sexta-feira, 13 de junho de 2014

Te Contei, não ? - Barbárie sem limites


Caso da dona de casa espancada até a morte por vizinhos no litoral paulista não é isolado. A violência vem crescendo assustadoramente e hoje o país registra dois linchamentos por dia

Raul Montenegro (raul.montenegro@istoe.com.br)



"O horror. O horror.” A frase é de Walter Kurtz, personagem interpretado por Marlon Brando em “Apocalipse Now” – filme sobre a insanidade da Guerra do Vietnã –, mas passou pela cabeça de milhares de pessoas que viram os vídeos em que Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, aparece sendo linchada no Guarujá, litoral sul de São Paulo, no sábado 3. Nas gravações feitas por celulares de pessoas que testemunharam a barbárie, ela, já desacordada, é chutada e arrastada pelas ruas de terra do bairro de Morrinhos, na periferia do município. Um homem é flagrado dando pauladas no crânio da vítima e outro passa com uma bicicleta sobre sua cabeça. Dezenas de pessoas participaram da ação, incluindo crianças e adolescentes. Elas haviam sido insufladas por um boato falso difundido na internet pela página noticiosa do Facebook “Guarujá Alerta”, que possui cerca de 50 mil seguidores. Por causa disso, confundiram Fabiane com uma sequestradora de crianças que, segundo as autoridades, não existe.

Casos bárbaros como esse infelizmente não faltam no País. Um dos maiores especialistas no assunto, o sociólogo aposentado da Universidade de São Paulo José de Souza Martins diz que hoje há uma média de dois linchamentos, ou tentativas, por dia. Os casos estão aumentando. Há um ano, eram quatro por semana. De acordo com ele, ao menos um milhão de brasileiros participaram de linchamentos nos últimos 60 anos. Em Foz do Iguaçu (PR), outro episódio recheou essa estatística macabra na terça-feira 6, um dia após a morte no Guarujá. Duas meninas, de 15 e 18 anos, quase foram linchadas após assassinarem a pedradas uma adolescente de 13 anos. De acordo com a polícia, o crime aconteceu porque a vítima, Taís Cristina Martins, ficou com o namorado de uma das agressoras. Com a notícia do crime, a população do bairro tentou linchar as duas jovens – cerca de 20 pessoas já as tinham atacado com socos e pontapés quando um policial chegou à residência onde elas estavam para levá-las à delegacia. Pouco depois, cerca de 300 pessoas se reuniram ao redor da casa, jogando pedras e fazendo ameaças de morte, e as duas só conseguiram deixar o local após a chegada da Tropa de Choque.
Não é de hoje que os linchamentos aterrorizam o País. O fato mais significativo dos últimos casos, porém, é que a barbárie é praticada cada vez mais sem razão, ainda que nada a justifique. “Se as pessoas entendem que as instituições funcionam mal, elas começam a usar seus próprios mecanismos. É aí que a gente vê os casos de justiça com as próprias mãos”, diz o professor da USP José Álvaro Moisés. E as cenas de selvageria sem limite não são de hoje. Casos como o da dentista queimada viva em 2013 em São Bernardo do Campo (SP) ou o do adolescente preso a um poste na região do Flamengo (RJ) neste ano mostram que estamos vivendo um estado progressivo de barbárie.
O rumor sobre uma mulher que raptava bebês para realizar rituais de magia negra já rondava a comunidade de Morrinhos, no Guarujá, havia alguns anos. Como uma lenda urbana, a história reaparecia de tempos em tempos – o mito, inclusive, já havia circulado por outros Estados. Há cerca de um mês ele voltou a ganhar força na cidade. Centenas de pessoas do município enviaram a falsa informação para a página “Guarujá Alerta”. Ao receber os relatos, o site publicou no dia 25 de abril: “Boatos rolam na região que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra. Se é boato ou não devemos ficar alerta”. Nos comentários, uma usuária postou um retrato falado como sendo da suposta sequestradora. Detalhe: o desenho não tinha nenhuma relação com o Guarujá. Ele havia sido feito pela polícia carioca depois de uma tentativa de rapto malsucedido no Rio, em 2012. Com a popularidade do perfil, o pânico foi aumentando nos dias seguintes.

Esse era o clima na manhã do sábado 3 em que a dona de casa Fabiane, mãe de duas meninas, de 1 e 12 anos de idade, saiu de casa na sua bicicleta. O exercício funcionava como uma espécie de terapia quando ela era acometida pelas crises do transtorno bipolar (caracterizado pela alternância de períodos de euforia e de depressão) que a afligiam desde quando ela havia dado à luz a primeira filha.

“Ela saía pela rua abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, mas nunca fez mal a ninguém”, diz Aline Barbosa, 24 anos, amiga da vítima. Após passar na colônia de férias onde o marido é porteiro, na Praia das Astúrias, e realizar uma série de atividades, entre elas recuperar a “Bíblia” que havia esquecido numa igreja, a mulher fez compras num mercado e, ao sair, brincou com uma criança e lhe ofereceu uma fruta. Nesse momento, segundo testemunhas, a mãe começou a gritar “é a sequestradora, é a bruxa” e a confusão começou. O primeiro a atingir Fabiane teria sido um homem ligado ao tráfico de drogas. Depois, uma multidão se revezou nos ataques à dona de casa, confundindo a “Bíblia” que ela levava com um livro de magia negra. O linchamento durou 20 minutos. A dona de casa morreu na segunda-feira 5.

“Ela não teve direito de defesa. Eu não sei como foram confundir minha mulher com aquela da foto”, diz o marido Jaílson das Neves, 40 anos. Ele se refere ao retrato falado publicado no “Guarujá Alerta” que serviu de estopim para a tragédia. O site surgiu em 2012, depois que seu administrador, que não quer revelar nome e idade, mas aparenta ter cerca de 30 anos, foi assaltado na praia. “Criei a página para desabafar e para as pessoas relatarem onde elas estavam sofrendo crimes. Daí começou a crescer”, afirma. Ele então passou a escrever sobre delitos no município e a postar fotos de pessoas e cães desaparecidos. Em 26 de fevereiro deste ano, cerca de dois meses antes do linchamento, o “Guarujá Alerta” publicou uma mensagem dizendo ter firmado uma parceria com o 21º Batalhão da Polícia Militar da cidade. Um e-mail ao qual ISTOÉ teve acesso mostra que o 1º Tenente da PM Marcos Rovina Capovilla sugeriu a aproximação por causa da “credibilidade” do site. De acordo com a instituição, o 21º Batalhão não mantém nem manteve qualquer espécie de parceria com o responsável pelo perfil – a página apenas recebia os releases destinados à imprensa. “Lamentamos que o ‘Guarujá Alerta’ esteja tentando associar o nome da Polícia Militar de São Paulo aos seus atos irresponsáveis”, completa o órgão, em nota. No fim de abril, apenas alguns dias antes da execução pública de Fabiane, a página fez um mea-culpa afirmando que a história da sequestradora não passava de um boato. O estrago, porém, já estava feito. “A internet aumenta a dimensão de algo que teria impacto local. Em 30 anos de linchamentos, são poucos os registros em vídeo. Agora as pessoas filmam tudo”, afirma Ariadne Lima Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Thiago Bottino, professor da Fundação Getulio Vargas Direito Rio, afirma que não é possível responsabilizar o administrador do site na esfera penal. “Ele precisaria conscientemente instigar alguém a causar o crime”, diz. Em relação à responsabilidade civil, a história é diferente. Como nesse caso o tribunal analisa o efeito de uma atitude, e não só sua motivação, o autor da postagem pode ser obrigado a pagar indenização, apesar de ainda não haver ação para isso. “O juiz precisaria decidir se a mensagem tem vinculação suficiente com o que aconteceu depois ou não”, afirma Luiz Fernando Moncau, também da FGV. Já os quatro suspeitos de linchar Fabiane que foram presos pela polícia até agora, Valmir Dias Barbosa, 48 anos, Lucas Rogério Fabrício Lopes, 19, Carlos Alex Oliveira de Jesus, 22, e Jair Batista dos Santos, 35, podem ser indiciados por homicídio.

Na opinião de estudiosos, apesar de a internet amplificar a repercussão de rumores, a falta de confiança nas instituições é o principal combustível do fenômeno. Como indício do descrédito, Moisés, da USP, aponta que 77% dos brasileiros acham que a lei não trata a todos igualmente e que 81% não se sentem representados por nenhum partido político. A opinião pública foi unânime na condenação do achaque a Fabiane porque ela não sequestrou criança alguma, mas uma parcela considerável da sociedade continua defendendo episódios de justiça feita com as próprias mãos (leia quadro nesta página). “Os linchadores são criminosos, seja a vítima inocente ou não”, afirma Ariadne, da USP. “As pessoas muitas vezes não conseguem ver que a justiça com as próprias mãos é na verdade uma grande injustiça que pode se voltar contra elas. E você também tem comentaristas irresponsáveis na mídia que podem exacerbar a intolerância e a violência”, diz Moisés. Nildo Neves, 42 anos, cunhado da vítima, que sentiu o peso da barbárie na pele, professa: “Olhando para as crianças presentes no vídeo da morte de Fabiane eu me preocupo com o que será daqui a 10, 15 anos.”
Colaborou Simone Felício
Foto: Marcos Alves/Ag. O Globo

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