- Enquanto Marília Pêra dirige ‘Callas’, que estreia hoje com Silvia Pfeifer, a sua irmã Sandra Pêra assina ‘Orgulhosa demais, frágil demais’, ambas com texto de Fernando Duarte
Luiz Felipe Reis
RIO — Em seus últimos dias, somente as alas do cemitério de Bruzzano, na periferia de Milão, escutavam aquela voz. Distante dos ouvidos do mundo — “A voz sumiu”, diziam os críticos —, ela ainda existia ali. Frágil, a outrora mais potente voz da ópera resistia em fiapos apenas para entoar os versos de “Sóror Angélica”, de Puccini, à beira da lápide de seu filho, Omero — morto recém-nascido e enterrado o mais longe possível por ordem do pai, Aristóteles Onassis.
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Era essa mulher, mãe e voz à beira do fim que, duas semanas após a última visita ao túmulo, estava em Paris, onde viveria seu último suspiro, em 16 de setembro de 1977. E é o dia anterior à sua morte que serve à dramaturgia de “Callas”, peça de Fernando Duarte que Marília Pêra dirige a partir deste sábado, às 19h, no Teatro do Leblon. Após interpretar Maria Callas — sem arriscar-se a cantar — em “Master class” (1996), agora Marília orienta Silvia Pfeifer, que encarna — também sem soltar a voz — a fraqueza de um corpo prestes a se desmaterializar, assim como um último sopro de alegria.
“Callas” leva à cena o encontro entre a cantora e o amigo John Addams (Cássio Reis), durante uma visita à sala de exposição de uma mostra que ele concebeu para homenageá-la, e cuja abertura aconteceria no dia seguinte. Callas não compareceu. Aos 53 anos, foi vítima de um ataque cardíaco fulminante.
— Quando Fernando (Duarte) mostrou o texto, fiquei muito surpresa com o recorte, a escolha do tempo em que se passa a peça — elogia Marília.
A exposição, que revisitaria sua vida e carreira, é o gatilho que ativa a dramaturgia biográfica da peça. Entre figurinos, joias, quadros e discos surgem lembranças no texto e imagens projetadas ao fundo do palco. As intervenções visuais reforçam a ideia de um documentário cênico. Há, portanto, uma dupla dramaturgia. Em primeiro plano, nas vozes dos atores; no segundo, nas legendas que acompanham os vídeos.
dom e disciplina
Em ambos os suportes há uma trajetória dramática, como as das grandes personagens que interpretou nas óperas. Mito do showbizz do século XX e considerada a maior soprano da História, Callas trouxe ao bel canto a expressividade de uma grande atriz. Ela tinha um dom e a consciência de que ele não bastava.
— Ela dizia: “Sim, um dom, mas que eu trabalhei muito para aperfeiçoar” — lembra Silvia. — Ela era muito disciplinada. Nunca acreditou que aquele dom era o suficiente. Buscava a perfeição e acabou desenvolvendo uma técnica de interpretação que revolucionou a ópera. Não era apenas uma cantora, emprestava vida às personagens. O mundo da ópera é antes e depois de Callas.
Entre 1937 e 1974 — 2014 marca, portanto, 40 anos de sua última apresentação —, Callas pisou nos principais palcos, habitou monumentais cenários, disputou a atenção de maestros, músicos, diretores e empresários, renovou esteticamente óperas como “Medeia”, “Norma”, “Madame Butterfly”, “Tosca” e “Aida” e fez de Violetta — aquela que sofria desmedidamente por amor em “La Traviata” — o seu duplo, um espelho fascinante e aterrador.
— É uma história de sacrifício e rejeição, mostramos a beleza e o horror dessa trajetória — diz Marília. — A mãe a maltratava e a forçava a comer, engordar, para ser como as outras cantoras de ópera. Depois, casou-se com um empresário que ambicionava fazer dinheiro e torná-la uma diva. Ela então emagreceu 40 quilos e se fez a maior do mundo. Mas foi aí, no auge, que ela se apaixonou por Onassis e abandonou tudo para virar mulherzinha, ter filhos. Quando deixou a carreira, Onassis a trocou por Jacqueline Kennedy. Ela caiu num vazio.
Entre 1965 — ano em que conheceu Onassis — e 1973, Callas emudeceu, até que em 1974 fez sua última turnê.
— Quando recebi o convite, sabia que não precisaria cantar, que era outra a proposta — diz Silvia.
Esta é a segunda peça da atriz, que não subia aos palcos desde “O marido ideal” (2007), de Oscar Wilde.
— É uma responsabilidade fazer uma protagonista como Callas e poder trabalhar com a Marília — diz. — Lembro que aceitei o convite e comecei a estudar antes de ler o texto, mas quando o li me encantei ainda mais. Callas batalhou muito sozinha em busca da felicidade e da realização artística. Estudei toda a vida dela para fazer uma peça que se passa em seu último dia. Vivo o resultado de todas as suas lutas.
Autor de “Callas”, Fernando Duarte assina outra peça em cartaz que traz a cantora como personagem e Sandra Pêra, irmã de Marília, como diretora. Inspirada na biografia romanceada “Orgulhosa demais, frágil demais”, do italiano Alfonso Signorini, a montagem homônima, que está no Centro Cultural Correios até fevereiro, traz Rita Êlmor e Samara Felippo como Callas e Marilyn Monroe, durante encontro num camarim, após uma histórica noite de 1962 em que ambas se apresentaram para o presidente John Kennedy no Madison Square Garden, em Nova York.
— São momentos absolutamente distintos, quase opostos. Em “Orgulhosa demais...”, temos Callas no auge, aos 38 anos, se apresentando para o presidente, enquanto “Callas” revela os estertores — diz Duarte. — Marilyn e Callas têm muito em comum. Divas de seu tempo, talentosas, mas também sofridas e solitárias.
Os bastidores e camarins que ambientam “Orgulhosa demais...” são um terreno bem conhecido do autor. Nascido em Brasília, mas radicado no Rio desde os anos 2000, Duarte começou a carreira como contrarregra e camareiro do espetáculo “Doce deleite”, dirigido por Marília Pêra em 2008. Acostumado a servi-la fora dos holofotes, aos poucos alcançou o palco.
— Estamos assistindo ao começo da carreira de um autor que veio do trabalho pesado, de costurar e passar roupa — diz Marília, orgulhosa.
Início em 2010
A paixão por Callas e a pela escrita caminham juntas há tempos. O primeiro impulso para a dramaturgia veio em 2010, após o diretor Ernesto Piccolo selecionar uma de suas esquetes — entre 58 textos de autores renomados — para compor a montagem de “Igual a você”. Decidido a se manter em cena, escreveu outro roteiro e apresentou à atriz Maitê Proença. O material, inspirado em histórias reais colhidas em diferentes asilos do país, se transformou na peça “À beira do abismo me cresceram asas”, um dos sucessos da temporada 2013 e que acaba de reestrear no Teatro Carlos Gomes, com Maitê e Clarisse Derzié em cena.
— Foi o primeiro trabalho a me dar projeção — diz o autor.
Animado com a boa acolhida, arregaçou as magas para finalizar “Callas”, projeto iniciado há três anos. Foi durante a pesquisa da peça que deparou com a biografia “Orgulhosa demais...” e acreditou que um dos capítulos poderia render outra história. Agora, com três peças em cartaz, Duarte começa a estabelecer sua carreira, marcada por uma paixão surgida ao acaso:
— A vizinha de uma tia era professora de canto e passava as tardes ouvindo Callas, até que um dia bati à porta e recebi de presente uma biografia. Foi aí que tudo começou.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/maria-callas-em-dose-dupla-11269901#ixzz2qHQ0Sl9N
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