Ser famoso virou meio de vida. O que tornou isso possível? O acadêmico inglês Fred Inglis explica como se formou, a partir do século 18, o conceito moderno de celebridade
Fábio Marton
No dia 1° de fevereiro, o palhaço Tiririca, o ex-jogador Romário e o ex-BBB
Jean Wyllys devem tomar posse entre os 513 deputados federais recém-eleitos.
Qual mérito o povo brasileiro enxergou nessas pessoas para fazê-los seus
representantes no poder legislativo? São estreantes na política, mas se
consagraram celebridades no mundo da TV e do futebol.
Em A Short History of Celebrity (sem edição no Brasil), o acadêmico Fred Inglis, da Universidade de Sheffield, explica como se formou o conceito de celebridade. Ele argumenta que ele é recente e coincide com a fundação do mundo moderno, no século 18. Antes disso, certamente havia gente famosa. Essas pessoas tinham uma coisa que as celebridades atuais podem ou não ter: renome. Ser renomado significava ser famoso por sua atividade numa área específica. Leonardo da Vinci e Michelangelo foram artistas renomados. O renome era, segundo Inglis, o "reconhecimento não tanto do homem em si, mas da significância de suas ações para a sociedade". Isto é, a vida do famoso era secundária em sua figura. E alguns deles, lembra a estudiosa de comunicação Denise Paiero, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, simplesmente "nasciam para ser famosos", como os reis e nobres à sua volta.
Em A Short History of Celebrity (sem edição no Brasil), o acadêmico Fred Inglis, da Universidade de Sheffield, explica como se formou o conceito de celebridade. Ele argumenta que ele é recente e coincide com a fundação do mundo moderno, no século 18. Antes disso, certamente havia gente famosa. Essas pessoas tinham uma coisa que as celebridades atuais podem ou não ter: renome. Ser renomado significava ser famoso por sua atividade numa área específica. Leonardo da Vinci e Michelangelo foram artistas renomados. O renome era, segundo Inglis, o "reconhecimento não tanto do homem em si, mas da significância de suas ações para a sociedade". Isto é, a vida do famoso era secundária em sua figura. E alguns deles, lembra a estudiosa de comunicação Denise Paiero, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, simplesmente "nasciam para ser famosos", como os reis e nobres à sua volta.
Ilustração: Adriana Komura
No século 18, afirma Inglis, "o surgimento da democracia urbana, a expansão de dois séculos de seus meios de comunicação, aliadas à radical individualização da sensibilidade moderna, fizeram da fama uma recompensa muito mais transitória". A partir daí, mudou a aclamação pública de uma expressão de devoção para o que chamamos de celebridade. A nova classe dominante, a burguesia, não contava com uma ideia de veneração do povo ou aprovação divina, como os nobres no absolutismo anterior. Isso quer dizer que essas pessoas precisavam se fazer notadas por suas conquistas - não possuíam títulos. Surgia a ostentação do sucesso: a moda extremamente espalhafatosa do século 18 não apenas identificava os nobres mas também a riqueza dos burgueses.
Como quase tudo o que se refere ao mundo capitalista moderno, a celebridade - ou seja, pessoas que se tornaram famosas também por sua vida, e não apenas por sua ocupação - surgiu na Inglaterra. Uma das primeiras foi a nobre, escritora e feminista Mary Wortley Montagu, que em 1716 viajou para a Turquia com o marido e escreveu sobre a experiência no mundo árabe. O pintor Joshua Reynolds foi o "cronista" dessas primeiras celebridades, retratadas em seu luxuoso cotidiano, e ele mesmo um destaque, comparável às personalidades que pintava.
A era dos sentimentos
Nem só a mudança na ordem socioeconômica transformou renome em celebridade. Foi preciso uma alteração na percepção dos sentimentos. Os valores da nobreza eram relacionados ao controle das emoções: os nobres casavam-se abertamente por interesse e deviam manter uma postura de superioridade diante daqueles a quem governavam. No Iluminismo, surgiram os teóricos dos sentimentos, como David Hume, Jean-Jacques Rosseau e mesmo Adam Smith, que, além de inaugurar a economia moderna, também escreveu a Teoria dos Sentimentos Morais (1759), em que explicava o comportamento virtuoso por meio da sensação de empatia. Rosseau, ao aproximar a ideia de virtude ao comportamento natural, revolucionou a percepção das emoções, lançando as bases para o Romantismo, movimento que exaltava a fidelidade aos próprios sentimentos.
Décadas depois, o poeta inglês Lorde Byron tornou-se a maior encarnação do Romantismo, pelo estilo de vida e obra, e foi o exemplo acabado do novo tipo de fama. Byron teve uma vida completamente escandalosa para os padrões da época, acumulando dívidas, amantes (algumas casadas) e filhos fora do casamento. Morreu como herói das novas ideias ao participar da guerra de independência da Grécia do Império Otomano. Ainda no século 19, Charles Baudelaire ocupou o espaço da celebridade romântica, com sua vida licenciosa valendo-lhe o apelido de "poeta maldito". Paris havia sucedido Londres como capital da modernidade europeia graças, em parte, à reconstrução iniciada em 1852 por Georges-Eugène Haussmann. As novas avenidas, concebidas para conter revoltas como a Comuna de 1848, também deram origem a duas novidades: as lojas com vitrines e os cafés nos bulevares, onde as pessoas sentavam-se não só para conversar (como nos cafés ingleses do século anterior), mas também para verem e serem vistas.
Nasce a estrela
O século 19 também marca o surgimento das pessoas célebres pelo seu visual, seu sex-appeal: os atores. Até então, o teatro era um evento barulhento. A plateia era iluminada, manifestava-se com frequência e não raro atirava tomates ao palco. Ao longo dos anos 1800, o silêncio se tornou norma e a plateia foi obscurecida. Isso levou a uma atitude de reverência ao teatro, mas, sobretudo, aos atores.
Sarah Bernhardt tornou-se a primeira superestrela, fazendo turnês internacionais até mesmo no Brasil (quatro vezes, a última em 1905). Sua agitada vida sexual também era motivo de fofocas, mas a atriz francesa tinha já a mesma "licença" dada aos poetas.
O cinema copiou a estrutura do teatro, com algumas diferenças essenciais, como o close. A aura sagrada das estrelas aumentou com a proximidade e, ao mesmo tempo, a ausência (no palco, estavam quase ao alcance do espectador) - "familiares e intocáveis". Inglis atribui um sentido épico aos "anos dourados" de Hollywood, das décadas de 1930 a 70. John Wayne, James Stewart e Cary Grant representavam todo o espectro da masculinidade americana. Wayne, em sua versão durona e solitária. Em Stewart, doméstica e sentimental. Em Grant, jocosa e hedonista. Já Marilyn Monroe é ícone e mártir de um arquétipo de feminilidade.
O papel dos jornais
O surgimento das celebridades, que para Inglis funcionam como referências de comportamento para a sociedade, fecha apenas a metade da conta. Afinal, falta explicar como nasce o jornalismo de celebridades, o oxigênio que permite sua combustão. A expansão do jornalismo diário nos Estados Unidos, no século 19, tem grande ligação com isso. Se ainda hoje é difícil achar coisas novas para preencher muitas páginas todos os dias, numa época em que as informações viajavam por telégrafo, essa era uma tarefa dificílima. Assim, os diários tinham uma imensa carência de notícias. A primeira fonte passou a ser os escritórios de justiça. "A segunda (...) era o dinheiro e os que se sabia possuí-lo", diz o autor. Perfis de ricos e famosos começaram a ser produzidos por jornais como The New York Journal, de William Hearst. Esse tornou-se um processo que se autoalimenta ainda hoje, culminando nos paparazzi, os fotógrafos que procuram imagens de celebridades fazendo compras, passeando com os filhos... "Nessa época, surgem as pessoas que são famosas não mais pelo que são, mas pelo que têm", afirma Paiero.
Com a comunicação de massas (a popularização do rádio é dos anos 1920 e 30, e a da TV, das décadas seguintes) e o culto da celebridade já instituídos, não demorou a encontrarem oportunidades políticas para seu uso. "O ditador é, sem dúvida, a suprema celebridade", diz Inglis. "Ele é a apavorante apoteose do sistema de estrelas iniciado pelas salas de teatro e concerto do século 19". Adolf Hitler, Benito Mussolini e Josef Stalin criaram cultos nacionais em torno de si, controlando cada detalhe em suas aparições, usando as novas mídias e a forma como eram representados pela imprensa. Mesmo em países democráticos, políticos souberam lidar com a fama, como Franklin D. Roosevelt, nos Estados Unidos, e Winston Churchill, na Inglaterra. Churchill, obeso e beberrão, fazia discursos lembrados ainda hoje, e Roosevelt, que usava cadeira de rodas, era filmado de forma a ocultar esse fato. Segundo o autor, assim como o cinema deu origem ao "grande líder", a televisão acabou por decretar seu fim. A caixa, em volta da qual a família se reúne informalmente, não permite o mesmo tipo de contemplação muda e estupefata do cinema e do rádio - menos ainda depois da transmissão ao vivo.
No século 18, afirma Inglis, "o surgimento da democracia urbana, a expansão de dois séculos de seus meios de comunicação, aliadas à radical individualização da sensibilidade moderna, fizeram da fama uma recompensa muito mais transitória". A partir daí, mudou a aclamação pública de uma expressão de devoção para o que chamamos de celebridade. A nova classe dominante, a burguesia, não contava com uma ideia de veneração do povo ou aprovação divina, como os nobres no absolutismo anterior. Isso quer dizer que essas pessoas precisavam se fazer notadas por suas conquistas - não possuíam títulos. Surgia a ostentação do sucesso: a moda extremamente espalhafatosa do século 18 não apenas identificava os nobres mas também a riqueza dos burgueses.
Como quase tudo o que se refere ao mundo capitalista moderno, a celebridade - ou seja, pessoas que se tornaram famosas também por sua vida, e não apenas por sua ocupação - surgiu na Inglaterra. Uma das primeiras foi a nobre, escritora e feminista Mary Wortley Montagu, que em 1716 viajou para a Turquia com o marido e escreveu sobre a experiência no mundo árabe. O pintor Joshua Reynolds foi o "cronista" dessas primeiras celebridades, retratadas em seu luxuoso cotidiano, e ele mesmo um destaque, comparável às personalidades que pintava.
A era dos sentimentos
Nem só a mudança na ordem socioeconômica transformou renome em celebridade. Foi preciso uma alteração na percepção dos sentimentos. Os valores da nobreza eram relacionados ao controle das emoções: os nobres casavam-se abertamente por interesse e deviam manter uma postura de superioridade diante daqueles a quem governavam. No Iluminismo, surgiram os teóricos dos sentimentos, como David Hume, Jean-Jacques Rosseau e mesmo Adam Smith, que, além de inaugurar a economia moderna, também escreveu a Teoria dos Sentimentos Morais (1759), em que explicava o comportamento virtuoso por meio da sensação de empatia. Rosseau, ao aproximar a ideia de virtude ao comportamento natural, revolucionou a percepção das emoções, lançando as bases para o Romantismo, movimento que exaltava a fidelidade aos próprios sentimentos.
Décadas depois, o poeta inglês Lorde Byron tornou-se a maior encarnação do Romantismo, pelo estilo de vida e obra, e foi o exemplo acabado do novo tipo de fama. Byron teve uma vida completamente escandalosa para os padrões da época, acumulando dívidas, amantes (algumas casadas) e filhos fora do casamento. Morreu como herói das novas ideias ao participar da guerra de independência da Grécia do Império Otomano. Ainda no século 19, Charles Baudelaire ocupou o espaço da celebridade romântica, com sua vida licenciosa valendo-lhe o apelido de "poeta maldito". Paris havia sucedido Londres como capital da modernidade europeia graças, em parte, à reconstrução iniciada em 1852 por Georges-Eugène Haussmann. As novas avenidas, concebidas para conter revoltas como a Comuna de 1848, também deram origem a duas novidades: as lojas com vitrines e os cafés nos bulevares, onde as pessoas sentavam-se não só para conversar (como nos cafés ingleses do século anterior), mas também para verem e serem vistas.
Nasce a estrela
O século 19 também marca o surgimento das pessoas célebres pelo seu visual, seu sex-appeal: os atores. Até então, o teatro era um evento barulhento. A plateia era iluminada, manifestava-se com frequência e não raro atirava tomates ao palco. Ao longo dos anos 1800, o silêncio se tornou norma e a plateia foi obscurecida. Isso levou a uma atitude de reverência ao teatro, mas, sobretudo, aos atores.
Sarah Bernhardt tornou-se a primeira superestrela, fazendo turnês internacionais até mesmo no Brasil (quatro vezes, a última em 1905). Sua agitada vida sexual também era motivo de fofocas, mas a atriz francesa tinha já a mesma "licença" dada aos poetas.
O cinema copiou a estrutura do teatro, com algumas diferenças essenciais, como o close. A aura sagrada das estrelas aumentou com a proximidade e, ao mesmo tempo, a ausência (no palco, estavam quase ao alcance do espectador) - "familiares e intocáveis". Inglis atribui um sentido épico aos "anos dourados" de Hollywood, das décadas de 1930 a 70. John Wayne, James Stewart e Cary Grant representavam todo o espectro da masculinidade americana. Wayne, em sua versão durona e solitária. Em Stewart, doméstica e sentimental. Em Grant, jocosa e hedonista. Já Marilyn Monroe é ícone e mártir de um arquétipo de feminilidade.
O papel dos jornais
O surgimento das celebridades, que para Inglis funcionam como referências de comportamento para a sociedade, fecha apenas a metade da conta. Afinal, falta explicar como nasce o jornalismo de celebridades, o oxigênio que permite sua combustão. A expansão do jornalismo diário nos Estados Unidos, no século 19, tem grande ligação com isso. Se ainda hoje é difícil achar coisas novas para preencher muitas páginas todos os dias, numa época em que as informações viajavam por telégrafo, essa era uma tarefa dificílima. Assim, os diários tinham uma imensa carência de notícias. A primeira fonte passou a ser os escritórios de justiça. "A segunda (...) era o dinheiro e os que se sabia possuí-lo", diz o autor. Perfis de ricos e famosos começaram a ser produzidos por jornais como The New York Journal, de William Hearst. Esse tornou-se um processo que se autoalimenta ainda hoje, culminando nos paparazzi, os fotógrafos que procuram imagens de celebridades fazendo compras, passeando com os filhos... "Nessa época, surgem as pessoas que são famosas não mais pelo que são, mas pelo que têm", afirma Paiero.
Com a comunicação de massas (a popularização do rádio é dos anos 1920 e 30, e a da TV, das décadas seguintes) e o culto da celebridade já instituídos, não demorou a encontrarem oportunidades políticas para seu uso. "O ditador é, sem dúvida, a suprema celebridade", diz Inglis. "Ele é a apavorante apoteose do sistema de estrelas iniciado pelas salas de teatro e concerto do século 19". Adolf Hitler, Benito Mussolini e Josef Stalin criaram cultos nacionais em torno de si, controlando cada detalhe em suas aparições, usando as novas mídias e a forma como eram representados pela imprensa. Mesmo em países democráticos, políticos souberam lidar com a fama, como Franklin D. Roosevelt, nos Estados Unidos, e Winston Churchill, na Inglaterra. Churchill, obeso e beberrão, fazia discursos lembrados ainda hoje, e Roosevelt, que usava cadeira de rodas, era filmado de forma a ocultar esse fato. Segundo o autor, assim como o cinema deu origem ao "grande líder", a televisão acabou por decretar seu fim. A caixa, em volta da qual a família se reúne informalmente, não permite o mesmo tipo de contemplação muda e estupefata do cinema e do rádio - menos ainda depois da transmissão ao vivo.
O livro também aborda a transformação dos músicos clássicos no século 19, dos
âncoras de TV, esportistas, roqueiros, modelos e da princesa Diana (sempre ela)
em celebridades. O estado atual do fenômeno, no mundo dos reality shows e da
internet, parece cumprir a profecia de Andy Warhol, que em 1968 disse que, "no
futuro, todo mundo será mundialmente famoso por 15 minutos". Mas Inglis tem
pouco a dizer sobre isso, manifestando certa nostalgia pelos anos dourados do
cinema e do rock britânico. Paiero faz um diagnóstico das mudanças: "Hoje
existem os famosos que estão na mídia porque são famosos - e estão na mídia. São
celebridades porque são celebridades e se esvaziam muito rápido". Inglis tem
palavras mais duras sobre os reality shows: "Essa coisa não nos diz nada sobre
os significados da celebridade, exceto que uma nova categoria foi admitida, a
daqueles sem talento e cuja boca suja e julgamentos ruins os fazem, muito
brevemente, tópicos da fofoca pública e condenações
fáceis".
Saiba mais
A obra
A Short History of Celebrity
Fred Inglis, Princeton University Press, R$ 67,99*
*O valor não inclui frete
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