quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Resenhando - Libertinagem - Manuel Bandeira

Coleção Archivos oferece novo itinerário para poesia de Bandeira



 
Alguns livros têm o poder de colocar o leitor dentro da própria obra, convivendo com cada palavra, com cada gesto da personagem focada. Dificil­mente uma edição crítica, com aparato teórico, conseguiria essa proeza. Mas acaba sendo o caso de Libertinagem – Estrela da Manhã, de Manuel Bandeira, coordenado pela professora italiana Giulia Lanciani para a Coleção Archivos, uma co-edição entre a Unesco, o CNPq e a editora Scipione Cultural. O livro de mais de 700 páginas é todo ele montado em torno de Libertinagem e de Estrela da Manhã, obras que marcam o estilo maduro da poesia de Bandeira. E forma, assim, um conjunto coeso, que leva o leitor a caminhar ao lado do poeta, em cada um de seus poemas.
A escolha dos dois livros é signi-ficativa. Foi neles que Bandeira consolidou a sua poética e a colocou entre as principais da poesia brasileira. O próprio poeta mostrava um carinho especial por esses poemas. Sua obra sempre esteve ligada à experiência pessoal, desde A cinza das horas, sua estréia em livro. Como ele mesmo dizia, fez-se poeta por causa da doença, da tuber­culose. Largou o sonho de ser arquiteto, pois teve de abandonar a faculdade, e entregou-se à paixão literária. Nesses dois livros, porém, sua poesia ganhou maior complexidade, abriu-se com­pletamente para a vida cotidiana, bus­cando nas ruas a fala comum e as cenas que poderiam parecer as mais banais do mundo, mas nas quais Bandeira sabia encontrar toda a carga de lirismo, desen­tranhá-la de um simples e corriqueiro fato, como uma notícia de jornal ou um passeio de barco pela restinga da Marambaia.
Toda essa força poética faz de Libertinagem e Estrela da Manhã livros centrais e de mudança dentro da obra de Bandeira. A edição crítica da Archivos apresenta os poemas dos dois livros, anotando todas as variantes deixadas pelo poeta. Por exemplo: no famoso poema em prosa “Tragédia brasileira”, em sua primeira versão, o passional Misael, funcionário da Fazenda, chamava-se Leolino. No poema “Estrela da Manhã”, alguns versos acabaram sendo suprimidos pelo poeta, o que certamente significou um enorme ganho na matéria final. Só por curiosidade, havia uma terceira estrofe que foi totalmente riscada: “Procurem nos mictórios nas latas do lixo nas galerias da City no ministério da Justiça/ Procurem nos becos nos recursos nos cais na rua Laura Araujo”. Logo se percebe como esse trecho desviava o ritmo forte do poema. Era gordura e foi tirada.
Como em todas as obras da Archivos (já foram publicados mais de 30 títulos de escritores latino-americanos), o aparato crítico é referente aos livros escolhidos. Esta edição de Bandeira traz ensaios introdutórios de Silviano San­tiago e da coordenadora Giulia Lanciani. Além de estudos sobre a história do livros, há uma seção dedicada à leitura dos textos, em que escrevem Davi Arrigucci Jr., analisando o poema “O cacto” (ensaio publicado anteriormente em O cacto e a ruína, da editora Duas Cidades, resenhado por Heitor Ferraz na CULT n. 2, de agosto de 1997), Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi, que faz uma apro-ximação da poética de Bandeira com a de poetas italianos, seguindo rastros de leitura que o próprio poeta havia deixado em sua autobiografia Itinerário de Pasárgada (um dos mais belos livros de memória e de ofício produzidos na literatura brasileira).
A edição também contempla um bem armado dossiê sobre os poemas, utilizando e reproduzindo manus­critos, datiloscritos, vários textos da deliciosa prosa bandeiriana e cartas de amigos (vale citar o poema-carta de Guimarães Rosa, de 1958). Marco Antonio Moraes, responsável pelo minu­cioso trabalho de reconstituir a corres­pon­dência de Bandeira com Mário de Andrade, a ser publicada este ano pela Edusp, assina o artigo “Poesia a quatro mãos”, mostrando como o diálogo franco entre esses dois poetas, além de uma lição rara de amizade, foi fundamental para a consolidação da poesia moderna brasi-leira. O livro da Archivos – um indispensável itinerário crítico para obra desse autor que se chamava, ironica­mente, de “poeta menor” – tem seu fecho de ouro com uma fortuna crítica ri­quíssima, reunindo estudos clássicos sobre Bandeira como os de Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda e Haroldo de Campos.

Libertinagem – Estrela da Manhã
Manuel BandeiraScipione Cultural/Unesco/CNPq

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