sábado, 4 de janeiro de 2014

Te Contei, não ? - Renascimento ? Para que serve ?

A pergunta pode parecer estranha, mas já explico. Estava, outros tempos, passeando pelas ruas de Florença - e perdoem-me a ostentação involuntária nestes tempos do politicamente correto, mas a contextualização é importante -, e olhando aquelas casas e palácios antigos, os monumentos centenários

Por Ricardo Frantz
        
Cobertos de pátina evocativa e/ou de excrementos de pombo e poluição, e perguntava-me: afinal, por que ainda hoje acorrem a esta cidade fossilizada hordas diárias de turistas dos quatro cantos do planeta? Como o Renascimento, do qual Florença foi berço e capital, e por isso ficou famosa, chegou a adquirir tamanho apelo para o cidadão do mundo?

 
Seria apenas um caso exemplar da força da indústria cultural, de uma propaganda artificiosa orquestrada em escala planetária? Em parte, até pode ser... mas, andando por aquelas ruas coalhadas de gente carregando mochilas e máquinas fotográficas, às vezes, até dando gritinhos de admiração, é difícil acreditar que isso tudo ao redor seja apenas passado mitificado e modismo. Pelo menos para o homem do Ocidente, o Renascimento é uma herança inescapável, ele deu fundamento a grande parte da sua cultura contemporânea, por mais exótica e original que ela possa parecer.
Porque a influência do Renascimento perdurou após seu encerramento, e nunca morreu para o mundo. Hoje, para boa parte das pessoas, dada a grande influência da cultura ocidental sobre o planeta inteiro. Mas mesmo em seu tempo, teve um impacto transcontinental. Foi um período, talvez, tão excitante e revolucionário para os que o viveram quanto é o de hoje para nós, e esse simples fato já nos identifica imediatamente com ele. Conhecemos diversos relatos históricos em que artistas, filósofos e outros intelectuais se declaravam entusiasmados com o que estavam vivendo, com o que estavam fazendo, e com as novidades que apareciam a cada dia vindas de todos os lados, da ciência, das artes, da filosofia, de todo o resto.
O mundo estava mudando, os navegadores daquela época em breve haveriam até de descobrir todo um novo continente! Esse clima de efervescência, de descobertas e transformações profundas na cultura e na arte, já é de conhecimento de todo estudante de nível médio, está no currículo de todas as escolas. E quem, com uma instrução mediana, nunca ouviu falar em Michelangelo ou Leonardo Da Vinci? Sobre eles paira uma aura mágica que recai sobre todo aquele período, do qual eles foram agentes fundamentais, e tudo isso também explica a perene fama do Renascimento, que venceu os séculos e só parece crescer.
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Basílica di Santa Maria del Fiore, em Florença, Itália. Notabilizada por sua monumental cúpula, obra do celebrado arquiteto renascentista Brunelleschi
Mas, talvez, o que nos identifique mais com os renascentistas, o que mantenha mais vivo o apelo do período para a contemporaneidade, é o fato de que eles, como nós, colocaram o homem no centro do universo como a medida de todas as coisas. Na religião, na filosofia, nas artes renascentistas, o homem reassumiu um papel de enorme relevo, como não possuía desde a Antiguidade Clássica, e que depois dela havia perdido toda. Por influência direta do cristianismo, com seu conceito do pecado original e sua doutrina de um fabuloso Reino dos Céus, onde todos os devotos, após a sofrida e sobressaltada peregrinação pela Terra, viveriam eternamente em beatitude como espíritos purificados, durante a Idade Média o mundo passou a ser considerado como essencialmente mau; o homem, como um pobre condenado à espera de redenção; a vida, como um purgatório e um exílio, e o corpo humano, como vil e desprezível, um animal que precisava ser mantido sob estrita disciplina. A representação do nu, por isso, virtualmente desapareceu e, quando aparecia, era para ridicularizá-lo.
Uma das maiores novidades que floresceram durante o Renascimento foi exatamente esta: a redescoberta e revalorização do homem e da vida na Terra. Daí que a corrente de pensamento dominante na época fosse chamada de Humanismo. Foi uma escola eclética e, às vezes, contraditória, que tentava conciliar a tradição da venerada Antiguidade com o mundo novo em que viviam, reunindo elementos tão diversos quanto o cristianismo, as ciências, a cultura pagã com sua mitologia e filosofia, os sistemas de Educação, as ciências ocultas como a astrologia, o hermetismo e a cabala, entre muitos outros constituintes, tendo um fundo ético e, como objetivo, a Educação integral e a reforma da sociedade. Mas, antes de prosseguirmos, coloquemos alguns fatos essenciais em contexto.
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Templo de Bramante, em Roma, um dos exemplos mais significativos de arquitetura renascentistaO Palazzo Vecchio (Palácio Velho), em Florença, acolhe um museu que expõe obras de Agnolo Bronzino Michelangelo Buonarroti e Giorgio Vasari
 
Um pouco de perspectiva
O interesse pela cultura clássica, na verdade, não era novo; dizer que ele ressurgiu só no Renascimento é um dos vários mitos que ainda cercam o movimento e nos impedem de entendê- lo corretamente. O que ocorreu foi uma nítida intensificação. Mesmo depois da derrocada do Império Romano e da ascensão do cristianismo, o grande oponente da cultura pagã, ao longo da Idade Média, o interesse sobrevivera, em aspectos limitados, mas, na altura do século 12, ele começou a se disseminar e a ganhar foros de discurso oficial. A vida sensível, a natureza, o homem começavam novamente a ser vistos como belos e dignos, como haviam feito os clássicos. Nas universidades, os textos antigos voltavam a ser estudados, recuperando a identificação grega da beleza com a virtude, e até os teólogos falavam nisso, lembrando a própria Escritura cristã, que dizia do mundo ser obra perfeita e, do homem, ter sido criado à semelhança da divindade. Na arte, anunciava-se o reaparecimento do naturalismo, depois de séculos de estilizações simplificadas e quase abstratas.
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Decoração da porta principal da Basílica Santa Maria del Fiore: Cristo entronizado entre a Virgem Maria, São João Batista e alguns santos
Quando chegamos ao século 15, o legado cultural da Antiguidade havia se tornado um interesse dominante entre os intelectuais e artistas, ornado com toda a panóplia do Humanismo cristão já em vias de consolidação e institucionalização, e inicia-se "oficialmente" aquilo que se chamou de "Renascimento", entre outros motivos, pelo resgate, agora de fato intensificado e sistemático, da herança clássica, dentro de um contexto ainda marcado pela massiva, embora declinante, influência da Igreja Católica. O movimento centralizou suas forças em Florença, o principal berço do Renascimento e por um bom tempo a sua maior capital, "o esplendor e o ornamento de toda a Itália", nas palavras do diplomata Ludovico Carbone, que a conheceu naqueles tempos. A cidade adquirira grande poder político e econômico por meio da atividade de seus banqueiros e comerciantes, que faziam negócios com toda a Europa, vivia sob um sistema republicano onde a classe burguesa tinha grande peso, e atraíra uma legião de artistas e intelectuais notáveis, dando origem a uma cultura dinâmica e inquisitiva, com forte caráter profano e cívico, cuja influência começava a se espalhar pela Itália e a transbordar suas fronteiras, tornando-se uma referência para todo o continente.
Academia de Belas Artes de FlorençaReprodução
O David, de Michelangelo: um símbolo do Homem novoFigura feminina da Sibila Cumeia, na Capela Sistina, Vaticano (Michelangelo)
Uma famosa síntese da filosofia humanista foi deixada em 1486 por Pico della Mirandola, ligado ao núcleo florentino de humanistas, em sua Oração sobre a Dignidade do Homem, onde celebrou a nova posição do homem dentro da Criação como um ser prodigioso, divino e imortal, mas inespecífico, cujas únicas virtudes particulares eram ser dotado da razão e do livre arbítrio, que o distinguiam para sempre dos animais, e do poder criativo, o que o tornava um potencial colaborador da divindade na obra do mundo, sendo capaz de aprender e moldar-se na direção que desejasse, assumindo mil poderes, e capaz de transcender os seus limites para viver na Terra uma vida harmoniosa, justa, equilibrada, organizada, fraterna e cheia de felicidade, à semelhança da que viviam os anjos no Paraíso, se assim escolhesse e quisesse fazer.
 
Por Ricardo Frantz
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Estudos de Michelangelo para a parede dupla de um túmuloRaffaello Sanzio, estudo de sombra para Adão
Para Mirandola, assim como para os humanistas em geral, a doutrina católica era a única inteiramente correta e a rainha das ciências continuava a ser a teologia, mas já se permitia que outras tradições fossem olhadas com mais simpatia e respeito, entendidas como ecos fragmentários ou antecipações imperfeitas das verdades postuladas pelo cristianismo. O reconhecimento da sua supremacia agradava à poderosa Igreja, e ela mesma se interessava pelas pesquisas acadêmicas, embora esse liberalismo não deixasse de gerar tensões, tanto que alguns humanistas, como o próprio Pico, tornaram=se suspeitos de heresia por seus excessos de liberdades no filosofar. De qualquer forma, se antes humilhara o homem, agora, a teologia, reinterpretada, temperada de classicismo e mil outros sabores, dava-lhe respaldo para uma ambiciosa ascensão na ordem das coisas.
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Estudo de um homem velho, em seis perfis, de Leonardo Da Vinci
Talvez o instável e frequentemente sangrento panorama político e social da época, junto a um novo espírito de experimentação, descoberta e pesquisa, e um acesso facilitado à informação com a invenção da imprensa, tenha também ajudado a levar a atenção das pessoas para o mundo real, e tentassem entendê-lo melhor, em uma perspectiva mais racional e analítica, mais científica, desprendendo-se um pouco de interpretações preconcebidas baseadas nos dogmas da fé e na simples autoridade dos padres, que não haviam sido capazes de explicar satisfatoriamente e nem dar um fim às desgraças que afligiam a existência.
Só isso já foi uma revolução. Assim como o nosso, o mundo renascentista parecia cansado de esperar por soluções mágicas, pela intervenção visível de um Deus cujos desígnios eram, na verdade, incompreensíveis, posto que, para eles, as guerras, as injustiças, a fome e as doenças, a opressão do povo pelos poderosos, eram companheiras constantes, apesar de tanto progresso na cultura. Era preciso buscar outras alternativas, ouvir outras vozes - se possível, todas as vozes, como agradaria a Pico. Parece muito com os dias de hoje, e penso que nossa dor e nosso atordoamento diante de um mundo em rápida transformação nos identificam também. Mas, enfim, pelo menos, voltáramos a ser filhos belos e imortais de um Deus - ele mesmo transformado, agora mais próximo e mais brando, suavizado por meio de uma valorização da humanidade e da compaixão de Jesus, deixando de ser o juiz implacável e vingativo dos tempos medievais, aquela entidade remota, insensível diante dos nossos clamores e sofrimentos.
Já era outro passo e tanto no andar da História, e o Humanismo, a "ciência do Homem", dando forma a toda a cultura do período, tentando conciliar o novo com o antigo, e tendo no ser humano a nova medida de tudo, recuperou também a representação do nu à moda clássica, em que se associavam idealismo e naturalismo, buscando expressar a divina beleza natural da humanidade, depurada da mancha e da vergonha do pecado original, e como promessa de um novo modo de vida, mais confiante e feliz.
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Estudos anatômicos do ombro, por Da Vinci
 
 
E para nós de hoje, de que serve tudo isso?
Assim podemos voltar ao nosso passeio pela Florença moderna, com suas estátuas magníficas já desgastadas pelo tempo e suas harmoniosas pinturas já cheias de rachaduras, e vendo nessas figurações o homem ser exaltado em sua força, em sua beleza, em sua sabedoria e bondade, em sua coragem e honra, em seu civismo e seus altos ideais, já se entende por que junto dos seus grandes monumentos e obras de arte se amontoam os turistas como formigas em torno de mel: eles nos dão força, nos inspiram-nos, e talvez, em parte, isso explique a horda de viajantes prontos a pagar caro para ver com os próprios olhos o testemunho material desse legado de ideias fundamentais para a cultura do Ocidente.
Palazzo Pubblico
Ambrogio Lorenzetti: Alegoria do Bom Governo, c. 1328. Palazzo Pubblico, Siena
A "cultura do corpo" de hoje, com sua mania por cirurgias plásticas, desfiles de moda e academias de ginástica, que move milhões em todo o globo, é filha do Renascimento em linha direta. Nossa concepção de Estado moderno vem de lá, nosso método de ensino, nossa abordagem científica do conhecimento. Nossa arte contemporânea seria impensável sem ele, até mesmo porque o interpela diretamente em muitos aspectos. E os antigos clássicos nunca foram tão estudados como agora. Está certo, muitos viajam somente porque "toda gente chique deve ir" e não estão nem aí para a história ou a cultura, e preferem, na verdade, as massas e os vinhos florentinos, deliciosos mesmo. Mas a pergunta "para que serve o Renascimento?" facilmente se responde para muitos outros que vão porque amam aquilo tudo e o que aquelas formas idealizadas e augustas, mas tão "naturais", dizem-lhes: serve para vermos a nós mesmos como seres dignificados e benéficos, e não como animais em busca apenas da satisfação de desejos personalistas.
Galeria dos Ofícios
A Anunciação de Leonardo Da Vinci
Para os renascentistas, somos todos heróis e não vilãos, se soubermos escolher. Serve também para entendermos que a arte pode ser usada, como a renascentista o foi tão exemplarmente, com tamanha maestria técnica e tão persuasiva retórica, para desvelar e consagrar para todos, com um propósito pedagógico, ético e coerente, as virtudes mais elevadas do homem, e não para que ele se entregasse aos maus costumes e às representações mórbidas e antieducativas como as que têm grande público hoje em dia. Mesmo que já não acreditemos mais em Deus, o projeto renascentista continua sólido e digno de nossa atenção. Sua popularidade hoje prova que continua.
Mas esse homem superior enaltecido pelos renascentistas, com todo o seu potencial criativo e transformador, não está longe, é nós mesmos, e, como eles já disseram com muita verdade, podemos nos recriar à maneira que desejarmos, seja para o bem, seja para o mal, pois o livre-arbítrio nos dá esse poder. Hoje, somos especialmente sensíveis a ameaças ao nosso livre -arbítrio, mas, ultimamente, o que temos feito dele está dando muito o que pensar, pois a situação está ficando complicada, é só olhar ao redor para ver.
Talvez a maior contribuição do Renascimento para o homem atual possa ser propor um modelo de vida integrador, otimista e equilibrado, iluminado pela razão, pela virtude e pelo espírito público, que leva em conta o bem comum tanto como o bem individual, devolvendo ao homem uma dignidade e um poder que lhe foram subtraídos ou foram esquecidos na esperança de que, de posse dessa nova consciência de si mesmo e de seu potencial, possa agir da forma correta em benefício de si e de todos. Os renascentistas imaginaram que essa atitude, por consequência, devolveria a paz, a beleza, a felicidade, a harmonia e a justiça à Terra, restaurando desse modo a "obra perfeita" na qual o próprio Deus se deleitara em contemplar, mas que arruináramos e corrompêramos por nossa desobediência das leis naturais, por nossa arrogância, ignorância e nosso egoísmo.
Como a história demonstra, esse ideário sublime teve pouco efeito prático, e no início do século 17, quando o movimento encerra - depois de Roma ter assumido a sua liderança, depois ter-se espalhado por toda a Europa e fertilizado as Américas e o Oriente sob a forma do Maneirismo internacional -, as guerras, a fome, as injustiças e a opressão continuavam a grassar. Não havia mais nem mesmo uma religião que os unisse. Com a irrupção do cisma protestante, outro dos divisores de águas ocorridos no Renascimento, foi abalado todo um sistema de crenças que tinha uma amplitude cósmica e antes era um monolítico e tranquilizador consenso, apesar das ocasionais heresias e discórdias aqui e acolá.
Da outrora poderosa Itália, pouco havia restado além do prestígio da sua cultura. Deixara de ser a cabeça da cristandade unida e o entreposto comercial da Europa, e fora invadida, saqueada e partilhada entre impérios mais fortes. Com tanta coisa vivida e tanta novidade para processar - e não só pela redescoberta dos clássicos, embora tão decisiva naquele momento histórico -, o homem europeu nunca mais seria o mesmo, ele havia de fato renascido em consciência, a influência da religião nos assuntos do mundo iniciava sua queda e o modo medieval de ser e pensar havia ficado definitivamente para trás.
 
Por Ricardo Frantz
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Giotto e sua deposição de Cristo, ciclo de afrescos na Capela Scrovegni (1304- 1306), Pádua
Abria-se a Idade Moderna. Nos séculos seguintes, o poder laico e a ciência assegurariam seu triunfo na sociedade, tendo o homem, não mais Deus, como o verdadeiro mestre da Terra. De certa forma, isso cumpria parte da profecia renascentista, mas o mestre que nos tornamos ainda é muito imperfeito, diga-se. No momento em que vivemos, à beira de uma crise mundial sem precedentes, em meio a uma explosão demográfica e uma destruição ambiental generalizada, dominados por interesses políticos, econômicos e culturais distorcidos, que levam em conta apenas a exploração do próximo e o gozo imediato em detrimento da fraternidade e da sustentabilidade, parece que aquele homem divino semelhante aos anjos descoberto pelos renascentistas caiu no sono e precisa acordar novamente, e rápido.
Penso que o Renascimento, muito mais do que uma simples curiosidade histórica, uma prolífica fábrica de belas, mas inócuas obras de arte, ou só outro tema chatinho que vai cair na prova, ainda tem muito a nos ensinar e interessar em muitos aspectos, seja por seus fracassos e contradições, seja por seus sucessos e seu poder inspirador, sugerindo-nos que um mundo melhor é possível, basta acreditarmos nisso e pormos mãos à obra. Pois, gostemos ou não, o agente das transformações não será outro senão nós mesmos, a família humana. Hoje, talvez possamos realizar o que os renascentistas apenas sonharam. Talvez "a horda" tenha cruzado o oceano tão só para lavar a alma e levar de volta para casa um pedacinho de esperança e fé na humanidade, depois de ter visitado Florença e outros pólos do Renascimento, ou mesmo depois de ter conhecido suas obras pelos livros ou pela Internet. Só por isso, o movimento já terá valido para nós de agora.


        



 

Um Dragon Rapide, de desenho inglês

   

 

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