sábado, 22 de outubro de 2011

Crônica do dia - Fera Ferida mas generosa



Antes de iniciar o recital da última terça, no Sesc-Ginástico — celebrando o relançamento da obra (1968) do recém- saudoso Reynaldo Jardim em sua homenagem — Bethânia falou dos tempos estranhos que vivemos. Não me recordo exatamente de suas palavras, mas era algo sobre a pressa de tudo fazer e a quase impossibilidade do silêncio.

Tempo no qual, disse Bethânia, dizer poesia (a palavra, o conceito, os versos) é tido quase como uma ofensa.

Essa introdução, nas duas horas que se seguiram, voltou-me à mente a cada trinado de celular que insistia em perturbar aquele espaço de delicadeza. Ou, nas palavras de Fausto Fawcett, “pacto de delicadeza”.

Contei dez, ao todo, apesar dos avisos antes de apagarem-se as luzes. Havia um toque de rock; o toque clássico da Nokia; abominações de todo tipo; e um simulacro de passarinhos. Na fila da frente, um cidadão tentava filmar o recital, refletindo a luz diabólica de sua telinha nos meus olhos. Tive que ser rude para que ele parasse de uma vez por todas. E ele não se conformou até o final. Coitado. Um doente. Devia estar internado.

Na fila de trás, um facínora falava ao celular. Creiam. Falava. Tipos assim deveriam ser expulsos do teatro como um molestador de virgens é lançado de uma boate porta afora pelo leão de chácara. Jogado à rua para cheirar a sarjeta e acordar. Uma segunda chance.

Os trinados durante o recital, as tentativas de filmagem, as conversas paralelas, soavam como protestos contra a ofensa que Bethânia impunha: quem ousa dizer poesia está confrontando a nova ordem.

Bethânia dizer poesia (ainda que num recital de poesia de Bethânia) é um acinte, um soco nas pernas que tremem de ansiedade pelo próximo torpedo, pelo e-mail com esporro do chefe, pelo resultado do futebol.

Bethânia, contudo, não chiou. Deixou os trinados irem e virem e serem sobrepujados e capturados pelas teias do seu dizer, até que o silêncio (entre os versos e diante deles, entre as sílabas, ou contidos em si, quando Bethânia calava na sua cadência) voltasse a imperar sobre a Terra. Na sequência de pouco mais de 60 itens, as canções, inversamente aos shows usuais da cantora, interpunham-se aos poemas como pérolas. Diferentemente dos espetáculos musicais — quando Bethânia lê poesia a cada quatro ou cinco canções —
neste recital Maria usava a canção para pontuar a torrente de poesia. Enquanto nos shows os ápices interpretativos são nas canções, no recital elas são sínteses contidas.

O silêncio tem sido a palavra de ordem de Bethânia, desde que se instalou a controvérsia sobre o tal site de poesia, quando sua participação numa iniciativa que envolvia dinheiro público e novas tecnologias foi convertida pela quase totalidade da mídia (e pela fúria dos leitores e comentadores de sites e blogs) num processo de linchamento público raramente visto e certamente desmerecido.

Bethânia, apesar de sua sabedoria, provavelmente não soube calcular, por distração ou por boa fé, nesses “tempos estranhos” em que só se sabe discutir através de sentenças maniqueístas (só existem o bem absoluto e o mal mais sórdido) o efeito que teria o seu nome — o nome de alguém tido pelo público como o de uma santa — associado ao uso do erário. Foi como jogá-la aos leões.

Desde então, Bethânia se recolheu. Parou praticamente de falar à imprensa e, num gesto radical, tirou o seu site do ar e jamais o reativou. Muita gente em seu círculo apela para que ela volte atrás nesse particular, mas ela não arreda pé: não quer nada com esse meio, o meio digital. Sente saudades, como disse no recital, dos anos 1960, 70, até os 80, quando as pessoas se reuniam para trocar emoções, no lugar de ficarem em seus mundinhos de ruídos e simultaneidades polisassaturadas.

Para sua produção, seu marketing, seus contatos, seus fãs informatizados, ficou difícil a vida sem o site. Não deixa, porém, de ser admirável ver alguém assim determinado a dar uma banana à digitália. Ela é Bethânia, “Guerreira, guerrilha” (título do livro-poema de Reynaldo Jardim relançado por iniciativa de Ramon Mello e Marcio Debellian). É Bethânia com ela mesma, e todos os santos e orixás, fazendo seu gesto de protesto, punho cerrado como em “Carcará” (perdi o bis com “Carcará” por causa de um rendez-vous telefônico de trabalho que me fez sair do teatro e que se revelou inútil). Bethânia está além do tempo, do ruído e do silêncio. Ela sabe “fabricar distâncias”, como no poema de Jorge de Lima. E, quando ela julgar por bem, voltará ao ciberespaço. Ou não. Dane-se.

Para finalizar, Bethânia recitando “Os sapos” de Bandeira fazendo inflexões coloquiais no estribilho (foi, não foi...) é um trabalho celestial de atriz. A menção ao ensino público (via professor Nestor de Oliveira) é uma porrada. E a leitura da epifania amorosa de Riobaldo, bem mais lenta e declamada do que a velocidade do pensamento quando se lê Guimarães, é uma redescoberta da pólvora.

Quanto ao “Carcará”, contaram-me que o êxtase foi tamanho que a proibição de filmar se desfez e os celulares se libertaram. E que em certo ponto, sua voz não era mais a sua voz, e sim algo que dos céus baixou. Está no YouTube, mas não vou assistir, em respeito ao voto de silêncio eletrônico de Bethânia. Só assisto quando o site voltar ao ar. Paciência se não vi. Vi, não vi, vi...

E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

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