sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Personalidades - Essen

“Não fiz a saudação nazista e levei uma bengalada”
A menina Izza foi morar na Alemanha em 1938, quando Hitler ameaçava o mundo. Hoje, a bisavó Izza lembra a empolgação da mudança, a gentileza dos alemães e a paranoia da guerra

Como filha de militar, cresci acostumada a me mudar. Meu pai, o então major Gellio de Araújo Lima, ficava dois anos em cada cidade. Em 1937, papai avisou que iríamos para a Alemanha. Eu tinha 10 anos de idade e morávamos no Rio de Janeiro. A Alemanha era uma das maiores produtoras de armas do mundo, e o governo de Getúlio Vargas estava interessado em comprá-las. Meu pai foi mandado à cidade de Essen, onde ficavam as indústrias Krupp. Ele e outros oficiais brasileiros acompanhariam a produção de armamento.

Para nós, crianças, ele simplesmente contou que viveríamos na Alemanha por cinco anos. Achamos ótimo. Nunca tínhamos saído do Brasil, nem mesmo em férias. Era difícil um oficial com quatro filhos ter dinheiro para viajar a lazer.

Embarcamos em fevereiro de 1938. Fomos as quatro crianças, meu pai, minha mãe, uma tia e nossa empregada. A viagem de navio foi um conto de fadas. Éramos servidos por garçons, coisa que não conhecíamos. A gente brincava no navio como num quintal. Nos divertíamos num grande salão, que a mim, pequena como era, parecia enorme.

Quando chegamos à Alemanha, não nevava, mas estava muito frio. Achei aquele um país cinza. Desembarcamos em Hamburgo e seguimos de trem. Essen era uma cidade pequena, porém avançada e movimentada, com muitos carros e ônibus. Havia também bandeiras com a suástica nazista, mas não de forma tão ostensiva como veríamos depois, nos filmes. Fomos morar num apartamento grande, com aquecimento interno e despensa.

Passávamos o dia inteiro na escola de freiras, só para meninas. Éramos uma atração, por causa do idioma. No recreio, ficávamos no meio de uma roda, e as outras crianças nos pediam para falar. Elas não tinham muita noção do que era o nosso país. Mas falavam do pedaço que eles “tinham” no Brasil, da “colônia” alemã aqui, Santa Catarina. Isso me deixava danada.

No início, não falávamos alemão. Criaram uma sala só para nós, as meninas brasileiras, três alunas. A professora ficava em tempo integral conosco. Nunca nos mandou uma advertência. Com um pai militar, sabíamos nos comportar. Levei bronca só uma vez. Antes de ir para casa, no fim da tarde, eles serviam um prato de sopa bem forte, que eu adorava. Só que vinham pedaços de gordura. Aquilo eu não conseguia engolir. No primeiro dia, deixei no prato. Veio a freira e me disse: “Não, tem de comer tudo”. E ficou do meu lado até que eu terminasse. Das outras vezes, aprendi a esconder a gordura na pilha de pratos sujos.

Os professores eram rígidos. Eles e todo mundo. Se dois garotos começassem a brigar na rua, o primeiro adulto que passasse lhes dava uma bengalada e acabava com a história. Andávamos de bonde, mas eu não gostava. Se entrasse um adulto, tínhamos de dar o lugar. Se passasse algum conhecido, tínhamos de inclinar a cabeça, fazer uma reverência. Não fosse assim, apanhávamos. Qualquer adulto batia.

Lembro a primeira vez em que apanhamos de um estranho: depois que a Alemanha invadiu a Polônia, em setembro de 1939, houve uma parada em Essen. Fomos ver, porque era muito bonito. Os soldados marchavam todos iguaizinhos, como se fossem todos reflexos em espelhos. Eles deviam treinar muito. Todos faziam, para a bandeira, a saudação nazista. Eu e minhas irmãs não levantamos a mão, porque não sabíamos que era obrigatório. Pois levamos bengaladas na cabeça. Bateram sem dó.

Depois da invasão da Polônia, todos passaram a falar da guerra. Começaram a tocar sirenes para fazer exercícios militares. Logo que elas tocavam, todos corriam para o subsolo, para escapar das bombas. Mas não víamos guerra nem bomba nenhuma (os bombardeios de Essen pelos Aliados começariam em 1942).

Começaram a recrutar os meninos. Eram garotos de 13, 14 anos, que gostavam de vestir aquele uniforme com a suástica no braço. Eram os meninos de Hitler. Bonitos, louros, a maioria tinha olhos azuis. Quando vestiam o uniforme, as garotas achavam formidável. Uma vez, quando vínhamos da escola, vimos um grupo deles quebrar os vidros de um prédio e jogar os móveis pela janela. Em casa, meu pai explicou que ali moravam famílias de judeus.

Mamãe também tinha uma amiga judia. Por causa da guerra, começaram a racionar comida, e a família dessa amiga precisava de cupons para comprar mantimentos. Como éramos estrangeiros, ganhávamos mais cupons. Então a mamãe os ajudava. Papai também levava dinheiro com um pouco de comida. Depois eles sumiram.

Papai decidiu que precisávamos sair do país. Se o Brasil entrasse em guerra contra a Alemanha, ficaríamos presos (o Brasil permaneceu neutro até 1942, quando entrou na guerra contra a Alemanha). Mamãe começou a guardar as coisas em grandes baús e a enviá-Ias aos poucos para o Brasil. Como oficial, meu pai não poderia abandonar o posto. Iríamos escondidos. Quase todo final de semana, viajávamos de carro. Naquele final de semana, fingimos que faríamos o mesmo. Só que fomos para não voltar.

Saímos apertados no carro, com malas e outros pertences. Chegamos à Holanda e ficamos um mês num hotel, na cidade de Haia, a 250 quilômetros de Essen. Não podíamos conversar muito, porque não sabíamos se alguém era um espião a serviço da Alemanha. Ficamos um mês na Holanda, até Hitler ameaçar invadir o país. Fugimos de novo, para a França.

Ficamos em Paris mais um mês, esperando a chegada de um navio a Bordeaux. Viajamos para lá durante a noite. Papai parou num hotel de beira de estrada, sujo – acho que era, na verdade, um prostíbulo. A gente ouvia a confusão, a música. Minha tia foi ao banheiro, fora do quarto, e um soldado francês tentou agarrá-la. Nesse meio-tempo, fui à janela. Estava uma lua linda. Vi um homem se esgueirar atrás de uma árvore. Supus que fosse um espião. Contei ao meu pai. Ele disse que não era nada.

Fomos para Bordeaux e embarcamos, sem meu pai, que retornou a Essen. Na volta, no navio, procurávamos submarinos. A gente tentava ver os periscópios, que nos seguiam o tempo todo. Não entendíamos que um submarino poderia nos acertar com um torpedo. Só quando já estávamos no Brasil, soube que meu pai fora preso. O homem que eu havia visto pela janela, parece, estava nos seguindo mesmo. Na prisão, meu pai soube que um navio tinha ido a pique e pensou que era o nosso. No Brasil, ficamos chorando até ele voltar – acho que uns três ou quatro meses depois.

Apesar de tudo, gostei do tempo que passamos na Alemanha. Os alemães sempre foram muito gentis. Com a guerra, começou o medo. Ninguém mais falava com ninguém. Hoje, tenho sete netas, um neto e quatro bisnetos. De vez em quando, conto essas histórias – e eles adoram. Ainda bem, porque adoro contá-las.

 
FONTE: REVISTA ÉPOCA
 

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