sexta-feira, 13 de junho de 2014

Resenhas - No tempo de José de Alencar

No tempo de José de Alencar

Longa pesquisa histórica revela ambiente e influências do pai do romance nacional, em nova obra de Ana Miranda

Ana Weiss (ana.weiss@istoe.com.br)
José de Alencar inventou o romance brasileiro. Machado de Assis o chamava, por isso, de “o chefe da literatura nacional”. Cearense que levou para as letras a cultura indígena, foi também crítico, dramaturgo, deputado e ministro da Justiça, tendo vivido apenas 48 anos. Mas nasceu Cazuzinha, filho com saúde instável de um padre com uma mulher da mesma família. E se aproximou do poder tendo sido neto da primeira presa política do Brasil, a republicana Bárbara do Crato.


Esse é o recorte da pesquisa de Ana Miranda para seu novo romance. “Semíramis” (Companhia das Letras) refaz o caminho de Alencar a partir de seus antepassados de um interior cearense descrito algumas vezes com imagens e cenas extraídas dos próprios textos do autor, que a escritora planejava retratar há muito tempo.
O romance nasceu de uma conversa com a também escritora (e também cearense) Rachel de Queiroz (1910-2003), outra descendente de dona Bárbara, a heroína republicana. “Comecei a escrever em 2009. Desde então tentei diversas entradas, uma delas era a Rachel de Queiroz me falando sobre Bárbara do Crato, versão que acabei deixando, mas pude assim recolher muita vivência sertaneja desde quando os Alencar se estabeleceram no Cariri pernambucano”, conta Ana Miranda, em entrevista à ISTOÉ.Quem narra as bifurcações da árvore genealógica dos Alencar é a voz de Iriana, personagem inventada por Ana, que também aqui homenageia os estudos psicológicos femininos de Alencar, como “Lucíola”, “Diva” ou “Senhora”. Órfã deslocada dos papéis femininos do período, e irmã de Semíramis, uma verdadeira diva do romantismo europeu, “dona da brancura de um camafeu num país em que as moças bebiam vinagre para ficarem pálidas”. E tudo começa quando a pequena sertaneja desajustada parte em viagem na companhia do avô a fim de visitar a família amiga, os Alencar, traçando um percurso do Crato ao Alagadiço Novo, locais reais do Cariri cearense, que remetem aos romances da terra de José de Alencar.


“Fui ao Crato diversas vezes, olhei a serra azul, a noite azul, as paisagens ali e em volta, mas lá hoje é outra cidade, então precisei viajar ao Crato antigo lendo livros de um viajante, um morador... Foram as viagens que fiz lendo os textos da época que me permitiram transformar na Iriana, a narradora, com integridade”, conta Ana. “Houve o recolhimento de expressões, palavras, comportamentos, tudo o que me sensibilizava eu ia guardando, usando quando possível.”
Chegando ao destino, a menina presencia os últimos dias de gravidez de Ana Josefina. Num parto silencioso e feliz, a “amasiada” de padre Martiniano – nora de dona Bárbara – dá à luz Cazuzinha, cujo crescimento se torna o maior objeto de atenção de Iriana e assim a história de Alencar começa a ser contada. “A ordem dos fatos, as datas, os acontecimentos correspondem à biografia de Alencar”, diz Ana Miranda. “Mas o núcleo ficcional é o universo de Iriana e Semíramis e tudo o que elas apresentam é fictício. Assim, toda a vida do escritor se torna ficção, apresentada por uma narradora inventada.”


As trocas de cartas entre a viuvinha do sertão e a irmã que se casa com pompa e circunstância no Rio compõem o jogo com que a escritora apresenta o espírito dúbio que tomava conta da cultura nacional da gestação da República. Com licença ficcional, mas sem tirar o pé da história da literatura, agrega personagens como os escritores Machado de Assis, Gonçalves Dias e Castro Alves, que, de fato, se relacionaram com o protagonista.
“Castro Alves, de passagem, vem mostrar o lado generoso de Alencar, estimulando novos autores; mas também compõe os costumes no Rio de Janeiro”, conta ela, que morou durante 30 anos no Rio. As leituras de Iriana e suas interpretações sobre a produção de seu “para sempre” Cazuzinha mostram como a formação da literatura nacional pôde influenciar os costumes do período e de tudo o que veio a partir de então. “As leituras mudam nosso pensamento. Para o bem, para o mal”, conclui a narradora dessa história sobre as reverberações frutíferas da obra de José de Alencar, mas também sobre o silêncio do que nasce e morre sem deixar galho, fruto ou exemplo.

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