Reunidos pela primeira vez, os contos do jovem Guimarães Rosa revelam o gosto do autor pelo horror e pela fantasia
LUÍS ANTÔNIO GIRON
João Guimarães Rosa (1908-1967) se tornou célebre pelas histórias que ambientou no sertão mineiro, narradas em linguagem ao mesmo tempo regional e renovadora. Seu livro de estreia, Sagarana, de 1946, já tinha as características que lhe trariam a glória. Mas houve um tempo em que Rosa ainda não era o Rosa que conhecemos. Antes Das Primeiras Estórias (Nova Fronteira, 96 páginas, R$ 29,90) reúne pela primeira vez quatro contos da juventude do autor, publicados em revistas, de 1929 a 1930. São narrativas de horror, fantasia e suspense. Para alguns estudiosos, elas representam o avesso do futuro Rosa. Ou quase.
Os especialistas já conheciam os primeiros contos de Guimarães Rosa. Nenhum deles, porém, fez questão de analisá-los ou publicá-los. Dois motivos contaram para a atitude. O primeiro: os contos de aprendizagem são vistos como um estorvo na definição do estilo maduro do autor, pois não se encaixam na narrativa sertaneja iluminada e erudita que ele criou, com particularismos e invenções de linguagem absolutamente únicos. O segundo, mais importante: Rosa desprezava seus contos imaturos.
A editora Nova Fronteira, detentora dos direitos de publicação da obra do escritor mineiro, reúne agora os contos em volume, como uma curiosidade literária, dentro de um projeto de lançar textos inéditos do autor. “Nossa intenção é estimular a curiosidade daqueles que gostam de literatura”, diz Janaína Senna, organizadora do volume. “É uma coletânea simpática, com um título que remete às Primeiras estórias, de Guimarães Rosa (de 1962). Quem ler os contos vai descobrir um escritor em formação. Não é o Rosa que as pessoas aprenderam a amar. Mas é alguém que escreve bem e ainda está tentando encontrar sua voz narrativa.” Publicar os contos, diz ela, não é um desrespeito ao escritor, pois, afinal, eles foram publicados em revistas por sua própria vontade.
O menino Joãozito, como era conhecido em casa, sentia compulsão para a fábula. Gostava de escrever histórias nos papéis de embrulho da loja dos pais, em Cordisburgo, Minas Gerais. Escreveu assim, à mão, um jornal com seções fixas, com noticiário, charadas, contos e desenhos. “Desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar intermináveis estórias, verdadeiros romances”, contou Guimarães em carta a seu ilustrador, Poty. “Quando comecei a estudar Geografia – matéria de que sempre gostei – colocava os personagens e cenas nas mais variadas cidades e países. Mas, escrever mesmo, só comecei foi em 1929, com alguns contos, que, naturalmente, não valem nada. Até essa ocasião (21 anos), eu só me interessava, e intensamente, pelo estudo, da Medicina e da Biologia.”
Tanto para ele “não valiam nada”, que demorou mais 16 anos para lançar um livro, e jamais os mencionou a seu amigo e colega Alberto da Costa e Silva. “Sabia da existência desses contos, mas há assuntos que os escritores preferem ignorar, principalmente quando estão entre escritores”, diz. Bem antes de se tornar poeta, historiador e especialista em Guimarães Rosa, Costa e Silva foi redator de “A cigarra”, caderno cultural mensal de O Cruzeiro. Em 1956, o lançamento de Grande sertão: veredas, de Rosa, causou estardalhaço. Até então, ele era conhecido pelos contos de Sagarana. O romance arrebatou os leitores pela revelação final e pela energia inovadora do estilo. O enredo pode ser descrito ligeiramente como relato em primeira pessoa de escaramuças entre bandos de malfeitores e um caso de amor entre dois jagunços. Coube a Costa e Silva escrever sobre a novidade que empolgava milhares de leitores. Seu chefe era Constantino Paleólogo (1922-1966). Ele mostrou a Costa e Silva contos de Rosa publicados em O Cruzeiro 26 anos antes: “Olhe, Alberto, como o Rosa já sabia prender o leitor antes de ficar famoso. Fui eu que o revelei!”.
Paleólogo criara concursos mensais de conto e poesia em O Cruzeiro, a revista brasileira de maior circulação entre 1930 e 1960. Rosa venceu três, por sua habilidade de narrar tramas cheias de reviravoltas e efeitos especiais. O prêmio consistia na publicação dos textos, ilustrados por artistas famosos naquele tempo, como Carlos Chambelland e H. Cavalleiro. De Rosa, a O Cruzeiro publicou “O mistério de Highmore Hall”, em 7 de dezembro de 1929, “Chronos kai Anagke (Tempo e Destino)”, em 21 de junho de 1930, e “Caçadores de camurças”, em 12 de julho de 1930. “Makiné” saiu no “Suplemento dos domingos” de O Jornal em fevereiro de 1930. “Naquele tempo, foram lidos por centenas de milhares de leitores”, diz Costa e Silva. “Podem ser apreciados hoje com o mesmo prazer.”
Para finalizar a edição da Nova Fronteira, a organizadora Janaína Senna pesquisou no arquivo rosiano do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB), que compreende cerca de 20 mil documentos. A editora lançará até o fim do ano uma antologia dos cadernos Boiada, escritos entre 1950 e 1952, durante excursões a cavalo pelo sertão mineiro que serviram como material para Grande sertão: veredas. No ano que vem, a editora deverá lançar uma antologia de reflexões metafísicas, diários de viagens e crítica literária. Durante a pesquisa, Janaína deparou com esboços de contos no estilo consolidado do autor. Concluiu que os contos da juventude são somente os quatro da edição. “São tão peculiares que decidimos não convidar um especialista em Guimarães Rosa para redigir a introdução crítica, uma vez que eles não teriam nada a dizer sobre o estilo do autor jovem. Ele tem mais a ver com Edgar Allan Poe do que com Rosa no ápice.”
Mesmo assim, uma especialista no Rosa sertanejo como Walnice Nogueira Galvão afirma que o volume vai provocar interesse acadêmico. “Tenho certeza de que logo vão aparecer teses de doutorado sobre a narrativa fantástica em Guimarães Rosa”, diz. “Como são forjadas no estilo de gótico, também poderão agradar aos jovens que hoje adoram o gênero de fantasia.” De acordo com Walnice, os contos são antípodas da obra posterior de Rosa. “Na juventude, em sua terra natal, ele imaginou países estrangeiros que não conhecia. Inversamente, na maturidade, ele começou a escrever sobre o sertão quando estava na Alemanha.” Costa e Silva observa que os contos ajudam a compreender a estética rosiana. “Ele começou com temas universais, que retornariam em suas últimas coletâneas de contos, já transfigurados pelo mundo sertanejo”, diz.
Mesmo que pareça leviano estabelecer uma relação direta entre o Rosa moço e o adulto, há pistas de posteridade nas aventuras fantásticas. Até o diabo aparece, não no meio do redemoinho do grande sertão, mas nos salões de um hotel luxuoso no norte da Alemanha, onde se realiza uma competição internacional de xadrez em “Chronos e Anagke”. No romântico “Caçadores de camurças”, pastores usam gibão e lutam pelo amor de uma mulher, ainda que nos Alpes Suíços em vez do sertão dos Campos Gerais. Há paixões violentas feito a de Riobaldo por Diadorim no conto “O mistério de Highmore Hall”. E até Minas Gerais ancestral surge em“Makiné”, que narra a história de magos fenícios que descobrem a América e são sacrificados pelos índios na gruta de Makiné – localizada em Cordisburgo. Além do cenário e das tramas rocambolescas, o jovem Rosa se exaltava com as palavras e as descrições da natureza. Embora usando um vocabulário rebuscado, como os parnasianos, e uma sintaxe que não o alinhava à moda modernista nos anos 20 –, ele deixa escapar seu entusiasmo pela busca de palavras e de efeitos sensoriais, à maneira de um pré-modernista como Coelho Neto ou Euclydes da Cunha.
Será que o novo volume abre a porta para a criação de um João Guimarães Pulp? “Se for para o jovem começar a ler Guimarães Rosa, por que não?”, diz Walnice. “Só convém não exagerar a expectativa em relação à qualidade dos textos.” Certamente ele ainda não era o mestre fundador do sertão da alma que o mundo veio a admirar como um de seus maiores escritores.
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