Gil Vicente nasceu por volta de 1465 e encenou sua primeira peça em 1502. Foi um dos colaboradores do Cancioneiro Geral de Garcia Resende, tendo também desempenhado o importante papel de organizador de festas palacianas, com o qual alcançou na Corte uma situação de autoridade que lhe permitiu, em 1531, censurar severamente os sermões terríveis nos quais os frades de Santarém explicavam um terremoto como resultante da ira divina. O último auto seu de que se tem notícia data de 1536, não tendo concluído uma compilação de suas obras em vida.
A primeira classificação metódica das peças de Gil Vicente foi feita pelo filho e editor do Poeta, que assim as dividiu: autos de devoção, farsas, comédias, tragicomédias e obras menores. No teatro vicentino não se deve analisar comédia e tragicomédia de formas estanques, como se fossem gêneros radicalmente distintos (Amaral, 2003). Não obstante, a comédia se sobressai no autor português com maior destaque. Nela, a ausência da figura materna é uma constante, com os filhos entregues a própria sorte. O casamento aparece como o elemento de desenlace feliz dos enredos.
Quanto às obras profanas, a classificação tende a ser arbitrária. As variadas estruturas apresentadas nos autos vicentinos dificultam as classificações. Excluindo-se os simples monólogos, pode-se dividi-los da seguinte maneira:Autos pastoris, Autos de moralidade, Farsas, Autos Cavaleirescos e Autos Alegóricos (Saraiva e Lopes, 2001). Bem mais simples é a classificação de Massaud Moisés que, quanto ao tema, divide o teatro vicentino emtradicional e de atualidade. Como o título deste artigo pressupõe, pesquisou-se aqui “o teatro de atualidades [que] caracteriza-se por conter o retrato satírico da sociedade do tempo, em seus vários estratos, a fidalguia, a burguesia, o clero e a plebe, como na Farsa de Inês Pereira [objeto de estudo deste texto]” (Moisés, 2005, p. 41).
Em vida, Gil Vicente publicou alguns dos seus autos em folhetos de cordéis; depois reeditados. Algumas dessas edições foram proibidas pela Inquisição. Seu filho Luís Vicente organizou e publicou em 1562 a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, notoriamente incompleta e defeituosa, segundo Saraiva e Lopes (2001).
Como se sabe, o gênero dramático tem características específicas. Para se analisar uma peça de Gil Vicente é necessário pontuar algumas. Em primeiro lugar, a obra vicentina ignora a figura do narrador, uma vez que nela aparecem rubricas, anotações à parte da narrativa, orientações para os atores. É esse aspecto que esclarece questões como vestimenta, tempo, cenário, posição das personagens no palco etc.
Em Gil Vicente, não há rubricas muito específicas, o que leva certos autores a afirmarem que o dramaturgo quinhentista privilegiava recursos textuais em detrimento dos recursos cenográficos, reconhecidamente pobres (Hart, 1983). Não obstante, Gil Vicente é considerado um dramaturgo notável, cujo domínio estrutural de técnicas das artes plásticas tem motivado muitos estudos (Reckert, 1983, 17). Na verdade, certos autores consideramsurpreendente o surgimento de uma personalidade como Gil Vicente em um país onde as tradições dramáticas medievais não parecem ter florescido de modo brilhante (Saraiva e Lopes, 2001).
O tempo representado nas peças de Vicente nem sempre é indicado. As cenas vão acontecendo sem idéia precisa do tempo decorrido entre uma e outra. No caso da peça A Farsa de Inês Pereira1, há uma única menção feita, a do período transcorrido entre a ida de uma personagem à guerra até a chegada da notícia de sua morte: três meses. Vicente despreza as unidades de tempo, lugar e ação. Anos se passam entre cenas; personagens transitam de um lugar para o outro; a ação pode abranger vários acontecimentos em diversos planos de realidade. Para Saraiva, de fato Gil Vicente não teria encontrado unidade dramática em sua obra, uma vez que “abundam os tipos, mas faltam os caracteres” (1981, p. 101). Para Berardinelli, não se deve esperar unidade num autor de transição entre períodos claramente distintos, ou seja, a Idade Média e o Renascimento (1984, p. 9).
A predominância do discurso direto é outra característica do gênero dramático, ou seja, mediante o diálogo das próprias personagens cria-se e expõe-se a trama. Uma vez que as personagens “tecem” os seus próprios discursos, Gil Vicente usou com habilidade essa artimanha para garantir o humor. Na fala de cada personagem, há marcas importantes para delimitação de suas características. Seguindo a “medida velha”, traço da poesia medieval, Vicente constrói as falas em versos redondilhos maiores: sete sílabas poéticas, com rimas. Essa mesma forma é encontrada no Cancioneiro Geral (Berardinelli, 1984, p. 13).
Não obstante serem belos objetos estéticos, as peças vicentinas se sobressaem como representações dos costumes sociais de um ponto de vista crítico, ou mesmo humorado/sarcástico (Hart, 1983). De um lado, os recursos poéticos, a vivacidade e o realismo dos diálogos entre as personagens concorrem para formar um texto repleto de beleza e riqueza literárias. Por outro lado, a ausência de orientações de cena, a despreocupação com um roteiro rígido, o paralelismo estrutural, aspectos criticados, em nada parecem comprometer o valor da obra de Gil Vicente.
UMA PEÇA PARA OS NOSSOS DIAS
A Farsa de Inês Pereira, uma das mais conhecidas peças de Gil Vicente, foi representada, possivelmente, no convento de Tomar pela primeira vez em 1523, para o rei D. João III e sua corte. Escrita como resultado de um desafio desencadeado por nobres portugueses, que duvidavam da originalidade de Gil Vicente e o acusavam de plagiar o teatro espanhol, a peça logo caiu no gosto de seus expectadores. Nela, Vicente faz uma “pausa” à sistemática desmoralização da nobreza, ociosa e arrogante, assunto sempre presente em suas peças, como no Auto da Barca do Inferno. Aceitando o desafio dos nobres, fatigados pelas chacotas, Vicente sugere que eles mesmos proponham um tema sobre o qual ele deve escrever. O mote escolhido foi o ditado popular: “Mais quero um asno que me leve que cavalo que me derrube”. Surge então a Farsa de Inês Pereira. Saraiva caracteriza essa peça da seguinte forma:
A história de Inês Pereira é uma narrativa cujas fases sucessivas, a começar pelo namoro e a acabar pelo segundo casamento, são sucessivamente postas em cena. A situação não chega a ser posta dilematicamente em um deles, mas as coisas vão acontecendo, como na vida, ao olhar de um observador. Esse processo narrativo, que precisa de abarcar [sic] espaços grandes do tempo e acontecimentos que se engendram uns aos outros, impõe por vezes a intervenção de figurantes encarregados de expor em um prólogo o resumo da acção novelesca, ou suprir, mediante narrativas, os espaços que medeiam entre os vários episódios encenados (Saraiva, 1981, p. 103).
No início da peça, Inês Pereira canta e finge um trabalho em bordado, no mesmo instante que reclama do tédio por ser obrigada a esse serviço, e por sua vida, sempre trancada em casa. Em Vicente é notável o desejo feminino de romper os limites estreitos do lar e das obrigações impostas pela sociedade, ou seja, romper com “todo o universo de reclusão que a condena à obediência” (Kleiman, 2003, p. 279). Isso é mais patente nas farsas, gênero sedutor justamente pela profusão de personagens de forte temperamento, desafiadoras da ordem e da autoridade. É o que ocorre com Inês, o tipo de personagem chamada por Kleiman de “mulher desviante”, ou seja, de quem não se espera certos comportamentos. Inês começa a peça com nuances de mulher virtuosa, mas logo causa certo impacto o descortinamento da verdade: de supostamente casta a mulher se revela devassa.
Ao ouvir as lamúrias da filha, a mãe de Inês lhe aconselha ter paciência. Entra em seguida uma nova personagem, Leonor Vaz, possivelmente uma vizinha, relatando que um padre a agarrou no caminho. Após chorar sua sina, diz trazer proposta de casamento para Inês, por parte de Pero Marques, filho de um lavrador rico. Inês aceita conhecê-lo, mesmo tendo repudiado a carta do mancebo, caracterizando-a como “fora de mão” (p. 28). Quando se encontra com o pretendente, ela o acha totalmente desinteressante e recusa o casamento.
Aparecem, então, os judeus casamenteiros, Latão e Vidal, a quem Inês encomendara um noivo ideal que fosse discreto e compreensivo. Segundo os dois palermas, o homem perfeito é um Escudeiro, Brás da Mata. De fato, esse personagem, um nobre falido, finge e atua diante de Inês um papel de homem bom e discreto. A moça cai na lábia do finório, que havia combinado antes com seu pajem as mentiras a serem ditas para enganar Inês. O falsário obtém sucesso e se casa com a moça. Mas já no início da nova vida, o sonhado marido revela-se um tirano que não deixa sequer a esposa aparecer na janela. Inês volta a suas lamentações, exclamando: “Havia-me eu de vingar/ deste mal e deste dano” (p. 53).
O Escudeiro é obrigado a seguir para a guerra, deixando Inês aprisionada em casa, vigiada pelo pajem. Três meses depois, ela recebe uma carta do irmão, dando conta que o marido foi morto por um pastor mulçumano. Vendo-se em liberdade, Inês não perde tempo e segue o conselho de Leonor Vaz, ou seja, casa novamente, desta vez com Pero Marques.
Quando Inês começa a gozar as vantagens do novo casamento, aparece um ermitão esmolando. Na verdade, o velho em moço fora apaixonado por Inês. Ao antecipar os futuros prazeres nos braços do potencial amante, Inês segue em romaria, rumo ao convento onde o padre vivia, carregada nas costas por Pero. No caminho, canta a felicidade de ter um marido com vocação para ser traído. Nota-se aqui uma evidente potência sexual por parte da mulher, além de uma inversão de hierarquias, na qual a mulher de algum modo domina o homem. Vê-se, então, que na obra vicentina a mulher é uma espécie de heroína com papel ativo na sociedade, evidentemente uma liberdade literária porque destoante do real à época.
A falta de compaixão de Inês para com o marido traído e parvo provocava riso nos homens e cumplicidade nas mulheres. A figura feminina de Inês evoca a mulher capaz de “driblar” hipocritamente as convenções sociais para satisfazer seus desejos carnais. Trata-se de crítica visceral, perpassada pela necessidade da moralidade cristã curar a sociedade degenerada, idéia sempre presente na obra de Vicente, mesmo que de modo implícito. Por meio dos personagens, Gil Vicente aborda temáticas duais, como a manutenção e corrupção dos valores culturais, a batalha entre o Bem e o Mal e a constatada falta ou presença da ética nos costumes sociais do homem português (ou mesmo ibérico) quinhentista (Hart, 1983).
Em segundo plano, encontram-se a ironia e a estarrecedora revelação do condenável comportamento do clero na figura do padre que tenta agarrar Leonor Vaz, daquele que já tentou fazer o mesmo com a mãe de Inês e do ermitão que se tornará amante da jovem. Gil Vicente não poupava o clero e suas peças insistem numa crítica contundente, mediante mordaz comicidade. Devido a isso, muitos estudiosos o consideram um reformista ou erasmista.
Em verdade, a figura do homem Gil Vicente chegou a nós “envolta em brumas”, tantas dúvidas ainda pairam sobre sua pessoa. Para Luciana Stegagno Picchio (apud Reckert, 1983, p. 18), somente se pode conhecer este homem chamado Gil Vicente mediante sua obra. Há mesmo acusadores dizendo que ele, não obstante ter respirado ares da revolução cultural promovida pelo Renascimento crítico e “pagão”, permaneceu apegado a valores do passado teocêntrico e feudal, conservador e moralista (Hart, 1983). Para Berardinelli, Vicente deve ser considerado, na verdade, um “reformador [e] propugnador de uma salutar revigoração moral do clero” (1984, p. 10). O resto tende a cair em debates estéreis.
Outrossim, salta aos olhos a visão satírica do comportamento dos nobres. Alguns chegavam mesmo a fingir sua condição social, como é o caso do Escudeiro que se casa com Inês. Em verdade, toda a sociedade quinhentista era passível da censura vicentina, uma vez que aquele momento de transição (Idade Média/Renascimento) favorecia velhos e novos vícios. Por exemplo: a intromissão na família de alcoviteiras e alcoviteiros como Leonor e os Judeus. Havia, por assim dizer, uma falta de privacidade que escandalizaria o homem pós-moderno, caso este voltasse no tempo.
Gil Vicente compõe a Farsa de Inês Pereira como um painel, cujas cores ainda se firmam em valores medievais, para tecer profundas críticas a vários setores da sociedade. O cotidiano do homem comum é devassado, analisado como elemento sociocultural e psicológico (Hart, 1983). A peça representa a preocupação do autor com o homem de seu tempo, arrastado a torvelinhos de transformações. Aparentemente dual, a arte vicentina fincava-se no Teocentrismo, mas ao mesmo tempo sua ossatura era a vida do homem na terra. Esse aspecto, logo se vê, é uma recorrência da literatura humanista, se não sua maior característica.
Entretanto, a grandeza da obra de Gil Vicente extrapola sua preocupação em caracterizar uma sociedade ou uma época específica. Mesmo que certos personagens sejam pontualmente reconhecidos, como é o caso do fidalgo, figura constantemente atacada por sua tirania, já que Gil Vicente abominava a prepotência e a desonestidade (Bernardinelli, 1984, p. 11).
Um visão de conjunto dos tipos de Gil Vicente monstra que atualidade e universalidade são marcas indeléveis do seu teatro. O Preguiçoso, o Parvo, o Fidalgo (arrogante), o Clérigo (hipócrita), o Judeu (ganancioso) e tipos que hoje seriam considerados “populares” como o Negro, o Pastor, o Ermitão, a Alcoviteira, o Velho... Eles são facilmente identificados por suas atitudes e modos de falar estereotipados (Reckert, 1983, p. 21). Não se entenda isso como preconceito, pois, ao contrário, Gil Vicente apresenta em seu teatro um interesse não preconceituoso e não polêmico por certos fatos da vida e da sociedade (Saraiva e Lopes, 2001).
Inês Pereira, protagonista da farsa aqui analisada é, segundo Saraiva, uma figura oposta ao tipo, ou seja, ela é uma figura fortemente individualizada que “não é apenas uma moça fantasiosa, mas a própria e inconfundível Inês Pereira” (1981, p.96). A independência e o comportamento de Inês conferem a ela um caráter único, quer seja, uma mulher muito avançada para o seu tempo2. Ela, tudo indica, é pintada como uma bela mulher, e como tal idealizada. Na literatura renascentista, a mulher bonita é capaz de enfeitiçar os homens com apenas um olhar. A beleza seria uma espécie de grilhão, mediante o qual a mulher mantém seu amante cativo (Dodman, 2003).
Inês é uma entre tantas figuras femininas que povoam a obra vicentina. Por vezes, o autor usa de extremos contrastes para retratar a mulher quinhentista, podendo variar de um modelo de perfeição inimitável – a chamada manipulação analítica – ao modelo reconhecidamente humano – a manipulação genética, segundo interpretação de Kleiman (2003). Ambas manipulações são muito comuns na farsa vicentina, gênero no qual tudo é permitido e tudo é deformado com vistas à vazão plena do riso.
A Farsa de Inês Pereira é considerada uma das melhores, dentre as demais de Gil Vicente. As farsas sempre caíam mais no gosto do público, sobretudo pela forma de tratar os temas delicados, como casamento e sexo. Estudo recente mostrou que o Nordeste brasileiro herdou fortes traços do teatro vicentino. Aspectos moralizantes ou sátiras ácidas são sentidos ainda hoje “pelas vozes múltiplas das feiras populares: mamulengos, pelejas de repentistas, cegos cantadores” (Alves, 2003, p. 241).
A atualidade da obra de Gil Vicente é impressionante. Autores nordestinos têm bebido da tradição vicentina e o resultado é a produção de peças e traços que atualizam temas e problemas do teatro quinhentista. Escritores como Ariano Suassuna (Auto da Compadecida) e João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina), para citar apenas dois conhecidos, “retomam cenas e temas vicentinos e, ora pelo viés dos Autos, ora pelo das Farsas, comprovam quanto Gil Vicente, quinhentos anos depois, ainda se encontra presente, nutrindo um teatro que se quer genuinamente brasileiro” (Alves, 203, p. 242).3
A Farsa de Inês Pereira foi recentemente (2001) retomada por Arayton Alexandre Públio em sua peça Uma História Estranha! Nela, temas como o do filho que questiona a sociedade na figura dos pais, adultério feminino, clérigos seduzindo mulheres são exemplos dessa permanência e atualidade de Gil Vicente. Nessa peça prevalece uma sátira social e de costumes que questiona o lugar da ordem social, por meio dos personagens tecidos como tipos. Lá aparecem reparginadas figuras como o marido enganado, o tipo de Pero Marques, o fanfarrão mentiroso como Brás da Mata e a mulher adúltera, como a própria Inês.
Inês, conforme o leitor descobre já na primeira leitura, “está longe de ser uma mansa cordeirinha” (Alves, 2003, p. 250). Tal tipo ou personagem, a mulher que “chifra” o marido, sempre esteve presente na literatura popular nordestina, como nos cordéis, por exemplo. Isso para falar apenas em temática, pois a herança vicentina também se estende à estrutura dos textos, privilegiando até mesmo o verso heptassílabo tradicional. Outros aspectos como linguagem coloquial, indefinição de tempo e lugar, cenas alheias umas às outras completam esse quadro de heranças deixadas pelo mestre Gil Vicente aos homens dos nossos dias.
Carlos Drummond de Andrade percebeu essa avassaladora atualidade do dramaturgo quinhentista ao dizer que “Quem chamar Gil Vicente de autor do século XVI comete erro grave, pois na realidade ele é bem do século XX, para não dizer que é de todos os tempos (...) o velho Gil é o mais jovem dos nossos comediógrafos” (apud Alves, 2003, p.241).
O aspecto poético dos versos redondilhos de Vicente revela acentuada consciência artística, herança que também deixou para os nossos escritores. A presença de metáforas, trocadilhos e de bela sonoridade tornam o teatro vicentino universal e atemporal, atributos reforçados pelo rico texto e cenografia simples. Em outras palavras: os recursos poéticos são mais valorizados que os cênicos para captar não apenas a sociedade portuguesa, mas todas aquelas construídas em torno dessa criatura chamada homo sapiens. Isso significa escrever também para os homens dos séculos XX e XXI. Para todos nós.
Enfim, a atualidade de Gil Vicente deixa uma lição clara: nem tudo que é antigo consegue ser destruído pelo redemoinho da pós-modernidade. Como clássico que é Gil Vicente não terminou de dizer tudo o que tinha e ainda tem para dizer (Calvino, 1995). Por isso ele é um clássico, atual, necessário, de todos os tempos, como Drummond bem o disse.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos autores reconhecem que a originalidade de Gil Vicente reside, sobretudo, na variedade de suas obras. Vicente estava tecnicamente limitado a ousar, mas a falta de recursos, ao contrário, contribuiu para uma melhor exploração do texto, a tal ponto artisticamente trabalhado que Vicente é, justamente, considerado o verdadeiro introdutor do teatro em Portugal.
A poesia lírica da primeira fase vicentina marca com autenticidade e funcionalidade a estruturação do roteiro das peças. Já a música serviu para complementar, na composição dos personagens, aspectos psicológicos e motivações de sentimentos. Gil Vicente se diferencia especialmente pela atenção a pequenos detalhes.
Estudar a obra de Gil Vicente é mergulhar num período conturbado da história da Península Ibérica, momento de transição entre o homem medieval agonizante e o renascentista abrindo seu “par de asas novinho em folha”. Não causa surpresa, então, que a obra vicentina esteja fincada em valores teológicos, religiosos, e também numa necessidade de projetar os olhos para o futuro que chegava de modo avassalador.
Não obstante tudo isso, a liberdade com que Vicente criticava o clero (incluindo até mesmo o papa), e por outro lado conclamava o povo a voltar aos “ensinos verdadeiros” da Madre Igreja, não deve ser visto como paradoxal, mas sim como elementos de uma mesma personalidade complexa. Tal aparente dualidade se desfaz quando a figura é recolocada em sua época, pois nenhuma personalidade histórica sobrevive a um julgamento com critérios alheios ao seu tempo.
Portanto, Gil Vicente foi um autor muito inovador, tendo até mesmo feito “espantosas antecipações de artifícios modernos como sejam o monólogo telefônico e o fade-in do cinema” (Reckert, 1983, p. 22). Ler as peças de Vicente e perceber que elas continuam atuais, porque tratam de temas humanos universais – e parece que o homem tem mudado pouco em tantos anos – só reforça a idéia de que certos autores se tornaram imortais justamente porque abordaram pontos essenciais para a compreensão do ser humano.
Inês e seu caráter fanfarrão e egoísta poderiam ser perfeitamente concebidos como próprios de uma moça arrogante dos nossos dias, alguém que busca apenas o prazer. A atualidade de seu caráter reside no fato incontestável de que muitas mulheres, mesmo hoje, sonham com príncipes encantados. Esfacelada a ilusão, casam-se novamente, como se o casamento fosse uma espécie de antídoto contra o tédio da vida. Como Inês, muitas do nosso tempo estão a esvoaçar os cabelos ao vento, atravessando rios no lombo de maridos apaixonados e tolos, enquanto aguardam amantes. Inês não deixou de existir porque ela é um fragmento da própria condição humana.
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KLEIMAN, Olinda. “Figuras Femininas e seus Amores”. In: BRILHANTE, Maria João, CAMÕES, José, SILVA, Helena Reis e RIBEIRO, Cristina Almeida (org.) Gil Vicente 500 anos depois. Actas do Congresso Internacional realizado pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Vol. 2. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 2003, p. 277-289 (Coleção Temas Portugueses).
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_________ Farsa de Inês Pereira, Auto da Barca do Inferno e Auto da Alma. São Paulo: Martin Claret, 2004 (Coleção a Obra-prima de Cada Autor).
1Todos os fragmentos da Farsa de Inês Pereira transcritos neste artigo foram extraídos da edição da Martin Claret, 2004 (Coleção A Obra-prima de Cada Autor).
2Para uma análise completa sobre o papel da mulher na obra vicentina, ver: DODMAN, “Mulheres fora do seu tempo: a bela e a feia no teatro de Gil Vicente”, 2003.
3Para um apanhado mais complexo da herança vicentina no Nordeste do Brasil ler o artigo mencionado: “Gil Vicente no Nordeste Brasileiro”, de Maria Teresa Abe lha ALVES, 2003.
Revista Prova. Maio/2007
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