segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Personalidades - Maria Callas em dose dupla

 

  • Enquanto Marília Pêra dirige ‘Callas’, que estreia hoje com Silvia Pfeifer, a sua irmã Sandra Pêra assina ‘Orgulhosa demais, frágil demais’, ambas com texto de Fernando Duarte
Luiz Felipe Reis

Em 1977. Silvia Pfeifer em “Callas”, de Fernando Duarte, que se passa no dia anterior à morte da cantora lírica que revolucionou a ópera: temporada até 30 de março, no Teatro do Leblon
Foto: Terceiro / Divulgação
Em 1977. Silvia Pfeifer em “Callas”, de Fernando Duarte, que se passa no dia anterior à morte da cantora lírica que revolucionou a ópera: temporada até 30 de março, no Teatro do Leblon Terceiro / Divulgação
RIO — Em seus últimos dias, somente as alas do cemitério de Bruzzano, na periferia de Milão, escutavam aquela voz. Distante dos ouvidos do mundo — “A voz sumiu”, diziam os críticos —, ela ainda existia ali. Frágil, a outrora mais potente voz da ópera resistia em fiapos apenas para entoar os versos de “Sóror Angélica”, de Puccini, à beira da lápide de seu filho, Omero — morto recém-nascido e enterrado o mais longe possível por ordem do pai, Aristóteles Onassis.
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Era essa mulher, mãe e voz à beira do fim que, duas semanas após a última visita ao túmulo, estava em Paris, onde viveria seu último suspiro, em 16 de setembro de 1977. E é o dia anterior à sua morte que serve à dramaturgia de “Callas”, peça de Fernando Duarte que Marília Pêra dirige a partir deste sábado, às 19h, no Teatro do Leblon. Após interpretar Maria Callas — sem arriscar-se a cantar — em “Master class” (1996), agora Marília orienta Silvia Pfeifer, que encarna — também sem soltar a voz — a fraqueza de um corpo prestes a se desmaterializar, assim como um último sopro de alegria.
“Callas” leva à cena o encontro entre a cantora e o amigo John Addams (Cássio Reis), durante uma visita à sala de exposição de uma mostra que ele concebeu para homenageá-la, e cuja abertura aconteceria no dia seguinte. Callas não compareceu. Aos 53 anos, foi vítima de um ataque cardíaco fulminante.
— Quando Fernando (Duarte) mostrou o texto, fiquei muito surpresa com o recorte, a escolha do tempo em que se passa a peça — elogia Marília.
A exposição, que revisitaria sua vida e carreira, é o gatilho que ativa a dramaturgia biográfica da peça. Entre figurinos, joias, quadros e discos surgem lembranças no texto e imagens projetadas ao fundo do palco. As intervenções visuais reforçam a ideia de um documentário cênico. Há, portanto, uma dupla dramaturgia. Em primeiro plano, nas vozes dos atores; no segundo, nas legendas que acompanham os vídeos.
dom e disciplina
Em ambos os suportes há uma trajetória dramática, como as das grandes personagens que interpretou nas óperas. Mito do showbizz do século XX e considerada a maior soprano da História, Callas trouxe ao bel canto a expressividade de uma grande atriz. Ela tinha um dom e a consciência de que ele não bastava.
— Ela dizia: “Sim, um dom, mas que eu trabalhei muito para aperfeiçoar” — lembra Silvia. — Ela era muito disciplinada. Nunca acreditou que aquele dom era o suficiente. Buscava a perfeição e acabou desenvolvendo uma técnica de interpretação que revolucionou a ópera. Não era apenas uma cantora, emprestava vida às personagens. O mundo da ópera é antes e depois de Callas.
Entre 1937 e 1974 — 2014 marca, portanto, 40 anos de sua última apresentação —, Callas pisou nos principais palcos, habitou monumentais cenários, disputou a atenção de maestros, músicos, diretores e empresários, renovou esteticamente óperas como “Medeia”, “Norma”, “Madame Butterfly”, “Tosca” e “Aida” e fez de Violetta — aquela que sofria desmedidamente por amor em “La Traviata” — o seu duplo, um espelho fascinante e aterrador.
— É uma história de sacrifício e rejeição, mostramos a beleza e o horror dessa trajetória — diz Marília. — A mãe a maltratava e a forçava a comer, engordar, para ser como as outras cantoras de ópera. Depois, casou-se com um empresário que ambicionava fazer dinheiro e torná-la uma diva. Ela então emagreceu 40 quilos e se fez a maior do mundo. Mas foi aí, no auge, que ela se apaixonou por Onassis e abandonou tudo para virar mulherzinha, ter filhos. Quando deixou a carreira, Onassis a trocou por Jacqueline Kennedy. Ela caiu num vazio.
Entre 1965 — ano em que conheceu Onassis — e 1973, Callas emudeceu, até que em 1974 fez sua última turnê.
— Quando recebi o convite, sabia que não precisaria cantar, que era outra a proposta — diz Silvia.
Esta é a segunda peça da atriz, que não subia aos palcos desde “O marido ideal” (2007), de Oscar Wilde.
— É uma responsabilidade fazer uma protagonista como Callas e poder trabalhar com a Marília — diz. — Lembro que aceitei o convite e comecei a estudar antes de ler o texto, mas quando o li me encantei ainda mais. Callas batalhou muito sozinha em busca da felicidade e da realização artística. Estudei toda a vida dela para fazer uma peça que se passa em seu último dia. Vivo o resultado de todas as suas lutas.
Autor de “Callas”, Fernando Duarte assina outra peça em cartaz que traz a cantora como personagem e Sandra Pêra, irmã de Marília, como diretora. Inspirada na biografia romanceada “Orgulhosa demais, frágil demais”, do italiano Alfonso Signorini, a montagem homônima, que está no Centro Cultural Correios até fevereiro, traz Rita Êlmor e Samara Felippo como Callas e Marilyn Monroe, durante encontro num camarim, após uma histórica noite de 1962 em que ambas se apresentaram para o presidente John Kennedy no Madison Square Garden, em Nova York.
— São momentos absolutamente distintos, quase opostos. Em “Orgulhosa demais...”, temos Callas no auge, aos 38 anos, se apresentando para o presidente, enquanto “Callas” revela os estertores — diz Duarte. — Marilyn e Callas têm muito em comum. Divas de seu tempo, talentosas, mas também sofridas e solitárias.
Os bastidores e camarins que ambientam “Orgulhosa demais...” são um terreno bem conhecido do autor. Nascido em Brasília, mas radicado no Rio desde os anos 2000, Duarte começou a carreira como contrarregra e camareiro do espetáculo “Doce deleite”, dirigido por Marília Pêra em 2008. Acostumado a servi-la fora dos holofotes, aos poucos alcançou o palco.
— Estamos assistindo ao começo da carreira de um autor que veio do trabalho pesado, de costurar e passar roupa — diz Marília, orgulhosa.
Início em 2010
A paixão por Callas e a pela escrita caminham juntas há tempos. O primeiro impulso para a dramaturgia veio em 2010, após o diretor Ernesto Piccolo selecionar uma de suas esquetes — entre 58 textos de autores renomados — para compor a montagem de “Igual a você”. Decidido a se manter em cena, escreveu outro roteiro e apresentou à atriz Maitê Proença. O material, inspirado em histórias reais colhidas em diferentes asilos do país, se transformou na peça “À beira do abismo me cresceram asas”, um dos sucessos da temporada 2013 e que acaba de reestrear no Teatro Carlos Gomes, com Maitê e Clarisse Derzié em cena.
— Foi o primeiro trabalho a me dar projeção — diz o autor.
Animado com a boa acolhida, arregaçou as magas para finalizar “Callas”, projeto iniciado há três anos. Foi durante a pesquisa da peça que deparou com a biografia “Orgulhosa demais...” e acreditou que um dos capítulos poderia render outra história. Agora, com três peças em cartaz, Duarte começa a estabelecer sua carreira, marcada por uma paixão surgida ao acaso:
— A vizinha de uma tia era professora de canto e passava as tardes ouvindo Callas, até que um dia bati à porta e recebi de presente uma biografia. Foi aí que tudo começou.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/maria-callas-em-dose-dupla-11269901#ixzz2qHQ0Sl9N

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