Porta de entrada para meio milhão de africanos, a região do Valongo ganha circuito turístico e cultural no Rio de Janeiro, com destaque para ruínas descobertas de ancoradouro
Por Flávia Ribeiro, do Rio de Janeiro / Ilustrações
Alexandre Camanho
O Cais do Valongo, porta de entrada no Brasil para cerca de meio milhão de
africanos entre 1811 e 1831, é o carro-chefe de um roteiro turístico e cultural
que pretende recuperar um pedaço importante da história da presença negra no
país. Redescoberto há pouco mais de um ano durante obras de revitalização da
região portuária do Rio de Janeiro, após ficar 168 anos soterrado, o ancoradouro
traz com ele memórias da escravidão no país e faz parte do Circuito Histórico e
Arqueológico da Herança Africana. Inaugurado em novembro de 2011 pela Prefeitura
do Rio, o roteiro inclui, além do cais, o Largo do Depósito, o Jardim Suspenso
do Valongo, a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos e o Centro Cultural
José Bonifácio.
É o resgate de uma história que havia sido literalmente enterrada durante o
"processo civilizatório" da então capital do Brasil: em 1843, foi feito um
aterro de 60 centímetros de espessura precisamente sobre o Cais do Valongo, para
a construção de um novo ancoradouro para receber a imperatriz Teresa Cristina,
que se casaria com dom Pedro II.
"O Cais do Valongo é um lugar simbólico, porque ali está o passado da
população afrodescendente do país", explica Tânia Andrade Lima, arqueóloga do
Museu Nacional que supervisiona as obras no porto. "Ele não foi encontrado por
acaso. Desde 2010, sabíamos da existência de um sítio arqueológico naquele
lugar". Havia um totem no local informando que ali existira o Cais da
Imperatriz, também enterrado no início do século 20, dessa vez para a reforma de
toda a região central do Rio. Em nenhuma referência ao Valongo, que recebeu o
maior número de africanos na Américas. Durante as escavações, foram descobertos
os dois ancoradouros, um sobre o outro. Junto a eles, uma grande quantidade de
objetos de uso pessoal, especialmente amuletos e objetos de culto vindos do
Congo, Angola e Moçambique.
"Aquela região, mais do que o cais, era um complexo de escravos, que incluía
o lazareto, para onde os negros que chegavam doentes iam se curar ou morrer, o
Cemitério dos Pretos Novos e os armazéns de engorda e venda dos escravos, que se
concentravam na Rua do Valongo, atual Rua Camerino", diz Tânia. A área ia desde
a atual Rua Barão de Tefé até a Cidade do Samba, englobando os bairros da
Gamboa, da Saúde e do Santo Cristo.
Até meados da década de 1770, os escravos desembarcavam na Praia do Peixe,
atual Praça 15, e eram negociados na Rua Direita, hoje Rua 1º de Março. Bem no
Centro do Rio, à vista de moradores e dos estrangeiros que chegavam para
conhecer a colônia. Uma nova legislação, de 1774, estabelecia a transferência
desse mercado para a região do Valongo. Os motivos apresentados eram sanitários:
proteger os cidadãos das doenças trazidas pelos negros. Mas já havia, permeando
a decisão, a sensibilidade de que manter aquele comércio no coração do Rio
maculava sua imagem de cidade europeia.
A mudança partiu do segundo Marquês de Lavradio, dom Luís de Almeida Portugal
Soares de Alarcão d'Eça e Melo Silva Mascarenhas, vice-rei do Brasil, alarmado
com "o terrível costume de tão logo os pretos desembarcarem no porto vindos da
costa africana, entrarem na cidade através das principais vias públicas, não
apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus". Mas ainda não havia o
ancoradouro, e a alternativa encontrada foi desembarcar os escravos na alfândega
e imediatamente enviá-los de bote ao Valongo, de onde saltariam diretamente na
praia.
Em 1779 o comércio de africanos se estabeleceu finalmente na região do
Valongo. Cresceu a cada ano, e viveu seu auge de 1808, com chegada da família
real, a 1831, ano em que o comércio de escravos da África para o Brasil passou a
ser feito às escondidas. Só em 1811 o cais foi construído, para que o
desembarque fosse direto no local. "A partir de 1808 o tráfico quase dobra,
acompanhando a cidade que, com a vinda da corte, passa de 15 mil para 30 mil
habitantes. De 1811 a 1831, metade da economia do país, metade do PIB, é movida
a escravos" diz o historiador Carlos Líbano, da Universidade Federal da Bahia
(UFBA.
É nesse período de apenas 20 anos que 500 mil africanos - dos 4 milhões que
aqui chegaram até 1850 - entram no Brasil pelo novo ancoradouro. A distância do
Centro não impediu, como gostariam as autoridades, que olhares estrangeiros
continuassem a descrever o funcionamento do mercado de escravos do Rio. A
viajante inglesa Maria Graham, por exemplo, que esteve no Brasil entre 1821 e
1823, escreveu em seu Diário de uma Viagem ao Brasil que, no Valongo,
"todo o tráfico de escravos surge com todos os seus horrores perante nossos
olhos". Cada "peça" tinha um preço. Um africano novo e saudável, em 1811, podia
chegar a algo em torno de cem mil réis, mas podia alcançar 200 mil se tivesse
alguma habilidade especial, como a carpintaria. Como comparação, uma casa
pequena no Rio de Janeiro custava cerca de um conto de réis, o que daria para
comprar dez escravos normais ou cinco habilidosos.
No fim dos anos 20 do século 19, o tráfico de escravos para o Brasil vivia
seu apogeu, e o Valongo era a principal porta de entrada principalmente para os
negros vindos de Angola, da África Oriental e da Centro-Ocidental - nos
entrepostos do Maranhão e da Bahia, ainda chegavam navios vindos respectivamente
da Guiné e da África Ocidental. Mas a maioria tinha necessariamente que ao menos
passar pelo Valongo, para que os traficantes pagassem seus impostos. "A renda da
tributação do mercado negreiro era alta. Mas o Rio era um polo distribuidor de
escravos, não concentrador", explica Carlos Líbano.
Esses escravos saíam da capital para as plantações de café, fumo e açúcar do
interior e de outras regiões do país, especialmente no Vale do Paraíba e em São
Paulo. "O escravo é o insumo básico dessa economia, o motor, o petróleo dela",
diz Líbano. Os que ficavam geralmente eram os escravos domésticos, além dos
usados como força de trabalho nas obras públicas. Muitos eram especialistas,
como sapateiros, quitandeiras, cabeleireiros ou ourives, que gahavam do seu
senhor o direito de exercer suas profissões na rua, tornando-se escravos de
ganho. Parte do dinheiro ficava para o próprio escravo, que tinha sua vida,
independente da do patrão: pagava aluguel e andava pelas ruas. Quem conseguia
juntar dinheiro comprava a alforria.
Em 1831 o Valongo foi fechado, quando o tráfico transatlântico foi proibido
por pressão da Inglaterra. A norma foi solenemente ignorada e recebeu a alcunha
irônica de "lei para inglês ver". Os traficantes usavam portos clandestinos para
trazer sua mercadoria. Em 1850, com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós,
pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o Brasil, embora a escravidão
persistisse até a Abolição, em 1888. "A última remessa de que se tem informação
é de 1872" conta Líbano. A área do Valongo, entre 1850 e 1920, se transformou no
que ficou conhecido como Pequena África: um espaço ocupado por negros libertos
de diversas nações.
Na trilha da escravidão Há outros pontos do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana. O Largo do Depósito, hoje Praça dos Estivadores, era onde se concentravam os armazéns nos quais os escravos ficavam antes de serem vendidos. O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1779 a 1831 e recebia os corpos dos escravos que já chegavam mortos ou morriam antes de serem comerciados. O local, também soterrado ao longo dos anos, foi redescoberto por acaso em 1996, quando os empresários Ana Maria de la Merced e Petrucio dos Anjos resolveram fazer uma reforma no quintal de sua casa, na Gamboa, Centro do Rio. Ossos, fragmentos de crânios e dentes, cerâmicas e contas começaram a sair dos buracos cavados pelos pedreiros. O local hoje é um pequeno museu. Na Pedra do Sal, escravos que trabalhavam no cais descarregavam o sal trazido por navios. Depois da Abolição, se tornou ponto de festas e cultos dos negros. No início do século 20, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e outros grandes sambistas se reuniam ali. O Jardim Suspenso do Valongo surgiu após a Abolição. A ideia era criar um jardim romântico de inspiração inglesa, que apagasse da região as marcas da escravidão. Por fim, há o Centro Cultural José Bonifácio, sede do Centro de Referência da Cultura Afro-Brasileira. |
Saiba Mais
Livros:
O Cativeiro Imperfeito: um Estudo sobre a Escravidão no Rio de Janeiro da Primeira Metade do Século XIX, José Roberto Pinto Góes, Lineart, 1993.
O Cativeiro Imperfeito: um Estudo sobre a Escravidão no Rio de Janeiro da Primeira Metade do Século XIX, José Roberto Pinto Góes, Lineart, 1993.
A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850),
Mary Karasch, Companhia das Letras, 2000.
Nessa obra, a historiadora americana faz um estudo da escravidão urbana no Rio de Janeiro da primeira metade do século 19.
Nessa obra, a historiadora americana faz um estudo da escravidão urbana no Rio de Janeiro da primeira metade do século 19.
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