista. Através de sua trajetória de vida, podemos acompanhar como Manuel Bandeira produz e reproduz uma representação da tuberculose. Através de sua correspondência, de suas obras autobiográficas e de sua obra poética, Manuel Bandeira divulga uma forma própria de se relacionar com a doença. E aí reside, a nosso ver, a importância do trabalho: a de mostrar como indivíduos concretos tiveram e continuam tendo um papel decisivo na produção e transformação de certas concepções da doença e, também, as vantagens da escolha do poeta Manuel Bandeira, que viveu sua vida em momento marcado por uma profunda transição ao nível da percepção da tuberculose. Manuel Bandeira vivencia sua doença num ambiente mais geral de incerteza quanto às suas possibilidades de cura; e num período em que, provavelmente, uma forma de percepção romantizada da doença ainda se pudesse fazer notar, embora num ambiente mental inteiramente diferente. Importa-nos observar como o poeta constrói para si sua própria vivência da doença, como — e levando em consideração a atividade que passa a desempenhar — responde às questões que a condição de doente lhe propõe, ou seja, como constrói para si próprio, enquanto indivíduo e poeta, sua imagem da doença.
A descoberta da doença: o rompimento da identidade
Em junho de 1903, aos 17 anos, Manuel Bandeira matriculava-se no curso de formação de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica, na capital paulista, sob a inspiração do pai. A revelação da doença acontece em sua vida aos 18 anos, durante as merecidas férias de final de ano. A partir daí, tudo se desenrolaria muito rapidamente: a descida de Itaipava, o exame médico, a primeira internação no Hospital dos Estrangeiros. A família volta de São Paulo para o Rio de Janeiro, e vão todos morar em Botafogo; Bandeira deixa o hospital e passa a ser tratado em casa pela mãe e pela irmã. Tuberculoso, jamais retornou à Escola Politécnica. O aparecimento da doença, ao provocar uma inusitada e terrível ruptura na vida do adolescente, até então confiante em sua capacidade física e mental de realizar os projetos familiares e pessoais, dará início a um combate intenso e sistemático à tuberculose.
No começo de 1905, Manuel Bandeira encontrava-se em Jacarepaguá, onde sofreu sua mais violenta crise de hemoptise. A evolução do quadro patológico apontava para um desfecho sombrio quando, contra todas as previsões médicas e contrariando a evolução do quadro crítico, o doente começou a experimentar alguma melhora. Agarrando-se a um resto de esperança, seu pai decidiu levá-lo para o sul de Minas Gerais. Inicia-se, assim, a peregrinação em busca de cura: primeiro, Campanha, em Minas Gerais, onde viveu de 1905 a 1906; de 1906 a 1907, encontramo-lo em Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro; de 1907 a 1908, percorrerá as cidades de Maranguape, Uruquê e Quixeramobim, no Ceará; de volta ao Rio de Janeiro, realizará freqüentes incursões às cidades serranas de Petrópolis e Teresópolis, até culminar sua peregrinação com a viagem para o sanatório de Clavadel, na Suíça, no ano de 1913. É em Campanha que o jovem doente dá início ao trabalho com a poesia, como um meio para vencer o sentimento de inutilidade. Ao longo de sua peregrinação, os estudos, que se haviam iniciado como atividade de recluso, adquirem maior dimensão, resultando nos primeiros poemas não procurados como paliativos para a ociosidade forçada. A estada de Manoel Bandeira em todos esses lugares significará um duplo aprendizado: o do controle da doença e, a ele intimamente associado, o do desenvolvimento dos recursos pessoais que lhe garantirão uma nova identidade. As cartas que trocou com seu tio Raimundo (Bandeira, 1958, pp. lxiii-iv) oferecem claro testemunho de uma vida na qual se imbricam a construção do conhecimento da doença e a elaboração de sua poética, esta última fundada antes de tudo em sua condição objetiva de doente. Numa carta datada de 19 de janeiro de 1910, por exemplo, o jovem poeta diz ao tio que leu com interesse as informações sobre as tuberculinas e, em seguida, discorre sobre a técnica do verso alexandrino. Esta associação entre o sofrimento e sua dedicação à poesia, Manuel Bandeira a faz claramente no poema ‘Infância’ (1958, vol. 1, p. 369), em que, após fazer um balanço de sua trajetória até vir morar no Rio de Janeiro, o poeta declara-se conhecedor da vida em suas verdades essenciais e termina com os seguintes versos: "Estava maduro para o sofrimento / E para a poesia." Para melhor inteligibilidade do impacto da doença sobre a vida do poeta conjuguemos dois poemas extraídos de sua obra, onde podemos encontrar os testemunhos de sua repercussão tanto em nível familiar e/ou social quanto no plano das transformações interiores, ou mais exatamente morais. São eles ‘Epígrafe’ e ‘Testamento’ (idem, ibidem, pp. 9, 308), tendo este sido publicado em 1943, mas que se refere a essa época de sua vida e ao sentimento que experimentava em relação a ela. Identificamos, em ambos, o motivo do rompimento de um padrão existencial com o advento da moléstia. Momento impressivo, que abala os fundamentos do que aparecia aos olhos do adolescente como objetivo certo de ser alcançado: a vida adulta coroada de êxito, por haver sido bem projetada desde a infância. Comecemos com ‘Epígrafe’, poema que abre seu primeiro livro de poesias intitulado A cinza das horas, de 1917:
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida, Rugiu como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó - Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria... E dessas horas ardentes Ficou esta cinza fria. Esta pouca cinza fria...
Como se pode observar, o pertencimento familiar e social expresso nos dois primeiros versos do poema é rompido pelo advento da doença, caracterizada como "mau destino". Esta metáfora é interessante por ser introduzida pelo verbo vir, o que dá a idéia de algo exterior que se abate sobre o jovem até então integrado socialmente ("Sou bem-nascido. Menino,/Fui, como os demais feliz"). Mas, ao mesmo tempo em que a doença é apresentada como coisa exterior, revela-se como expressão surgida do mais íntimo ("Rompeu em meu coração"). E embora haja o cuidado de apresentá-la como um dom do "mau gênio da vida", por sinalizar o "mau destino" e mostrar-se a partir do coração, podemos entender sua manifestação como um traço particular, como motivo singularizante que remeteria o jovem a uma experiência de profunda e dolorosa solidão ("— Só! — meu coração ardeu"). Assim, conjuga-se, já na última quadra e no último verso do poema, à caracterização dos efeitos devastadores da erupção da moléstia, o primeiro esforço de compreensão do que deve ser a existência a partir dessa experiência: o trabalho sobre as cinzas de uma vida perdida ("E dessas horas ardentes/Ficou esta cinza fria./— Esta pouca cinza fria...").
No outro poema selecionado, podemos acompanhar um pouco do diálogo com o seu passado, na contraluz da doença que o transfigura, ao mesmo tempo em que projeta sombras melancólicas sobre sua vida de doente:
Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a saúde... Fiz-me arquiteto? Não pude! Sou poeta menor, perdoai!
Esta estrofe de ‘Testamento’ é um bom exemplo do trabalho do poeta com as projeções da infância filtradas pela experiência da doença. Observemos de imediato que este texto de 1943, período já avançado em relação ao momento de descoberta da doença, apresenta de maneira muito viva o diálogo do poeta com o outro (atenção ao pedido de perdão: "perdoai!"), diálogo no qual mostra não só a razão maior por haver frustrado o plano paterno de torná-lo arquiteto, mas apresenta a condição de poeta como alternativa privilegiada a tudo o que não pôde ser.
Nos versos desses dois poemas selecionados, podemos ler a íntima relação da condição de classe com a identidade pessoal. Entretanto, o que estamos em via de constatar, pela leitura das palavras de Bandeira, é que a trajetória de vida de um indivíduo pode resultar numa identidade reconstruída em padrões diferentes daqueles ditados por sua classe de origem. A poesia apresentou-se-lhe como estratégia contra a indolência, consolo frente ao ócio forçado, atividade inerte — tudo isto e muito mais, pois algo se transformava no interior de Manuel adolescente, algo novo, que, no limiar da morte, se engendrava. Como declarou o poeta em Itinerário de Pasárgada (idem, ibidem, vol. 2, pp. 21-2) nos 13 anos que vão da descoberta da sua doença à publicação de seu primeiro livro de versos, ao mesmo tempo em que tomava consciência de suas limitações, ele formou sua técnica. E mais: "Na minha experiência pessoal fui verificando que meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias."
São duas formas de pertencimento que se vêem, portanto, comprometidas com a doença. Uma propriamente social, expressa pelo vínculo familiar com suas expectativas de vida futura, a outra referente à imagem que o jovem Manuel tinha de si, enquanto adolescente saudável, sabedor de suas capacidades físicas e mentais e moralmente seguro pelo reconhecimento dessas mesmas capacidades. Tuberculoso, o jovem Manuel Bandeira não mais poderia exercer o papel social projetado. Como disse Miceli (1977, p. 55), o advento da doença lhe reservaria a condição de "morto social" por não poder ocupar doravante a posição que lhe era destinada. Por outro lado, a doença comprometia a imagem que ele tinha de si mesmo, no sentido de fazê-lo suspeitar, para além da capacidade de suportar o transe, da própria integridade de seu caráter, já que os recursos que anteriormente lhe pareciam próprios se lhe escapavam. Em diversos momentos de sua vida de Poeta Tísico, Manuel Bandeira discutirá o duplo rompimento provocado pela tuberculose, ora de um modo profundamente impactante pela representação do abalo moral advindo com a moléstia, ora numa tonalidade que, sem deixar de trair uma certa nostalgia da "vida que podia ter sido", revela o trabalho interior de reconstrução de sua identidade, desta vez em bases totalmente diversas daquelas que foram as suas até os 18 anos.
As formas de ajustamento
Os primeiros anos de Manuel Bandeira como tuberculoso são, como atestam vários fragmentos de cartas e o célebre depoimento Itinerário de Pasárgada, fundamentais no processo de elaboração de uma nova identidade. Os constantes deslocamentos em busca de clima adequado para o tratamento de sua doença repetem não apenas o padrão clássico de vida itinerante do tuberculoso, como constituem aquilo que poderíamos chamar de anos de aprendizagem de convivência com a doença, através da acumulação de um saber próprio sobre ela, bem como do desenvolvimento de recursos que, em última instância, garantam, mais do que o domínio sobre a patologia, uma nova forma de viver e de se compreender no mundo. A dolorosa solidão e o sentimento de ser um constante estrangeiro, experimentados nos primeiros anos de peregrinação de cura, estão claramente expressos neste trecho do poema "Desesperança" (1958, vol. 1, p. 73), datado de Teresópolis, 1912: "Por onde alongue o meu olhar de moribundo,/Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:/ E erro assim repelido e estrangeiro no mundo."
Nessa medida, Clavadel aparece na vida do poeta como o verdadeiro divisor de águas, por ser o momento em que, somado ao efetivo esforço disciplinador com vistas à superação possível da doença, o jovem poeta assumirá o fazer artístico como condição definidora de sua existência. É em Clavadel, para onde vai em 1913 e de onde retorna 15 meses depois, que se conjugarão suas experiências mais radicais como doente à maturação de sua vocação poética, expressa na produção que comporá sua primeira obra publicada, As cinzas das horas. É possível que, em Clavadel, Manuel Bandeira tenha vivido de maneira muito profunda as contingências que definem a condição de doente: o isolamento em relação ao mundo dos sadios e o concomitante sentimento de sua singularidade. Mas não é menos possível que tenha aproveitado esta estada em Clavadel como verdadeiro laboratório para construir, através da posse definitiva de suas habilidades artísticas e intelectuais, as bases sobre as quais se assentaria sua nova vida. De seu relato autobiográfico, podemos deduzir que Manuel Bandeira reelabora sua vida sob o crivo da poesia. Isto quer dizer que, ainda em 1954, ano da publicação de Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira só poderá falar de si escudado na identidade de poeta. Numa das páginas iniciais do livro, Bandeira (1958, vol. 2, p. 21) confessa-se arrependido de haver iniciado suas memórias, atribuindo seu arrependimento ao "nenhum prazer que encontro nessas evocações, da mediocridade que elas respiram, e ainda das dificuldades em que me vejo ao tentar refazer o meu itinerário no período que vai de 1904, em que adoeci, ao de 1917, quando publiquei meu primeiro livro de versos -A cinza das horas". Como o fragmento em questão mostra, o tuberculoso Manuel Bandeira só pode falar de si sob a máscara do poeta Manuel Bandeira. Por outro lado, o poeta sabe, e o diz bem, que esta máscara se construiu através de um longo processo de aprendizagem dos limites e de dinamização dos próprios recursos. Está claro que este processo não se realizou de maneira tranqüila, pois, como podemos ler no poema ‘A Antônio Nobre’ (idem, vol. 1, p. 12), a elaboração de uma nova identidade pressupôs também a identificação e a comparação com o outro, das quais resultou, em determinado momento, uma imagem de si autodepreciada, como se lê nos últimos versos dedicados ao poeta português: "Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso.../Eu, não terei a glória... nem fui bom" (Petrópolis, 3.2.1916).
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1 Carta a Ribeiro Couto em 26.9.1930 (Arquivo Museu de Literatura Brasileira/Fundação Casa de Rui Barbosa [AMLB/FCRB]).
3 A chamada "doença de cura" caracteriza-se, de acordo com Aloysio de Paula, pela transformação do pulmão destruído pela tuberculose, graças ao processo cicatricial, num bloco de fibrose, com brônquios dilatados onde o catarro se acumula.
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Por outro lado, e para retomar aqui a concepção de Pollak (1989) sobre a gestão da memória enquanto mecanismo de produção da identidade, o fragmento de Itinerário de Pasárgada citado reflete as preocupações do poeta com produzir uma imagem de si para si e para outrem a partir "da expectativa de julgamento negativo, ou de recriminação, por parte daquele que ouve" (Grynszpan, 1991, p. 90). Esta preocupação confirma-se na carta a Ribeiro Couto, em que Bandeira articula seu esforço de renovação expressional, apontado por este último, à sua busca de uma nova maneira se sentir: "Achei todavia errado você dizer que a minha poesia ultimamente é um esforço desesperado para me exprimir de maneira diferente. Isso não, irmãozinho. Esforço desesperado para sentir diferente, para esquecer a velha maneira de sofrer, isso sim pode ser. Um pudor que eu não tinha da minha tuberculose..."1
Foi em Clavadel que Manuel Bandeira tomou consciência do caráter definitivo de sua doença. A estada na Suíça acabou por oferecer-lhe a oportunidade de desenvolver uma forma de sentir e de se relacionar com a doença inteiramente nova. A tuberculose começa construir-se nele como o mal interior que, com traços medicamente bem definidos, se não pode ser banido, pode pelo menos ser controlado. Esta visão mais objetiva da doença é explicitada logo nos primeiros exames realizados pelo dr. Bodmer, que diagnostica: "O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado" (Bandeira, 1958, vol. 1, p. 186).2 Manuel Bandeira aprende em Clavadel a ter uma visão mais objetiva de sua moléstia. Entretanto, a esta aprendizagem articula-se uma outra que lhe garantiria, se não a cura absoluta, pelo menos o controle sobre sua condição de doente: a disciplina. O jovem aprendeu no sanatório que o prolongamento de sua existência dependeria de um regime de vida sem excessos. Assim é que Manuel Bandeira trouxe da Suíça todo um conjunto de procedimentos que jamais deixou de observar até o final da vida. Aloysio de Paula (1987, p. 20) descreve-nos alguns desses procedimentos, que garantiram ao poeta o controle da "doença da cura": toda manhã, Bandeira fazia a denominada toalete brônquica. Procurava expectorar o máximo para esvaziar o catarro que se acumulara durante a noite. Depois do almoço, repousava, de acordo com o ritual do sanatório.3 No Itinerário de Pasárgada (1958, vol. 2, p. 21), referindo-se aos 13 primeiros anos de sua doença, o poeta afirma que, nesse período, formou sua técnica e tomou consciência de suas limitações: "instruído pelos fracassos", aprendeu, "ao cabo de tantos anos, que jamais poderia construir um poema à maneira de Valéry". Manuel Bandeira revela-nos, portanto, que a disciplina que ele incorpora à sua vida, visando combater a doença, contribui para o aprimoramento da técnica necessária à elaboração de sua arte poética, função esta que naturalmente exige disciplina do poeta. Manuel Bandeira estabelece para si um programa de vida no qual os trabalhos e os dias são organizados de forma a garantir maior produtividade com menor dispêndio de forças. Dormir cedo, medicar-se sistematicamente, não abusar do café nem do álcool, trabalhar de preferência deitado são alguns dos hábitos desenvolvidos com o objetivo de garantir, mais do que a sobrevida, um perfeito triunfo sobre a doença. | ||||
A mobilização dos recursos familiares e sociais
A mobilização de recursos familiares, seja para manter o doente no seio da família, como para enviá-lo a ‘bons climas’, era uma medida freqüente para suprir a impotência da medicina diante da tuberculose. No caso de Manuel Bandeira, todos os esforços foram envidados. O poeta pôde contar, desde a descoberta da doença - do momento em que deixou o hospital e foi para casa - com todo o apoio familiar, em especial a assistência da mãe e da irmã como devotadas enfermeiras.
A figura do pai significou, na vida do poeta, mais do que uma referência de segurança, critérios fundamentais a partir dos quais o jovem Manuel garantia segurança em relação a si mesmo. Queremos dizer com isto que, se nos anos que antecedem o aparecimento da doença, o engenheiro Manuel Carneiro de Souza Bandeira é o modelo que seu filho pretende um dia reproduzir, com a chegada da tuberculose ele se transforma no pilar de sustentação do poeta no processo de reconstrução de si. A sensação de segurança experimentada pelo poeta expressa-se no medo de se afastar do pai, confessada anos mais tarde em ‘O momento mais inesquecível’ (1986, p. 40):
Tinha medo, porém, de ir para tão longe de meu pai. Porque eu não tinha medo de morrer, bem entendido, se no transe tivesse na minha mão a mão de meu pai. Quando a tentação era maior e eu olhava o mapa e via aquele estirão de oceano Atlântico, ... meu coração murchava. E eu desistia da Suíça.
Uma noite, depois do jantar, eu estava deitado no meu quarto ... . De repente me faltou a respiração. Fiz um esforço desesperado para tomar fôlego. Tive a impressão nítida de que ia morrer. Ia morrer separado de meu pai, não pelo oceano Atlântico, mas por uma simples parede... Foi horrível. Mas foi uma lição. Desde aquele momento compreendi que não adiantava apreender o futuro. Vivemos anos apreendendo um perigo imaginário que não acontece; somos surpreendidos por uma desgraça em que jamais havíamos pensado. ...
No ano seguinte parti para a Suíça. Não morri lá. Não morrerei com a mão na mão de meu pai. Ele é que morreu com a sua na minha. Eis o meu momento mais inesquecível.
Manuel Bandeira contou também, sobretudo após a morte do pai, com o apoio dos amigos. Por várias vezes, o poeta reconhece o concurso dos amigos. Sobre Ribeiro Couto, seu vizinho na rua do Curvelo, afirma no Itinerário de Pasárgada (1958, vol. 2, p. 55), que esse contato freqüente o ajudava a se reajustar ao mundo dos sãos. À turma do Bar Nacional, atribui parte de sua produção: "Se não tivesse convivido com eles, de certo modo não teria escrito, apesar de todo o modernismo, versos como o de ‘Mangue’" (apud Barbosa, 1988, p. 54).
A arte de lembrar e esquecer
Se a primeira tarefa daquele que se descobre doente é a de enfrentar o rompimento de seu antigo estatuto de homem sadio, e se sua boa sorte, neste primeiro momento, depende da capacidade de jogar com recursos próprios, garantindo assim sua integridade física e moral, este homem doente precisará, de algum modo, administrar a memória no sentido de que esta possa ajudá-lo a se adaptar à nova realidade, suportando-a ou superando-a. A administração da memória assume, nesse sentido, um caráter específico que não o da simples e compulsiva rememoração. Ao contrário, parece que, nesse caso, administrar a memória significará, principalmente, acessar a faculdade de esquecer, pois só através do esquecimento - isto é, através da seleção daquilo que pode e deve ser lembrado - é que o indivíduo doente conseguirá preservar seu sentimento de identidade. Por esta razão, os testemunhos de doentes podem ser considerados como verdadeiros instrumentos para o rastreamento da reconstrução da identidade, desde que saibamos também lê-los naquilo que eles silenciam. Como observa Pollak (1989, passim), o silêncio, associado ao esquecimento, denuncia um intenso processo de gestão da identidade.
Assim é que Manuel Bandeira, na correspondência com Ribeiro Couto, nem sempre se posicionará de modo explícito sobre sua doença. Há, sem dúvida, alusões diretas à tuberculose em algumas cartas trocadas por ambos; todavia, trata-se de alusões e não de comentários exaustivos quanto à relação do poeta com sua enfermidade. As referências à tuberculose fazem-se mais freqüentemente a partir de comentários quanto à influência do clima sobre o estado de saúde dos correspondentes. Outra forma adotada por Bandeira para falar da doença é o comentário dos casos de tuberculose entre amigos ou conhecidos - no que se pode ler, talvez, uma forma indireta de referência à própria enfermidade. Se tomarmos a correspondência de Manuel Bandeira como instrumento adequado para a análise de sua relação com a doença, seremos obrigados a concluir que o poeta trabalha ao nível da memória no sentido de construir para si o esquecimento quanto a sua própria condição de doente. Ou melhor, o poeta tenderá a silenciar como homem aquilo que só terá condições de elaborar como artista. Em sua poesia, a questão da lembrança de seu passado estará sempre presente, de uma maneira ou de outra. No poema ‘Desalento’, Manuel Bandeira revela a importância que a memória tem na relação com seu sofrimento, mas em ‘Delírio’, exalta a necessidade do esquecimento do passado, como forma de aplacá-lo (1958, vol. 1 , pp. 68-9, 65-6). Neste ponto, e tendo em vista anteciparmo-nos a algumas questões que surgem diante de uma tentativa de análise como a que fazemos, gostaríamos de especificar melhor alguns aspectos de nossa reflexão. Sabe-se que algumas análises clássicas da tuberculose como fenômeno social têm caracterizado os artistas enquanto modelos romantizados de experiência da doença. Distanciamo-nos deste posicionamento na medida em que, para nós, a tarefa da análise consiste não na construção de qualquer tipo de modelo, mas na busca de determinar até que ponto a atividade artística pode servir como projeto pessoal, através do qual um indivíduo - no caso Manuel Bandeira - tuberculoso, reconstrói os fundamentos de sua identidade e qual o impacto dessa reconstrução nas representações sociais. Procuramos mostrar que a tuberculose significou na vida de Manuel Bandeira tanto o rompimento da identidade, quanto a sua reconstrução. Aliás, pretendemos mostrar que Manuel Bandeira é um caso exemplar de reconstrução da identidade que, levada a cabo em determinada trajetória de vida, pode conduzir o indivíduo a opções por papéis sociais e hábitos cotidianos tão diversos, que não se pode mais falar de uma mesma identidade. A vivência interiorizada da doença coloca para o indivíduo doente questões que, de outra forma, jamais lhe ocorreriam. Nesta perspectiva, acreditamos ser legítimo pensar o projeto poético de Bandeira como a chave para a superação de sua condição de tísico, entendendo-se superação não como simples negação de sua condição de homem doente. Observamos anteriormente que ser poeta e tuberculoso eram aspirações intimamente associadas nos sonhos dos intelectuais de 18 anos, pelo menos até finais do século XIX. Num ensaio de crítica psicológica sobre o poeta, Afonso Arinos de Melo Franco deixa claro que não é esse o caso de Manuel Bandeira, ao afirmar que "a diferença entre os poetas antigos e os poetas modernos está em que os primeiros morriam e os segundos se curavam de tuberculose" (apud Montenegro, 1971, pp. 28-9). Bandeira é um poeta e um tuberculoso moderno, que reconstrói sua identidade através da poesia, mas não em torno dela. A condenação à morte o faz encaminhar "a vida para um efetivo compromisso com a poesia" (Guimarães, 1984, p. 11). O silêncio do homem Manuel Bandeira pode assim ser pensado como sinal de que alguma coisa se processa em sua interioridade, marcada pelo golpe profundo de se saber condenado. Isto que se processa silenciosamente em seus anos iniciais de doente e que se consubstanciará em sua produção poética, à medida que será através dela que o poeta se estruturará adequadamente para o trato direto com a realidade da doença, pode-se ler claramente na última estrofe de ‘À sombra das araucárias’ (1958, vol. 1, pp. 29-30): "A arte é uma fada que transmuta/E transfigura o mau destino./Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta./Cada sentido é um dom divino." Privado de tudo o que caracterizaria a vida para um jovem, o autor de A cinza das horas viu-se obrigado a construir para si um novo estilo de vida que, sem necessariamente lhe garantir a sobrevivência, o salvasse da aniquilação psicológica, como analisa Aloysio de Paula (1987, p. 19): "O fato é que a tuberculose mudou o destino de Manuel Bandeira. Quando tudo lhe fugia, restava-lhe a poesia, pois não sabia fazer outra coisa."
A opção por ser poeta
Para além da gestão da memória e da atitude de assumir a literatura como processo que contribui para a consolidação da nova identidade, há um ponto de ruptura interna que concorre para a reconversão de Manuel Bandeira com a vida. Este ponto representa não só uma ruptura com a vida, mas com a própria poesia, caracterizada pela escolha de qual poeta ser. Este momento não se resume numa atitude estilística, como lembrou Arrigucci Jr. (1987, p. 10), representa o momento de libertação do poeta, em que "o modo de ser se converte num modo de ver a vida e a poesia". Manuel Bandeira abandonará, pouco a pouco, a velha maneira de sofrer, como exalta em ‘Oração a Teresinha do Menino Jesus’ (1958, vol. 1, p. 208): "Perdi o jeito de sofrer./Ora essa./Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza./Quero alegria! Me dá alegria,/Santa Tereza! ..."
E também a maneira de viver a vida e fazer poesia... Acompanhemos agora como ocorre em Bandeira esse processo que o leva a decidir que poeta ser. O primeiro livro de poemas de Manuel Bandeira, A cinza das horas, só foi publicado após a morte de sua mãe, dona Santinha. Anos mais tarde, no depoimento sobre sua vida de poeta, Manuel Bandeira, refletindo sobre os poemas contidos neste primeiro livro, os classifica como "simples queixumes de um doente desenganado". Esta avaliação um tanto severa do poeta de sua primeira obra, produzida, aliás, na década de 1950, mostra bem o quanto era difícil para Manuel refletir distanciadamente, enquanto homem, sobre sua vida de doente; prova disto é sua insistência em caracterizar sua produção de final da década de 1910 como expressão do desengano, "comovente no plano humano, mas não no plano artístico". A única justificativa para a publicação da obra seria a de "dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso". Como reafirma em Andorinha, andorinha (1986, p. 8): | |||||
4 Guimarães (1984, pp. 12-3) esclarece que não há "nenhum artifício de falsa modéstia" na freqüente afirmativa de Manuel Bandeira sobre sua condição de poeta menor. "A noção de ‘poeta menor’ pressupõe a de ‘poeta maior’, que seria aquele voltado para os grandes temas da reflexão social ou filosófica. Todavia, a elevada fatura literária de um ‘poeta menor’ voltado para as subjetividades líricas pode fazê-lo um poeta excepcionalmente maior. Tal é o caso de Manuel Bandeira. E é dentro dessas considerações que se deve encarar sua insistente reivindicação de ser um poeta menor. De fato, sua poesia não revela nenhum momento especial dedicado a temas ‘maiores’. Sua grandeza advém de outros aspectos."
5 Esta carta é datada de maio de 1924. Neste ano, Manuel Bandeira publicou as segundas edições de A cinza das horas e Carnaval e a primeira de O ritmo dissoluto, reunidas sob o título de Poesias. As duas poesias mencionadas por Mário de Andrade fazem parte de O ritmo dissoluto e não de Carnaval, como pode parecer.
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Aos 31 anos, ao editar meu primeiro livro de versos, A cinza das horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - o testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor - de poeta rigorosamente menor - tenha podido suscitar tantas simpatias.4
Sem dúvida, a visão de Manuel Bandeira sobre sua vida neste período inicial de convalescença, bem como sobre o primeiro resultado de seu fazer artístico, está profundamente marcada ainda pelo peso que a condição de doente lhe impunha.
Carnaval (1919) será a expressão da disposição concreta de Manuel Bandeira de superar seus sentimentos anteriores em relação à condição de tísico. Barbosa (1958, p. lxxviii) diz que, com a publicação de Carnaval, o poeta "cortava todas - ou quase todas - as amarras do convencionalismo". O próprio Bandeira, em carta a Mário de Andrade a propósito da publicação deste seu segundo livro, declara: "Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico" (loc.cit.). Em resposta a essa sua carta, Mário de Andrade (1967, p. 35) compara Carnaval a A cinza das horas e discorda, afetuosamente, da afirmação de Manuel Bandeira:
Como mudaste o sentido de tua dor pessoal! Começavas por onde devias acabar: calmo, solícito para com tua inevitável e legítima amargura. ... Mas erras enormemente, Manuel, quando dizes como tua última carta ‘Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico’. Não o és mais. Ao menos ‘sarcasticamente’. Nem o foste nunca, propriamente. Eu sei. Ironicamente, inda vá. Mas quem escreve os ‘Meninos carvoeiros’ e a ‘Rua do sabão’ não é mais sarcasticamente tísico, é amorosamente tísico.5
É bastante provável que a ironia do poeta deva-se ao fato de a constante presença da morte como condição de existência ter acabado por fazer com que Manuel Bandeira estabelecesse com ela uma "surpreendente intimidade ... como, se esta fosse sua companheira de quarto", sem "suscitar teorias metafísicas de imortalidade" (Moraes, 1962, p. 33).
Se em A cinzas das horas Manuel Bandeira expressa as angústias de alguém que se sabe marcado para morrer, em Carnaval o poeta dá-se ao luxo de cantar as fantasias tolhidas pela doença. Mas, como ele mesmo diz no ‘Epílogo’ a esta obra, se sua pretensão fora a de compor "Um Carnaval em que o só motivo/ Fosse o meu próprio ser interior..." (1958, vol. 1, p. 128), o fato é que, neste livro, temos um Manuel Bandeira oscilante entre a amargura e o sarcasmo que sua história de vida lhe impunha. As lembranças de amores perdidos, sem nunca terem sido plenamente vividos, as projeções de uma vida erótica marcada por sua associação com a morte, enfim, a ironia contra esteticismos equívocos e contidos, são estes alguns dos aspectos definidores de um movimento pessoal de rompimento com uma forma de sentir e criar convencionalmente. Barbosa (1958, pp. lxxviii-ix) define bem este momento da vida do poeta quando diz que: "A doença havia revelado o poeta, e agora o levava para um novo caminho dentro do país da poesia". No primeiro poema da coletânea, ‘Bacanal’ (1958, vol. 1, pp. 84-5), Manuel Bandeira canta exultante seu desejo de total liberação carnavalesca. Os versos denunciam o desejo de rompimento quase agressivo, pelo elogio da bebedeira e da obscenidade, com o modo de vida regrado: No esto bruta das bebedeiras Que tudo emborca e faz em caco... ... A Lira etérea, a grande Lira!... Por que eu extático desfira Em seu louvor versus obscenos, Evoé Vênus!
O que justifica, num primeiro momento, esta dificuldade de falar, é o sofrimento interior trazido pelos primeiros anos de convívio com a tuberculose. A isto podemos acrescentar a perda concreta das referências familiares, a perda daquela porção de mundo que alimentava e amparava o poeta na luta para não morrer, pois é no meio desse processo de busca de sobrevida que Manuel Bandeira vê-se colhido por uma onda de perdas: primeiro a mãe, depois a irmã, finalmente o pai.
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Carnaval é o livro de Bandeira que testemunha as idas e vindas de uma trajetória interior baseada na contenção, na disciplina e no seu fastio. O eu lírico, máscara estética do sujeito doente, busca dar vazão a uma série de fantasias de todo proibidas na vida real: a embriaguez, o amor, a vida livre de restrições. Mas, ao mesmo tempo, estas fantasias de liberdade constroem-se com a mesma matéria de que é feita a imagem da doença: a embriaguez é mórbida, o amor é pervertido, a vida livre resulta em solidão.
Aliás, dentro do espírito irônico assumido em Carnaval, Manuel Bandeira produzirá o emblemático ‘Pneumotórax’, onde leva às últimas conseqüências a ironia e o sarcasmo antes prometidos ao amigo Mário de Andrade como forma de relação com a doença e o mundo. Neste poema, Bandeira trabalha, entre irônico e amargo, o antigo veredicto de seu médico de Clavadel, concluindo que, diante da impossibilidade de um pneumotórax, a saída para o tísico seria "um tango argentino". Desde a morte do pai, em 1920, Manuel Bandeira é um homem só. Morando na rua do Curvelo, passa a relacionar-se com Ribeiro Couto. Por intermédio deste, conhece Raul de Leoni, Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Álvaro Moreira e Ronald de Carvalho. Inicia correspondência com Mário de Andrade em 1921. Os anos passados no morro do Curvelo (1922-33), como dizia Bandeira, ensinaram-lhe muitas coisas e acabaram por amadurecê-lo como poeta. Lá ele escreveu quatro livros: O ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã e Crônicas da província do Brasil, este último de prosa. Em 1924, é publicado O ritmo dissoluto, que o poeta define como o "livro de transição entre dois momentos" de sua poesia, como também de transição na expressão de suas idéias e de seus sentimentos, acrescentando que nele há "não sei o que de morno, de abatido e indiferente: indiferença à poesia como à vida" (1958, vol. 2, pp. 66-7). É portanto na década de 1920, quando Manuel se vê só, que lhe ocorrem as mais profundas transformações. O contato com a boemia, mas também com a miséria, exercerá uma clara influência na percepção de sua tragédia pessoal com evidentes reflexos em sua poética. Libertinagem contém os poemas escritos entre 1924 e 1930, auge do movimento modernista, e é, dos livros do poeta, o que mais se enquadra dentro da técnica e da estética do modernismo. No entanto, Manuel atribui "muita coisa que ali parece modernismo" (1958, vol. 2, p. 75) ao espírito alegre de seus companheiros, o que corrobora a análise de Arrigucci Jr. (1987) sobre os fatores que contribuíram para a construção do perfil do poeta. Libertinagem, na crítica de Mário de Andrade, é o "livro de cristalização" do poeta, não de sua poesia, mas de sua psicologia:
É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. Aliás também nunca ele atingiu com tanta nitidez os seus ideais estéticos, como na confissão (‘Poética’, p. 188) de agora:
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem-comportado... (.................................................) - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Entendamo-nos: libertação pessoal (Andrade, 1958, vol. 1, p. 171).
O poema de abertura de Libertinagem, ‘Não sei dançar’ (1958, vol. 1, p. 179), escrito em 1925, explicita bem esse processo de libertação pessoal, ao mesmo tempo em que o poeta deixa claro seu estado de espírito de reagir contra a doença:
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... Abaixo Amiel! E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff. Sim, já perdi pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. | |||||
6 Carta a Rui Ribeiro Couto, em 26.9.1930 (AMLB/FCRB). |
Mais tarde, já na década de 1930, passados os anos de tratamento mais rigoroso, e em plena atividade artística e intelectual, superado, enfim, o pesadelo da morte próxima ainda que imprevisível, Manuel Bandeira, em sua correspondência, mostrará muitas vezes um posicionamento reticente no tratamento do tema tuberculose, no que se refere a si próprio, e em outras parecerá enfastiado.
Contudo, esta reserva e as oscilações de Manuel Bandeira no trato com a doença relativizam-se na medida em que se coloque a sua produção poética — e sua própria pessoa como poeta — no horizonte de sua visão sobre a doença, ou seja, a condição de poeta o escuda e o estrutura adequadamente para o trato direto com a realidade da doença. Lembremos que, como ele próprio já afirmara ao amigo Ribeiro Couto, a poesia é para ele um "esforço desesperado para sentir diferentemente, para esquecer a velha maneira de sofrer".6 | ||||
A consolidação da identidade reconstruída através da poesia
A produção poética de Bandeira ocupa o centro de uma mudança radical tanto de sua sensibilidade em relação à tuberculose, quanto da visão de si mesmo. O poeta se auto-analisa poético-existencialmente, deixando entrever as constantes lutas internas no sentido da construção, não apenas de uma nova poética, mas de uma nova percepção de si mesmo. Esse processo, que, como vimos, inicia-se quando Manuel Bandeira já perdera pai, mãe e irmãos e passa a conviver com a ânsia libertária dos boêmios, cria as condições para que o poeta possa expressar diferentemente idéias e sentimentos, sem se afastar de seus temas mais diletos, redesenhados ora através da evasão, ora através do humor (Guimarães, 1984, p. 53). "Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí e ‘não como forma imperfeita neste mundo de aparências’, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a ‘minha’ Pasárgada" (1958, vol. 2, p. 80).
O processo de "libertação pessoal" que se cristaliza em Libertinagem é pontuado, portanto, pela doença; ela aparece como conjunto temático ainda em 1966, quando o poeta, aos oitenta anos, coroando uma vida literária e intelectual de sucesso, publica Estrela da vida inteira. Este livro, que reúne a totalidade de sua obra poética publicada até então, traz como epígrafe uma curiosa evocação da vida que se frustou com a doença, mas que se restaurou sob o signo da poesia: "Estrela da vida inteira./Da vida que poderia/Ter sido e não foi. Poesia,/Minha vida verdadeira" (1987, p. v).7 | |||||
À guisa de curiosidade, chamamos atenção para a distribuição dos versos nessa estrofe. Se tomarmos o primeiro como expressão sintética de todo o processo existencial do poeta, observaremos que a discussão desse mesmo processo, levada a efeito nos três versos seguintes, aparece caracteristicamente distribuída de modo a termos a vida pregressa com sua respectiva negação ("Ter sido e não foi") ocupando o centro do quarteto. Mas, nesse mesmo centro encontramos também a palavra poesia como um divisor de águas entre o que poderia ter sido e o que de fato Manuel Bandeira se tornou. Do centro dessa discussão, a palavra poesia liga-se ao último verso ("Minha vida verdadeira"), desvendando assim o que tornou possível a superação do que anteriormente negava a realização da vida. A poesia aparece, portanto, como o móvel promotor da vida do poeta. Por outro lado, da substância de que é feita a sua poesia podemos dizer que é a própria experiência de negação da vida ensejada pela doença. A negação da vida e com ela a destruição daquilo a partir do que se constrói toda a possibilidade de sentido — a identidade —, esta dupla experiência marcará profundamente o caráter da obra poética de Bandeira. Contudo, o que define sua poesia é o fato de ela se construir, mais do que como instrumento de superação da doença e da morte, como elemento definidor de uma nova identidade.
Em relação ao humor na poesia de Manuel Bandeira, observa Guimarães (1984, p. 63) que, pouco a pouco, a forma acre, presente nos poemas mais antigos, cede "lugar a uma outra forma de encarar/criticar a existência". O poeta abandonará o tratamento sarcástico que conferia à morte, adotando uma visão mais serena em relação àquela que esteve presente em sua vida desde os 18 anos. O crítico, no entanto, adverte que: "não se trata de assumir uma atitude de impassibilidade, pois que sempre está presente uma funda emoção. Trata-se, antes, daquilo que é revelado pela própria forma dos poemas: um despojamento, uma depuração, um aprimoramento em direção ao essencial."
Este tísico profissional, no início da década 1930 já publicara quatro coletâneas de poesias, traduzira 16 livros, organizara a edição de um dicionário, dera aulas particulares, traduzira telegramas, colaborara assiduamente na imprensa do Rio de Janeiro e dos estados, escrevendo artigos, crônicas, fazendo crítica literária, de música, de artes plásticas e de cinema. Trazendo em seus pulmões aquelas mesmas lesões "teoricamente incompatíveis com a vida", sua atividade será ainda maior (Barbosa, 1988, p. 59). O "milagre", como assim cunhou Francisco de Assis Barbosa, estava consumado. Em 1935, ao ser nomeado inspetor do ensino secundário, Manuel Bandeira se reintegra ‘oficialmente’ ao trabalho e renuncia ao recebimento do montepio paterno, pondo um ponto final à sua condição de invalidez.
Manuel Bandeira foi um homem que buscou tanto o seu lugar no mundo como artista, quanto o seu lugar em si mesmo, revendo-se, pensando-se, transformando-se, na posse plena daquilo que, no fim de sua adolescência, fora apenas um expediente que o ajudou a suportar os primeiros anos de doença. A poesia que lhe surgiu sob os escombros do que o "mau destino" destruiu, foi ela que o ensinou a conviver com suas limitações, foi ela que lhe filtrou o desespero, até fazê-lo dizer, em 1943: "Sou poeta menor, perdoai!" Poeta humilde e absolutamente coincidente consigo. Um homem sadio? Talvez, mas, com certeza, salvo para uma longa vida. Manuel Bandeira morreu em 13 de outubro de 1968, aos 82 anos, de úlcera no duodeno.
Conclusão
Como vimos, a poesia foi o recurso adotado por Manuel Bandeira na reelaboração de sua identidade. A condição de poeta se lhe apresentou como alternativa privilegiada a tudo o que não pôde ser. Apesar do caráter compensatório, a poesia é, como buscamos compreender, um recurso privilegiado, pois é através dela que, como homem, Bandeira pôde dar conta, esteticamente, da destruição provocada pela doença. Reconstruindo sua identidade através dela, e não em torno dela, como procuramos demonstrar, ele fez da poesia o móvel promotor de sua existência.
Observamos também, por outro lado, que a tuberculose e a poesia, doença e arte, exercem uma influência recíproca na trajetória de vida de Manuel Bandeira. A vocação para a poesia veio-lhe como fatalidade, assim como a doença, mas também como necessidade para vencer o sentimento de inutilidade. Além disso, tanto uma quanto outra exigiram-lhe disciplina e humildade. A experiência da doença, como bem observou Guimarães, o fez encaminhar a vida para um efetivo compromisso com a poesia. Seu projeto poético foi, portanto, a chave para a superação de sua condição de tísico. Para Manuel Bandeira, "A arte é uma fada que transmuta / E transfigura o mau destino." | |||||
Seu modo de encarar a doença, no entanto, não foi sempre o mesmo, como tivemos oportunidade de observar através da análise de sua produção poética. De início abatido pela doença, A cinza das horas parecer-lhe-ia, anos mais tarde, simples "queixumes de um doente desenganado". Em Carnaval, o poeta supera certos sentimentos, mostrando-se, porém, oscilante entre a amargura e o sarcasmo ("Hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico"), embora denote uma clara disposição de mudar sua relação com a doença. O ritmo dissoluto, apontado pelo poeta como momento de transição de idéias e sentimentos, traz evocações vagas da doença, mas certamente não apresenta mais qualquer traço de abnegação. Em Libertinagem, obra deliberadamente modernista, Bandeira exercita seu humor (‘Pneumotórax’, ‘Mangue’) e seu lirismo (‘Poética’). Ao afirmar não querer "mais saber do lirismo que não é libertação", o poeta repele todas as fórmulas de exagero e rigor, assim como expressões não espontâneas, convertendo a liberdade que prega para a poesia em seu próprio modo de ver e viver a vida.
Para finalizar este artigo faz-se necessário destacar o papel desempenhado por Manuel Bandeira na elaboração de uma nova representação da tuberculose e da poesia. O autor de ‘Vou-me embora pra Pasárgada’ elabora sua representação da doença com o ideário próprio de sua época, isso é certo. Mas seu trabalho poético, refletido e sistemático, obedece a um projeto estético e pessoal, projeto este que não se reduz a uma mera transposição de padrões vigentes para o campo da criação artística. Bandeira produziu uma obra que corresponde, enquanto projeto estético e pessoal, a uma idéia clara e acabada do que fosse o fazer poesia. Construiu-se a partir da retomada de sua história e obedeceu aos mesmos princípios estabelecidos na luta contra a doença: disciplina e humildade. A análise da contribuição de Manuel Bandeira não se reduz apenas à reelaboração da representação da doença, mas volta-se para a reelaboração da poesia, movimento instaurado pelo poeta maior do modernismo. Podemos concluir, valendo-nos das contribuições de Erving Goffman em sua obra Estigma, em que faz uma valorização da individualidade ao considerar o indivíduo parte ativa na reconstrução da identidade deteriorada, que Manuel Bandeira, em sua "carreira moral", encontrou na atividade de poeta um pleno ajustamento pessoal, pois é através da poesia que ele reconstrói a imagem de si mesmo. Segundo o referido autor, o estigma e o esforço para escondê-lo ou não fixam-se como parte da identidade pessoal. Toda uma vida que poderia ter sido e que não foi, em função da doença que o abateu, tornou-se verdadeira na poesia, muito provavelmente no momento do reconhecimento de que "em mim o poeta é a tuberculose. Eu sou Manoel Bandeira, o Poeta Tísico."8 |
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Miceli, Sérgio 1977 Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos anatolianos). São Paulo, Perspectiva. [ Links ]
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