Selo britânico lança CDs alterados ou fora do mercado brasileiro
RIO — Em 1963, o violonista Baden Powell (1937-2000) misturou samba, bossa nova, choro e jazz com ritmos africanos e gravou as dez faixas do disco “À vontade”, pelo selo Elenco. Três anos depois, juntou-se ao compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) e, na gravadora Forma, registrou as oito músicas de “Os afrosambas”. O vinil estampava na capa uma foto em preto e branco dos dois artistas. A imagem, clicada por Pedro de Moraes, filho do Poetinha, tinha uma chamativa moldura vermelho-sangue.
No Reino Unido, as duas raridades viraram uma só. O selo Él Records, da gravadora Cherry Red, pôs à venda “Os afrosambas/À vontade”. O CD, que custa 9,95 libras (cerca de R$ 40), tem 18 faixas (a soma dos dois discos) e uma capa que, apesar de manter a foto, trocou o vermelho pelo verde.
No mesmo selo, há outras “novidades” da MPB: duas coletâneas de João Gilberto que, segundo especialistas, jamais foram lançadas por ele, e “Brasília — Sinfonia da alvorada”, disco feito por Tom Jobim e Vinicius em 1961, com oito faixas, que jamais pôde ser reeditado no Brasil pela impossibilidade de conseguir todas as autorizações necessárias. Na versão britânica, o CD tem 23 faixas: as excedentes são de Heitor Villa-Lobos.
Apesar disso, a Cherry Red está tranquila. Mike Alway, fundador do selo Él Records, não vê problema nos CDs à venda. Diz que, segundo a lei europeia, um fonograma cai em domínio público (fica livre do pagamento de direitos autorais e conexos) 50 anos após sua gravação. O prazo de 70 anos, fixado pela lei brasileira, não valeria por lá.
— Temos essa liberdade porque as gravações têm mais de 50 anos e já não têm copyright — afirma ele, por e-mail. — Tudo o que lançamos de João, por exemplo, já está em domínio público.
Mas, navegando pelo catálogo do selo, encontram-se “Chega de saudade” (1958), “O amor o sorriso e a flor” (1960) e “João Gilberto” (1961). Os três álbuns estão no centro da disputa judicial entre o músico (que proibiu reedições) e a gravadora EMI. Mesmo assim, eles podem ser adquiridos no Brasil no site da Livraria Cultura. Cada um dos discos importados da Él custa R$ 84,90.
Sobre “Brasília — Sinfonia da alvorada”, considerado uma raridade, Alway usa argumento semelhante. Diz que o álbum “está claramente livre de direitos”. Já, sobre os discos de Baden, diz:
— O que lançamos não foi uma versão expandida de “Os afrosambas”, como se sugere, mas uma combinação de dois originais. E isso está claro na capa do CD. Eles foram licenciados da Universal em 2008, e a licença provavelmente inclui uma permissão de uso da arte original.
Procurada, a Universal não confirmou a informação até o fechamento desta edição.
Enquanto isso, familiares e advogados dos músicos classificam o argumento do domínio público europeu como “inaceitável”. Dizem que os lançamentos são “graves” e prometem medidas.
— Vários discos brasileiros vêm sendo lançados na Europa por gravadoras que tomam por base a legislação europeia, mas, em nosso entendimento, essa legislação não pode ser aplicada a produtos lançados originalmente no Brasil. O domínio público europeu só deve valer para os produtos deles — diz a advogada Adriana Vendramini Terra, da Copyrights, escritório que representa herdeiros de Baden Powell.
“Capas mutiladas à revelia dos herdeiros”
Para Adriana, há ainda outro ponto problemático: a alteração feita na capa do disco.
— “Os afrosambas” e “À vontade” foram compilados e tiveram suas capas mutiladas à revelia dos herdeiros do artista — acusa ela, que levará o caso ao conhecimento de Philippe Baden Powell, filho do músico que trata dos direitos dele no exterior. — A grande dificuldade nesses casos é que as demandas (ações) necessariamente teriam que ter lugar nos países em que os produtos foram lançados, o que torna a tomada de medidas cara e pouco acessível.
Os advogados de João Gilberto, por sua vez, também se mostram indignados.
— Essa alegação de que as obras teriam caído em domínio público demonstra total desconhecimento da legislação cabível — defende Rafael Pimenta. — Nos termos da lei brasileira, o prazo de proteção é de 70 anos, e obviamente ele não expirou. As obras, portanto, são protegidas e pertencem exclusivamente a seu criador. Estudaremos a adoção de medidas cabíveis para retirar esses discos de circulação e cobrar os valores devidos a título de direitos autorais.
A EMI, gravadora de João Gilberto, não quis se pronunciar sobre a polêmica.
Por e-mail, Maria de Moraes, filha de Vinicius, disse também estar ciente do caso e que “o jurídico da VM Cultural já trabalha na questão”.
A Livraria Cultura informou que “sua preocupação é atender à expectativa dos clientes”, que “não cabe à empresa entrar na briga entre artistas e selos” e que, “se houver algum movimento judicial, poderá rever a política de comercialização”.
Selo independente fundado em Londres em 1978, a Cherry Red começou lançando discos de pós-punk, mas descobriu sua vocação nos relançamentos de obras esquecidas de reggae, rock clássico, soul e MPB. Recentemente, decidiu apostar em novos discos de artistas veteranos, como Todd Rundgren e The Fall.
‘Se esse domínio público aí realmente existir, valeria a pena abrir um selo na Inglaterra só para relançar ‘Louco por você’, de 1961.” É assim, com indisfarçável ironia, que o pesquisador musical e dono do selo Discobertas, Marcelo Froes, comenta o argumento usado pela gravadora britânica Cherry Red para vender gravações de MPB com mais de 50 anos.
“Louco por você” é o primeiro LP gravado por Roberto Carlos, um registro único do tempo em que ele ainda trabalhava como crooner e um dos discos mais raros de sua carreira. Está fora de catálogo no Brasil há anos, mas, de acordo com a lógica dos diretores do selo Él Records, poderia ser relançado no Reino Unido sem a autorização do Rei. Já estaria em domínio público.
— Os ingleses resolveram meter o pé no nosso domínio público. Aplicar a lei europeia em produtos brasileiros é um absurdo — queixa-se Froes. — No início dos anos 2000, eu e Luciana, filha de Vinicius (morta em 2011), tentamos conseguir todas as autorizações para incluir o disco “Brasília — Sinfonia da alvorada” numa caixa especial que fizemos para lembrar os 20 anos da morte do poeta. Tentamos de todos os jeitos, por todos os lados e não encontramos o contrato original assinado entre ele, Tom Jobim e a Columbia. Então não conseguimos relançar a obra. Aí você navega na internet, no site da Cherry Red e encontra essa raridade por 9,95 libras. Comprei na hora.
No pacote, Froes também adquiriu os três “proibidões” de João Gilberto.
— Todos no Brasil sabem que as fitas masters de “Chega de Saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” e “João Gilberto” estão no centro da disputa dele com a EMI, que são fitas que estão guardadas sob sete chaves. Então podemos concluir que todos esses CDs foram gravados a partir de outros formatos — alerta. — Sobre as coletâneas que estão à venda sem nunca terem sido lançadas aqui por João, o curioso é ver que elas têm mais de 30 faixas. Misturam diversos discos. Nos anos 1960, cada vinil tinha entre 12 e 14, no máximo.
Raridades de Carlos Lyra
Mas, em meio à polêmica dos lançamentos de MPB do selo Él Records, houve quem ficasse feliz e até comemorasse.
Magda Botafogo, a empresária de Carlos Lyra, se surpreendeu ao saber pela reportagem que “Bossa nova”, disco de 2011 que traz os fonogramas dos dois primeiros álbuns do cantor e compositor (“Bossa nova”, de 1959, e “Carlos Lyra”, de 1961) estavam à venda. Na mesma obra, que custa 9,95 libras, foram incluídas gravações de músicas de Lyra interpretadas por Sylvia Teles (“Menina”), pelo grupo vocal Os cariocas (“Criticando”) e pelo organista Walter Wanderley (“Lobo bobo”).
— Parece um disco-homenagem! — disse Magda, lembrando que os dois primeiros álbuns de Lyra já foram reeditados em todo o mundo, menos no Brasil. — É que a Universal alega que não acha parceiros como o Daniel Caetano, que fez a letra de “Mister Golden” (faixa de “Carlos Lyra”). E foi a única letra que ele fez na vida. Então eles não querem relançar sem todas as autorizações.
Depois da entrevista, Magda postou em seu Facebook um convite para que fãs de Lyra visitassem o site britânico:
“Pra quem procura no Brasil e não acha, foi lançado na Inglaterra um CD contendo os dois primeiros LPs do Carlos Lyra de 59 e de 61, com algumas faixas bônus e dá pra comprar na internet”.
Legalidade de discos divide especialistas
Enquanto a lei europeia estabelece que os fonogramas caem em domínio público 50 anos depois de gravados — ou 70 depois de serem colocados à venda —, a brasileira fixa prazo mais longo: de 70 anos, em ambos os casos. E é apostando nessa diferença que gravadoras como a Cherry Red vendem sem conhecimento dos autores discos de MPB lançados no Brasil.
Especialistas no assunto se dividem quanto à legalidade da estratégia. Para alguns, a medida é “arriscada” e “penaliza os brasileiros”. Para outros, está amparada no artigo 3º de uma diretiva da União Europeia. A polêmica é grande.
— Se o autor não disser nada em contrário, estabelecendo novo foro, o uso de suas obras deve obedecer às leis da cidade em que os contratos originais foram firmados — diz Paulo Oliver, presidente da Comissão de Direito Autoral da OAB-SP. — No caso dos discos da MPB, seria o Brasil, sem dúvida.
Para José Carlos Vaz e Dias, que ensina propriedade intelectual na Uerj, a medida também deve ser alvo de críticas e ações.
— A Cherry Red corre muito risco vendendo esses CDs. Ela deveria obedecer à lei do domínio público no Brasil e ao prazo de 70 anos. Fora isso, também pode estar ferindo os direitos das gravadoras. No caso dos discos de João Gilberto, a EMI ainda detém os direitos comerciais.
Mas o advogado Sérgio Branco, doutor em Direito Civil pela Uerj e autor da tese “O domínio público no direito autoral brasileiro”, discorda de ambos.
— Cada país decide o prazo em que as obras caem em domínio público, independente de onde foram lançadas. Na UE, isso está na Diretiva 93/98/CEE — diz. — Por isso, os britânicos podem usar a MPB. Os discos gravados antes de 1964, seja no Brasil ou na China, estão livres lá.
E acrescenta, revelando curiosidades:
— No México, as obras de Frida Kahlo cairão em domínio público cem anos após a morte dela. Aqui, isso ocorrerá em 70 anos. Por outro lado, no Canadá, que fixou prazo em 50 anos, Graciliano Ramos está liberado. Aqui, isso só ocorrerá em 2023.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/selo-britanico-lanca-cds-alterados-ou-fora-do-mercado-brasileiro-11209904#ixzz2q0js9Zgp
Nenhum comentário:
Postar um comentário