Cada feriado religioso, como o de Nossa Senhora Aparecida, ocorrido na semana passada, põe em xeque o caráter laico do Estado brasileiro. Fica claro que não é tão laico assim. Urge matizar o suposto laicismo. Seguem-se quatro alternativas:
1) O Estado brasileiro é uma entidade laica que tem o catolicismo como religião oficial.
2) O Estado brasileiro é uma entidade laica que tem o catolicismo (por enquanto) como religião oficial.
3) O estado brasileiro é uma entidade laica imbuída da missão de prestigiar, sustentar e enriquecer as religiões.
4) O Estado brasileiro é uma entidade laica constituída sob a proteção de Deus.
Se o/a leitor/a escolheu uma delas, errou. Todas estão certas, como se passará a demonstrar.
Alternativa 1
A Constituição assegura a liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), donde decorre que o Estado se manterá neutro diante das várias religiões. É a boa doutrina, parte inseparável do triunfo das liberdades e dos direitos humanos sobre o caráter teocrático das antigas monarquias ou de certos estados contemporâneos.
No entanto, só a religião católica mantém sobre o calendário do país controle suficiente para impor feriados nacionais. Judeus, muçulmanos, budistas, umbandistas e outras minorias carecem de tal poder.
Os evangélicos, a quem já não é lá tão própria a qualificação de “minoria”, ou bem têm de escolher um fim de semana ou bem pegar carona num feriado católico (como o de Corpus Christi) para realizar suas maciças “marchas para Jesus”.
Outro sintoma da predominância católica é a presença de símbolos dessa religião em recintos públicos, a começar pelos mais importantes deles, os plenários da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, todos eles decorados com crucifixos na mais vistosa das respectivas paredes.
Plenário do STF: o crucifixo católico na mais vistosa parede (Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF)
Alternativa 2
O poder do catolicismo já foi muito maior, no entanto. Havia mais feriados em reverência a seus dias santos. E, até as décadas de 50 ou 60, seus representantes eram figuras inevitáveis nas cerimônias públicas.
“Estiveram presentes autoridades civis, militares e eclesiásticas”, informava a imprensa, ao noticiar um desfile de 7 de setembro, uma recepção a visitante estrangeiro, uma posse de presidente, governador ou prefeito.
Uma inauguração não estaria completa sem a bênção do recinto por parte do padre ou do bispo.
Ao recuo católico, nas décadas que se seguiram, corresponde o avanço dos evangélicos. Hoje eles são namorados por políticos, contam com nutridas bancadas no Congresso e nas assembleias e, talvez mais importante do que tudo, dominam como nenhuma outra instituição a arte de ocupar espaços na TV.
Pode não estar longe o dia em que desbancarão os católicos, ou se equipararão a eles, como sócios preferenciais do Estado “laico”.
Alternativa 3
O artigo 19 da Constituição veda à União, Estados e municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
O artigo é em geral considerado como indicação maior do desejável distanciamento entre o Estado e as religiões.
O Estado garante-lhes o funcionamento, mas não se envolve com elas.
Eis no entanto que o Estado faculta o ensino religioso nas escolas públicas (art. 210), reconhece efeitos civis no casamento religioso (art. 226) e, na contramão da proibição de subvenções, estabelece que recursos públicos podem ser direcionados para escolas confessionais (art. 213) e, sobretudo, concede isenção de impostos a “templos de qualquer culto”.
Alternativa 4
Afirma o preâmbulo da Constituição que os “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte”, etc., etc., a promulgam “sob a proteção de Deus”.
Ponto a favor da neutralidade é que não se especifica se o Deus em questão é o dos cristãos, o dos judeus ou o dos muçulmanos.
Primeiro ponto contra é que, se é um só o “Deus” mencionado, ficam de fora as religiões politeístas – das africanas, afro-brasileiras e indígenas ao budismo, ao taoismo e ao hinduísmo.
Segundo ponto contra é a discriminação dos ateus e agnósticos.
Mas o principal não é isso. O principal é a evidência, logo de saída, no texto constitucional, da laicidade impregnada de religião – tão ambígua, tão cordial, tão malemolente, tão brasileira.
Texto publicado na edição de VEJA de 19 de outubro de 2011
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