Como a artista Tarsila do Amaral e sua tela “Abaporu” tornaram-se símbolos nacionais - a ponto de a presidente Dilma Rousseff empenhar-se para ter o quadro em Brasília. A pintora é tema de uma exposição em Belo Horizonte, onde sua arte é confrontada com a de outros modernistas.
por Por Gisele Kato
Logo depois de tomar posse como a primeira presidente da história do país, Dilma Rousseff fez ao Itamaraty um pedido algo incomum para um chefe de Estado. Queria a tela Abaporu, de Tarsila do Amaral (1886-1973), entre as peças de uma exposição no Palácio do Planalto que tinha como tema a arte produzida por mulheres. Pois no dia 23 de março, depois de longas negociações entre o Ministério de Relações Exteriores brasileiro e o Museu de Arte Latino-Americana da Argentina, o Malba – a quem o quadro pertence –, Dilma inaugurou a mostra coletiva justamente destacando a presença do quadro em Brasília. Seu discurso naquela noite, de cerca de dez minutos, foi todo em torno da obra mítica que, em 1928, inspirou a principal peça propagandística do modernismo brasileiro, o Manifesto Antropofágico. Disse Dilma: “O Abaporu tem uma simbologia toda especial para nós, brasileiros. (...) Eu queria lembrar que ‘abaporu’ quer dizer ‘homem que come gente, homem que come homem’, no sentido do nosso movimento antropofágico, que é a nossa capacidade de absorver o que tem de universal em todas as culturas e metabolizar no particular”.
A presidente captou, com sua fala e sua atitude, um sentimento recorrente entre os brasileiros, leigos ou especialistas, que apreciam arte: o de que a pintora Tarsila do Amaral é a artista que melhor traduziu o que mais tarde seria chamado de “espírito de brasilidade”. E que se há um quadro dela que hoje resume isso no imaginário coletivo seria exatamente o Abaporu, a tela que em 1995 estabeleceu um valor recorde para a produção nacional ao ser arrematada por 1,43 milhão de dólares em um leilão na prestigiosa casa nova-iorquina Christie’s (o recorde só seria batido no ano passado, por Sol sobre Paisagem, de 1966, de Antonio Bandeira). A “simbologia” a que se refere Dilma tem a ver com o fato de que Tarsila – a personagem e sua obra – sobreviveu ao tempo, expressando valores que soam pertinentes até hoje. Sua biografia é pontuada por episódios de coragem: afinal, quem lá trás, nos anos 20, romperia um casamento tedioso para encarar as experiências que alimentariam criações revolucionárias? O Brasil que emerge das telas de Tarsila, vibrante e nada acanhado com o mundo lá fora, continua sendo o que muita gente quer para o país – entre elas, a presidente, claro.
O envolvimento pessoal de Dilma no processo de empréstimo do Abaporu ao Brasil tocou especialmente o banqueiro argentino Eduardo Costantini, o dono do quadro. “Fiquei muito surpreso com o amor da Dilma pela arte e também com o seu conhecimento do assunto”, disse o colecionador em entrevista a BRAVO!. Costantini afirma que, desde que adquiriu a tela no tão falado leilão em Nova York, recebe todo ano diversas propostas de marchands brasileiros para a compra da obra. Mas que não abre mão do quadro. De acordo com a colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, um grupo de investidores daqui já teria demonstrado interesse nesse sentido. “São apenas informações, não confirmadas. Mas nós gostaríamos muito”, disse a presidente Dilma Rousseff à coluna.
Costantini teria outra proposta. Segundo ele, se quiséssemos mesmo ter o quadro no país, a alternativa seria abrir uma filial do Malba no Brasil, um investimento que teria de ser arcado por empresários brasileiros: “Acredito que seria um projeto em torno de pelo menos 100 milhões de dólares, o que envolve a construção de um edifício e um fundo para sustentar um programa museológico”. Costantini não quer se desfazer do Abaporu não apenas pela carga simbólica da tela, mas também pelo fato de ela ser um chamariz de público. Não é exagero dizer que a criação de Tarsila é o principal motivo para que muitos dos cerca de mil visitantes que o Malba recebe por dia comprem um bilhete e cruzem sua porta de entrada.
Uma exposição em cartaz atualmente na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, intitulada Tarsila e o Brasil dos Modernistas, coteja obras da artista com a de outros pintores do mesmo período, colocando-as lado a lado. Na década de 1920, bem quando o Brasil procurava afirmar sua cara, eis que surge uma moça linda, talentosa, inteligente, espirituosa, culta, rica e recém-chegada da Europa, onde havia tomado contato com os grandes mestres das vanguardas, dizendo: “Sou profundamente brasileira e vou estudar o gosto e a arte dos nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que ainda não foram corrompidos pela academia”. Virou logo a musa do modernismo. E musa em um sentido tão amplo que reverbera até hoje. Filha de um abastado fazendeiro de café, Tarsila retornou ao Brasil, depois de uma temporada no exterior, quatro meses após a Semana de Arte Moderna de 1922. Chegou atrasada para as apresentações no palco do Teatro Municipal de São Paulo, mas não para se juntar imediatamente aos amigos Anita Malfatti (1889-1964), Menotti Del Picchia, Oswald e Mário de Andrade, no que ficou conhecido como “o grupo dos cinco”. Para cima e para baixo no Cadillac verde de Oswald de Andrade, eles agitaram a capital paulistana. E, por tabela, o Brasil.
“SISTEMATIZAÇÃO INTELIGENTE DO MAU GOSTO”
Nesse cenário, há um ano-chave na história da artista: 1924. Em fevereiro desse ano, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars chegou ao Brasil para ser ciceroneado por Tarsila e Oswald, que namoravam desde 1922. Os três, mais a amiga Olívia Guedes Penteado, uma dama rica da sociedade e grande incentivadora do modernismo no país, resolveram se aprofundar nas raízes nacionais, o que na época significava desbravar os morros cariocas e o interior de Minas Gerais. As viagens resultaram em um enorme salto para a arte de Tarsila. Dá para dizer que foi ali, naqueles dias de descobertas, que a artista realmente conseguiu colocar os temas brasileiros em suas telas. Foi nessa época também que ela achou os tons fortes que usaria para falar do país. De um jeito bastante instintivo, mas que só poderia ser atingido com o conhecimento avançado de pintura que tinha, Tarsila inventou o tal conceito de brasilidade que faz com que ela seja popular até hoje, algo que nenhum outro artista daquele tempo chegou nem perto de fazer.
A partir de 1924, nos quadros de Tarsila do Amaral, está muito do Brasil que povoa o imaginário coletivo atualmente. Talvez o escritor Mário de Andrade tenha sido o primeiro a reconhecer isso, em seu ensaísmo barroco, que busca definições precisas num estilo de morde-e-assopra: “Pode-se dizer que dentro da história da nossa pintura ela foi a primeira que conseguiu realizar uma obra de realidade nacional. (...) Em Tarsila, como aliás em toda a pintura de verdade, o assunto é apenas mais uma circunstância de encantação; o que faz mesmo aquela brasileirice imanente dos quadros dela é a própria realidade plástica: um certo e bem aproveitado caipirismo de formas e de cor, uma sistematização inteligente do mau gosto excepcional”. A crítica de arte Aracy Amaral, autora da biografia mais elogiada sobre a artista, Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo (reeditada em 2010 pela editora 34), reforça essa ideia: “No caso desta pintora, vemos refletida em sua obra um subdesenvolvimento humano nosso, com todo o encantamento, no sentido de ‘exotismo’ para o estrangeiro, também nele implícito.” A historiadora de arte Maria Alice Milliet, que dirige a Fundação José e Paulina Nemirovsky, em São Paulo, concorda: “Tarsila é um marco da imagética nacional. A partir dela, a arte brasileira caminhou para encontrar uma voz própria”.
A exposição em cartaz em Belo Horizonte explora bastante essa ideia de Brasil construída por Tarsila, colocando-a lado a lado com a de outros nomes do período, como Ismael Nery (1900-1934), Di Cavalcanti (1897-1976) e Lasar Segall (1891-1957) (veja quadros da exposição ao longo desta reportagem). De certa forma, todos os pintores modernistas tinham um mesmo objetivo: criar uma identidade nacional por meio de imagens. Para a curadora da mostra, Regina Teixeira de Barros, uma gravura de Oswaldo Goeldi, por exemplo, que se caracteriza por explorar o claro-escuro e o lado mais sombrio da sociedade, não fala menos sobre o nosso cotidiano do que o colorido exuberante e mole de Tarsila. Tanto que, na coletiva na Casa Fiat de Cultura, encontram-se juntos. Mas não há como brigar com o imaginário coletivo. No inconsciente das pessoas, no fim das contas, é o Abaporu que surge soberano. Se não a tela específica, ao menos a paleta de cores da artista paulista e seus bichos antropofágicos. E para entender essa sua popularidade, a habilidade pictórica só não basta. Porque, nessa área, outros rivalizam com ela. A artista, no entanto, soube somar ao talento artístico uma personalidade ímpar, algo que não só bancou como alimentou o quanto pôde.
Tarsila usava os cabelos presos para trás e brincos sempre grandes. Falava francês sem sotaque. E também inglês, catalão e italiano. Virava-se bem no alemão. Tocava piano e adorava música clássica. Vestia-se com Paul Poiret e Lanvin, os melhores costureiros de Paris, cidade que visitava com frequência tanto para rever os amigos como para reciclar conhecimentos culturais – e o guarda-roupa, claro. Sua presença causava tanto frisson por onde passava que há nas biografias a seu respeito histórias lendárias de festas e reuniões que literalmente pararam para vê-la entrar. Uma delas ocorreu em maio de 1923, durante um jantar oferecido pelo embaixador Souza Dantas em homenagem a Santos Dumont, em um luxuoso hotel parisiense. A recepção estava marcada para às 20h30. Tarsila só apareceu às 21h15. Mas, quando surgiu, mostrou-se deslumbrante com um casaco vermelho de gola alta. Não se falou em outra coisa o resto da noite. Foi depois desse jantar que Tarsila pintou o autorretrato Manteau Rouge (veja na abertura desta reportagem), em que se coloca segura, encarando o espectador e com o colo descoberto, uma ousadia para a época. Ou seja, ela não tinha receio de ser desejada e de, inclusive, explorar essa imagem em público. “Tarsila inventou um tipo, como fez a Frida Kahlo ao adotar as vestimentas mexicanas”, diz a curadora independente Denise Mattar. Sentir-se assim, tão senhora de si, era até natural. Dizem que todos os artistas que conviviam com ela se apaixonaram em alguma medida. Mas o escritor Oswald de Andrade, igualmente bonito e influente, foi quem acabou levando a melhor.
EXPORTANDO A FEIJOADA E A CAIPIRINHA
Tarsila e Oswald casaram-se em 1926 – ele com 46 anos, ela com 40, idade em que finalmente conseguiu a anulação de seu primeiro matrimônio – e se separaram em 1930. O tempo em que permaneceram juntos coincide justamente com o período mais fértil de sua carreira. A parceria dos dois extrapolou muito o âmbito particular: em Paris e em São Paulo, nos anos 20, eles formaram uma espécie de grife. Eram referência para a moda, a decoração da casa – a sala de jantar tinha móveis assinados por Poiret – o comportamento, a arte. Tarsila viajava para a França e lá fazia questão de organizar almoços típicos brasileiros, com feijoada e caipirinha. Aqui, no Brasil, a dupla recebia estrangeiros como se fossem verdadeiros embaixadores do país. Enfim, eles faziam muito bem o que hoje se chama de marketing pessoal – atualmente tão necessário em todas as áreas, inclusive na das artes visuais. O Abaporu foi pintado em 1928, em meio a essa efervescência. Tarsila criou a tela na calada da noite, para surpreender Oswald e dar-lhe a obra de aniversário. Conseguiu bem mais do que isso. Oswald ficou tão chocado com o que viu que logo chamou o amigo e poeta Raul Bopp. Diz a lenda que Bopp teria perguntado: “Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?” Pouco tempo mais tarde eles publicariam o Manifesto Antropofágico.
Entre os especialistas em arte, o desejo da presidente Dilma Rousseff de ter o Abaporu de volta ao Brasil não encontra muito suporte. “A dimensão que a tela alcançou é justíssima. Agora, não vejo por que ela não possa continuar no Malba, onde está muito bem colocada”, diz a crítica Cacilda Teixeira da Costa. O diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Marcelo Araujo, concorda: “O retorno do Abaporu ao Brasil seria relevante, mas não podemos deixar de reconhecer a importância que sua exposição atual, no âmbito da mostra de longa duração de arte latino-americana do Malba – talvez a mais consistente iniciativa no gênero em todo o mundo –, traz para a divulgação e valorização da arte brasileira”. O diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC, Tadeu Chiarelli, endossa: “Considero muito bom para todos nós que uma obra dessa importância para o Brasil esteja num museu fora do país, ajudando a chamar a atenção para a arte que é produzida aqui”.
A ideia de trazer o Abaporu para o Brasil tem, assim, mais eco nos meios políticos. Faz sentido. O quadro é um símbolo, e repatriar um símbolo sempre pode trazer dividendos eleitorais. Principalmente porque Tarsila está ligada a um conceito caro aos dias de hoje: o cosmopolitismo. A mulher que apresentou a caipirinha aos parisienses era uma cidadã do mundo, e sua obra reflete isso. Com bom humor, suas telas muitas vezes incorporam um ponto de vista estrangeiro. O quadro Carnaval em Madureira, de 1924, uma representação do subúrbio carioca, traz ao centro, ironicamente, uma Torre Eiffel. Cartão-Postal, de 1929, exibe uma floresta com bichos exóticos – uma brincadeira talvez com os pintores viajantes do século 17, que acrescentavam à fauna local animais que existiam apenas na Europa e na África. Tarsila via o país com olhos brasileiros e estrangeiros, fazia piada com a mistura – e essa mirada dupla nos desconcerta, como ocorre no Abaporu. Assim, o destino do quadro não importa tanto. Em Buenos Aires ou aqui, o fundamental é que a tela, com seu caráter de obra-síntese, continue nos encantando – e nos inspirando.
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