terça-feira, 3 de junho de 2014

Crônica do Dia - Futebol e luta de classes - Roberto Damatta

E se Marx fosse um torcedor de futebol? Perguntou um deles, surpreendendo os “entendidos” com suas extraordinárias lembranças de jogos — essa historicidade que é o traço principal de nossa brasileiríssima (e aporrinhadora) futebologia.



Seria Flamengo! — disse sorrindo um cara que, sério, logo emendou somando uma provocação ao palpite — e diria que o futebol é o ópio do povo!
Mas o ópio amortece a consciência, articulou um desconhecido de olhos empapuçados que era psicanalista, e eu jamais testemunhei tanta atenção a detalhes quanto no futebol. Qualquer torcedor é um detetive descobrindo pistas e lances imperceptíveis. Ora, quem é capaz dessa percepção não pode estar entorpecido, mas em estado de plena e gloriosa vigília.
O ponto é que, ao ver futebol, há uma alienação de coisas críticas como educação, saúde e exploração do trabalho — replicou o esquerdista que degustava um vinho argentino depois de realizar aquele fresco ritual de sentir o seu aroma.
Mas não se pode viver nem apreciar uma boa bebida — exclamou o Sivoca, cuja tese-filosofia era a necessidade de “se beber muito” para “aguentar a dureza da vida”. Beber e amar eram artes que criavam a vida, e não o contrário.
Marx veria logo que a divisão entre jogadores e torcidas seria representação da contradição entre burguesia e proletariado. Veria também a mesma segmentação entre os jogadores do ataque (aqueles fazem mais gols e são mais populares) e os da defesa (esses operários humildes do futebol que, num antigo Brasil, eram negros). Assim manifestou-se novamente o marxista cuja bandeira era lutar contra o mundo capitalista-consumista e torcer para que Putin reunificasse a União Soviética fazendo com que o mundo voltasse a conhecer o Doutor Fantástico, o “amante perverso” com seu plano de sobrevivência para os poderosos num planeta destruído pela guerra atômica.
Ouvimos com simpatia e tomamos um longo gole dos nossos ópios.
Para nós, viver e até mesmo gozar por meio das oposições entre contrários não era nenhuma novidade. Sem masculino e feminino não haveria o lado mais arriscado do amor — o que engendra vidas; do mesmo modo que sem Deus e diabo não haveria moralidade, honra, culpa e vergonha, esses motores da plenitude existencial. Sem o arroz com feijão, o peixe e a carne, o doce e o salgado, o sol e a chuva, o dia e a noite, o feio e o bonito, o norte e o sul, a fala e o canto, o fato e a interpretação, a saúde e a doença, a juventude e a velhice, a atração e a rejeição, a riqueza e a pobreza não teríamos como viver.
Não exageremos! Falou meu tio Mario com a autoridade de um recém-falecido aos 94 anos. Acabo de morrer! Relatou com uns olhos tristes voltados para o alto, e sinto falta justamente desses “ópios”. Esses raros espaços entre um id (que deseja sem cessar), um superego (que libera realizar o desejo relativo) e o ego (que, como um técnico, apenas quer controlar o seu time) — esses momentos de fuga e olvido são o sal da terra, com o devido respeito ao nobre Karl Marx. Eu sinto falta da cerveja, do jornal, e, com perdão das minhas mestras espirituais sem as quais eu não posso receber minhas asas, de uma gentil ereçãozinha. Tudo isso é fantasioso, mas é verdadeiro: viver só é possível por causa dos intermediários, dos recreios, das fantasias — dos ópios...
Todos sorrimos.
Pode-se viver sem luta, logro, dissimulação, farsa e distrações alienantes? É mesmo possível existir sem esquecer a finitude, a derrota, a doença, a perda e a traição? Sem descobrir que até mesmo o poder e a política igualmente enlouquecem, talvez mais do que um surto psicótico? Alguém conhece um ópio maior do que o narcisismo de um político brasileiro no poder? Afinal, não foram eles que inventaram a guerra, o racismo, o holocausto e essa indisfarçável e insaciável corrupção brasileira? Os radicais e os ascetas tentam viver sem ópios e jamais foram a um jogo de futebol, tomaram um uísque ou viram uma mulher nua. Como demandam incondicionalmente o mundo, jamais quiseram um pedacinho dele para alienar-se. A fuga total do mundo é certamente mais um sintoma de desejo onipotente de controle do que de amor. Mas existe outra vida? Como viver sem transferir pelo ópio — pelo bom jogo de futebol — a roubalheira e a injustiça? Desde que, notem bem, não se tome o roubo e a corrupção, nem a morte ou o crime como coisas a serem desejadas e valorizadas.
É impossível viver sem sofrer, mas é fundamental que se exista driblando o sofrimento e fazendo gols na perda, na ingratidão e sobretudo na doença e na morte. No mais, meus caros embriagados e insanos, o futebol e a Copa, são apenas pingos num copo transbordante.


Roberto DaMatta é antropólogo


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