domingo, 1 de junho de 2014

Te Contei, não ? - Quem vê raça não vê gente

O gesto simples e improvisado de Daniel Alves ao comer uma banana atirada no campo de futebol humilhou os racistas e lembrou a todos o óbvio: com nossas peles de cores diferentes, somos todos humanos

RODRIGO TURRER E JULIA KORTE
Quem vê raça não vê gente (Foto: FIFA/FIFA via Getty Images (8) e Latin Stock)
O Brasil é o país da mistura racial. A convivência entre negros e brancos sempre pareceu cordial e pacífica. Abolida a escravidão, nunca houve no país um conflito racial aberto entre negros e brancos. Especialmente no futebol. Em poucas áreas essa convivência foi tão harmoniosa quanto num gramado com uma trave de cada lado. Desde que os primeiros negros foram aceitos em clubes profissionais, nos anos 1920, o futebol brasileiro beneficiou-se da combinação de raças. No Brasil, o racismo só existia de forma velada. Em campos nacionais, ele nunca conseguiu estragar o espetáculo. Até agora. O medo é que surja algo semelhante ao que existe na Europa. No Velho Continente, esse abominável mal faz barulho. Negros e mestiços são alvos de manifestações racistas. Torcedores imitam macacos, bananas são atiradas ao gramado, gestos fascistas surgem na multidão. As autoridades europeias impõem duras penalidades, sem eliminar o problema. Coube a um atleta brasileiro, vindo da terra do racismo velado, uma atitude que impulsionasse essa luta. Ao comer uma banana atirada em campo, de forma irreverente, Daniel Alves lembrou o que as fotos a seguir mostram. A qualidade de um craque da bola – ou de qualquer ser humano – independe da cor de sua pele.

Na cidade espanhola de Villareal, Daniel, lateral direito do Barcelona, agiu de forma intuitiva. Antes de cobrar um escanteio, agachou-se, pegou a banana que viu na lateral do campo e a comeu. Em seguida, bateu o escanteio. Quase como uma punição divina, o lance de bola parada resultou no gol de empate do Barcelona contra a equipe da casa – de cuja torcida partira a atitude racista. Foi como um drible de Garrincha. O gesto de Daniel deu uma nova dimensão a um problema contra o qual os europeus se debatem há tempos, sem encontrar solução. O racismo na Europa sempre foi uma questão de preto no branco: atos racistas – majoritariamente contra negros, mas também contra árabes – eram punidos com perda de mando de campo ou ausência de torcidas no estádio. A atitude de Daniel deu outros matizes a esses esforços. Seu gesto espalhou-se pela internet. Recebeu apoio de músicos, artistas de TV e de outros jogadores de futebol, como os brasileiros Oscar, David Luiz e Willian, do Chelsea (Inglaterra), do italiano Mario Balotelli, do Milan FC, e até do primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi.

Muito dessa popularidade deveu-se ao mais famoso colega brasileiro de Daniel no Barcelona. Neymar postou uma foto na rede social Instagram, em que aparecia ao lado do filho Davi Lucca. Ele tinha uma banana descascada nas mãos, Lucca um brinquedo em forma de banana descascada, quase de seu tamanho. Ele tem 10,4 milhões de seguidores no Twitter e 4,6 milhões no Instagram. A assinatura da foto (em português, inglês, espanhol e catalão) dizia “somos todos macacos, somos todos iguais. Diga não ao racismo!”. O tuíte de Neymar foi criticado por dois motivos: primeiro, como jogada de mar­keting. O mote da campanha foi criado por uma agência de publicidade, depois de atos racistas contra Neymar. Ficou engavetado à espera de uma oportunidade. Segundo, por equiparar seres humanos a animais. Para os críticos, o mote da campanha não deveria ser “somos todos macacos”, mas sim “somos todos humanos”.
 

SÃO TODOS HUMANOS 1. Neymar e seu filho em foto publicada no Instagram.  Ela gerou a campanha #somostodosmacacos 2. Jogadores do Corinthians  3. O cantor Michel Teló 4. Daniel Alves, do Barcelona, em campo, ao comer a banana atirada pelo torcedor 5. O premiê italiano Matteo Renzi e o técnico da Itália, Cesare Prandelli 6. Fred, atacante do Fluminense  7. Sergio Agüero, do Manchester City, e a jogadora Marta 8. Ivete Sangalo 9. Jogadores do time de basquete Los Angeles Clippers protestam contra seu dono (Foto: reprodução (8) e AP)
“É hipocrisia criticar uma campanha contra o racismo. Os críticos se apegam ao contexto (o episódio da banana), e não ao objetivo, conscientizar as pessoas de que somos todos humanos e somos todos iguais”, afirmou Daniel ao GloboEsporte. Independentemente da forma e da campanha publicitária, o gesto de Daniel obrigou a Europa a repensar a maneira como lida com o racismo. A União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) promove campanhas de combate ao racismo e à discriminação desde 1999. A Fifa adotou ações similares em 2002. Todas promovem a diversidade e pedem um “não ao racismo”.
Fifa e Uefa também adotam punições contra atletas e clubes. Em maio de 2013, o Comitê Executivo da Uefa aprovou uma suspensão mínima de dez partidas a quem apresentar comportamentos racistas nos campos de futebol. Olympiacos, da Grécia, e Zenit, da Rússia, já tomaram suspensões. Com jogadores, a punição também é rigorosa. Em 2011, o atacante uruguaio Luis Suárez, do Liverpool, foi acusado de ofender, com insinuações racistas, o lateral negro francês Patrice Evra, do Manchester United. Suárez negou, mas foi suspenso por oito jogos. No primeiro reencontro entre os dois atletas, ele piorou as coisas ao recusar-se a cumprimentar Evra. Pressionado por seu próprio clube, divulgou um pedido formal de desculpas.
Nada disso conseguiu extirpar essa chaga do futebol europeu. Manifestações racistas contra jogadores sul-americanos e africanos continuam a pipocar no continente. Na Espanha, em 2006, o camaronês Samuel Eto’o, à época no Barcelona, deixou o gramado do estádio La Romareda depois que a torcida do Real Zaragoza chamou-o de macaco e imitou sons de símios. Ronaldinho Gaúcho o acompanhou. Os dois voltaram a campo, convencidos pelo árbitro e pelo treinador, Frank Rijkaard. No ano passado, o meia ganês Kevin Prince Boateng abandonou o campo durante um amistoso contra o time Pro-Patria, na cidade de Burso-Arsizio, no norte da Itália, depois que torcedores da equipe local imitaram macacos. Todo o time do Milan deixou o gramado como forma de apoio. Semanas antes, o atacante italiano Mario Balotelli também foi ofendido por cantos racistas da torcida da Roma, num jogo do Campeonato Italiano.

Por mais que os casos se repitam, a percepção dos europeus sobre o problema parece não se alterar. “Tudo é muito lamentável, mas são casos isolados, não se pode abandonar o campo para combater o racismo”, afirmou Adriano Galliani, diretor do Milan, depois do episódio com Boateng. O técnico da seleção espanhola, Vicente del Bosque, expressou a mesma posição sobre o caso de Daniel Alves. “Quero pensar que são fatos isolados. Não há racismo no futebol, há pessoas que utilizam o futebol para fazer esse tipo de coisa.” Torcedores europeus parecem pensar assim também. Uma pesquisa conduzida pelo Conselho Europeu em 2011, em dez países do continente, mostrou que 82% dos europeus acreditam existir racismo no futebol. Apenas 37% deles o consideram um problema grave. “Como o racismo não é tão escancarado como era há algumas décadas, jogadores e torcedores fazem de conta que ele não existe mais”, afirma Jon Garland, professor de história social da Universidade de Leicester, no Reino Unido, e autor de uma dezena de livros sobre racismo no futebol. “A atitude de Daniel Alves mostrou que o racismo existe e pode ser combatido com ações criativas, sem deixar de lado punições severas.”
No Brasil, a terra do racismo velado e da convivência cordial, o problema começa a preocupar. O país sempre se considerou vítima, devido aos episódios de ofensas racistas em campos europeus ou sul-americanos. Como o ocorrido com o volante Tinga, do Cruzeiro, em fevereiro deste ano, numa partida da Copa Libertadores da América, no Peru, contra o Real Garcilaso. Os torcedores da equipe peruana passaram o jogo imitando macacos e fazendo sons simiescos na direção de Tinga. Repentinamente, a chaga europeia aparecia no quintal de casa – e perto da Copa do Mundo. Só neste ano, dez casos de racismo em estádios brasileiros se tornaram públicos. As ofensas não ocorreram apenas em jogos de pequena projeção. Em março, Arouca, volante do Santos, dava uma entrevista depois da goleada do Santos por 5 a 1 sobre o Mogi Mirim, pelo Campeonato Paulista, no estádio Romildão, em Mogi Mirim. Alguns torcedores passaram por ele na saída do gramado e o chamaram de “macaco”. O estádio foi interditado, mas os torcedores racistas não foram detidos.
 

GUERRA AOS RACISTAS 1. Torcedores com  bandeira nazista em Moscou 2. Um torcedor na Ucrânia faz o gesto fascista 3. Uma banana jogada no campo em Barcelona 4. Uma banana nas mãos de um turco  5. Atletas do Botafogo contra o racismo (Foto: AP, Reuters, Alex Caparros/Getty Images,  Zan Kose/AFP e Wagner Meier/Agif/Ag. O Globo)
Um dos casos de maior repercussão envolveu o árbitro gaúcho Marcio Chagas da Silva. Em março, num jogo pela 12ª rodada do Campeonato Gaúcho, Marcio ouviu gritos de “macaco”, “seu lugar é no circo” e “volta pra selva” quando entrava e saía do campo para apitar a partida entre Esportivo e Veranópolis. Ao deixar o estádio, encontrou as portas de seu carro amassadas, e bananas colocadas no capô. Ele relatou o ocorrido na súmula da partida. O Esportivo foi punido apenas com perda de mando de campo e de pontos. Os responsáveis nunca foram presos. “O gesto de Daniel Alves foi espontâneo, sensacional e serve como reflexão, mas não pode ficar apenas nisso. É preciso que haja punições severas”, afirma Marcio Chagas. Ele abandonou a arbitragem para se tornar comentarista esportivo. “O preconceito no Brasil é velado, dá a impressão de não existir, mas se reflete em piadas e brincadeiras de mau gosto. Não foi a primeira vez que enfrentei esse tipo de situação – e não será a última.”
Chagas tem razão. O racismo no Brasil existe e resiste, mas abaixo da superfície. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 1997, 57,7% dos negros brasileiros eram pobres. Dez anos depois, eram 41,7%. Entre os brancos, o percentual caiu de 28,7% para 19,7% no mesmo período. Se o Brasil fosse um país só de negros, ocuparia a 105a posição do ranking de países do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Considerando só os brancos, a posição seria 44a. Entre os 10% mais ricos do país, 86% são brancos; entre os 10% mais pobres, 65% são negros. Pesquisas recentes dizem que 90% consideram haver racismo no país, mas menos de 5% declaram-se racistas. “O combate ao racismo deve ser perene e estrutural da nossa sociedade. Somos um país com racismo, mas não existem racistas”, diz Ramatis Jacino, autor do livro Branqueamento do trabalho (Editora Nefertiti, 2007) e presidente do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial. “O racismo no Brasil é um crime perfeito.”
A sua maneira, o racismo no futebol brasileiro nada mais é do que a reprodução de um fenômeno social. “No discurso racista, essas construções são usadas para criar uma hierarquia de pessoas”, diz Sérgio Costa, professor de sociologia da Universidade Livre de Berlim e estudioso das relações inter-raciais. “Seja na distribuição das oportunidades sociais ou na orientação de comportamentos no cotidiano, o preconceito social existe.” Quando o racismo é cristalizado na cabeça de alguém, ele influencia desde a escolha de um candidato a um posto de trabalho, da professora do filho pequeno, até os próprios relacionamentos amorosos. Segundo dados do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2012, cerca de 70% da população brasileira tem relacionamentos amorosos com pessoas do mesmo grupo de cor ou raça. Os brancos são o grupo mais “fechado”: 69,3% unem-se a pessoas da mesma cor, ante 45,1% dos negros. “É a permanência de uma ideologia que não acredita na divisão da diversidade humana em raças e as hierarquiza”, diz Marcel Diego Tonini, pesquisador em história social da Universidade de São Paulo (USP). “Há um racismo velado no Brasil, e temos vergonha de assumi-lo, mesmo sendo escancarado a suas vítimas, presente no cotidiano para quem quiser vê-lo.”
 

NA PRÓPRIA PELE 1. Tinga, do Cruzeiro, disputa lance no Peru 2. Luis Suárez recusa-se a cumprimentar  o francês Patrice Evra  3. Arouca, chamado  de macaco por torcedores do Mogi Mirim  4. O ex-árbitro Marcio Chagas da Silva (Foto: Luka Gonzales/AFP, reprodução,  Léo Santos/Futura Press e Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
O que explica essa intrincada e difícil relação do brasileiro com a questão racial? O Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, tem a maior população afrodescendente do mundo depois da África. Dos 10,7 milhões de escravos africanos que navegaram o Atlântico, entre os séculos XVI e XIX, 4,9 milhões vieram ao Brasil. Historicamente, nunca houve uma Ku Klux Klan, e o casamento entre negros e brancos nunca foi proibido por lei, como nos Estados Unidos. Também não passamos por um apartheid como a África do Sul. “É característica do racismo brasileiro não impedir a convivência entre brancos e negros. Ela explica por que a estratificação racial foi ignorada. Não existe segregação por definição. Isso não quer dizer que o racismo não exista”, afirma Sérgio Costa, professor de sociologia da Universidade Livre de Berlim.
Não há dúvida de que existe racismo no Brasil. Também não há dúvida de que a consciência sobre o problema aumentou. “O Brasil é um dos países onde a consciência racial foi despertada de forma extraordinária”, diz Ramatis Jacino. O Estatuto da Igualdade Racial, sancionado em 2010, criou leis para coibir a discriminação e estabelecer políticas de diminuição da desigualdade – a Lei Afonso Arinos, que proíbe a discriminação racial no Brasil, e a Lei Caó, que define crimes de preconceito racial. Com a proximidade da Copa do Mundo, até mesmo a Lei Geral da Copa prevê campanhas educativas e instrutivas de promoção do combate ao racismo e da igualdade racial durante o torneio. “Para que a lei seja mais bem aplicada é preciso, ainda, um trabalho intenso da nossa parte junto ao Sistema de Justiça”, afirma a ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
Leis não faltam. É preciso aplicá-las com rigor. Foi o que fez a Liga Americana de Basquete, a NBA, na semana passada. Um site de fofocas revelou conversas telefônicas em que o empresário Donald Sterling, dono da equipe Los Angeles Clippers, recriminava sua namorada por ter amigos negros e levá-los aos jogos da equipe. “Por que você tira fotos com minorias? Por quê? Me incomoda demais que você queira aparecer se associando a negros. Você pode dormir com negros, fazer o que quiser. Só peço que não promova isso e não traga para meus jogos”, afirmava Sterling. A resposta foi imediata. Quinze empresas deixaram de patrocinar a equipe. Menos de uma semana depois, a NBA baniu Sterling da Liga pelo resto de sua vida e o multou em US$ 2,5 milhões. Na prática, Sterling poderá ser obrigado a vender a equipe.
O gesto de Daniel Alves causou tanto impacto devido ao ineditismo, à espontaneidade, à irreverência e à ousadia. Como os gênios criativos do futebol, ele usou uma jogada surpreendente diante de um adversário trapaceiro e violento. Em seu improviso, devorou a banana e um racista – e todos os que pensam como ele. O torcedor do Villareal responsável por arremessar a fruta, David Campayo Lleo, tem 26 anos. Entregou-se à polícia e pode pegar até três anos de prisão. Foi derrotado por um oponente mais inteligente que ele. Mas a atitude de Daniel foi um alerta, não uma solução. Conclamou o mundo a combater o racismo em todas as suas formas, no esporte e fora dele. Com leis, punições, educação e – por que não – a criatividade dos craques de futebol.

Nenhum comentário:

Postar um comentário