domingo, 23 de outubro de 2011

Te contei, não ???!!!! - Nina Rodrigues - Cientista e bisbilhoteiro



Pai da Medicina Legal no Brasil, Nina Rodrigues defendia que negros e índios não poderiam ser iguais perante o sistema penal
Jeferson Bacelar Cláudio Pereira


Há quem diga que ele foi racista, que via o negro como um dos responsáveis pela inferioridade da nação, mas há também quem o exalte como grande cientista de seu tempo ao estabelecer normas para a Medicina Legal. O fato é que, mais de um século após a sua morte, Nina Rodrigues (1862-1906) continua sendo protagonista de grandes controvérsias e polêmicas acadêmicas. De qualquer maneira, sua obra, apesar das recentes reedições de alguns de seus livros, está impregnada do contexto social e intelectual do final do século XIX e é pouco conhecida.

Maranhense de Várzea Grande – hoje município de Nina Rodrigues –, de família abonada e com ascendência judia sefardita – da península ibérica –, ele viveu a primeira infância na fazenda do pai, na companhia de 6 irmãos e de cerca de 60 cativos, entre africanos e descendentes. Até se dedicar à pesquisa médica, Nina mudou de endereço muitas vezes, alternando passagens entre Maranhão, Bahia e Rio de Janeiro.

Aos 10 anos já se encontrava em São Luís, onde cursou o Seminário das Mercês, e cinco anos depois ingressou no Colégio São Paulo. Quando embarcou no paquete Bahia, em 1882, rumo a Salvador, a Escola Tropicalista Baiana – grupo de médicos que se dedicavam à pesquisa da etiologia das doenças tropicais que acometiam as populações pobres do país, especialmente os negros e escravos – já era conhecida nacionalmente. Por isso ele acabou se fixando na cidade, vindo a desenvolver sua carreira na Faculdade de Medicina da Bahia, embora tenha concluído o curso no Rio. Retornou para São Luís em 1887, quando passou a clinicar; mas, em 1889, decidiu voltar para a Bahia a fim de se dedicar à pesquisa médica.

Duas características permearam todo o seu trabalho. Nina Rodrigues foi um intelectual atento ao que de mais avançado acontecia nas metrópoles europeias, e também à realidade que o cercava. Com essas virtudes, ele contribuiu para o desenvolvimento da Antropologia, da Medicina Legal, da Psiquiatria e da Criminologia no Brasil. Tudo isso assumiu uma grande importância durante momentos delicados da vida nacional, os quais foram vividos por Nina, como a Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889). Naquele período, mais que nunca, pensava-se em como deveria ser nossa nação. A Bahia, por exemplo, sofria com a decadência econômica, a perda do poder político e com a enorme população de negros e mestiços, que, então, eram considerados inferiores. Não à toa, Nina pôde desenvolver pesquisas que se tornaram uma referência para os estudos afro-brasileiros, abordando temas tão diversos como a presença dos grupos étnicos africanos no Brasil ou o candomblé.

Naquela época, o controle do povo brasileiro tornou-se uma questão central para aqueles que administravam a nação. Mas como realizá-lo com a presença ainda de tantos negros, uma massa amorfa de desocupados, excluídos do novo mundo do trabalho e supostos grandes responsáveis pelo nosso atraso? Na opinião de alguns, o recurso para construir essa nação mais civilizada seria embranquecer a população. E, para isso, o melhor era trazer os europeus adequados, de preferência os italianos e os portugueses, capazes de se integrar facilmente à população brasileira.

Em seu livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1901), o antropólogo demonstra, à luz das teorias evolucionistas, que não se poderia julgar povos desiguais da mesma forma perante a lei. Isso porque negros e índios teriam uma consciência do direito e do dever diferentes dos povos cultos da raça branca e, portanto, seria inconsequente proclamar a igualdade das diversas raças brasileiras sem pensar nos atenuantes da responsabilidade penal. É aqui, ao tratar do Brasil “antropológico e étnico”, que Nina Rodrigues demonstra sua capacidade de observação da realidade brasileira. Ele parece admitir que quase todo brasileiro é mestiço, seja no sangue ou nas ideias. Por isso havia uma minoria de raças puras no país: a branca, a negra e a vermelha. Entre os mestiços, ele destacava os mulatos, os mamelucos ou caboclos, os curibocas ou cafusos e, por fim, os pardos. Nina constatava que havia uma concentração de brancos no Sul e no Centro-Sul, e os mestiços de índios e negros habitavam a Região Amazônica e o Nordeste do Brasil, o que afastava a possibilidade de um Brasil embranquecido ou homogêneo racialmente.

Mas ele ia além da pura biologia: estabelecia uma hierarquia cultural entre as raças. Em sua opinião, o índio não conseguiu se incorporar à nossa população e não se civilizou, enquanto os negros não eram melhores nem piores que os brancos, apenas estavam em outro estágio de desenvolvimento. Eles seriam “populações infantis”, inferiores, que não podiam ser equiparadas às “raças brancas civilizadas”.

Por conta dessa desigualdade biossociológica, Nina achava que os negros e índios não podiam ser regidos pelos mesmos preceitos penais dos brancos, já que possuíam uma responsabilidade moral diversa. O mesmo não se podia dizer dos mestiços. Seguindo sua lógica, apenas os chamados superiores – que tinham uma predominância da raça civilizada na sua ascendência – poderiam ser julgados equilibrados e plenamente responsáveis. A partir deste argumento, Nina Rodrigues buscava a intervenção do Estado para desmentir a suposição de igualdade entre os brasileiros. Para ele, o reconhecimento das desigualdades era o único ponto de partida viável para uma distribuição hierárquica da justiça no Brasil, e os conhecimentos médicos poderiam contribuir para isso.

Neste ponto, entra em campo outra bandeira levantada por Nina: o incentivo às pesquisas médicas. Ele se empenhou principalmente para mostrar o quanto era necessário o reconhecimento de novas formações especializadas. No final do século XIX, as faculdades de Medicina também se preocupavam com o posicionamento centralizado do saber médico e sua legitimação. Elas buscavam se impor perante outras formas de cura, que iam da homeopatia ao curandeirismo.

Como pioneiro, Nina Rodrigues foi fundo na sua proposta de especialização, dentro e fora dos limites da faculdade. Em Salvador, envolveu-se em polêmicas, campanhas, comissões e na redação da Gazeta Médica. Sua atuação também se estendeu ao plano nacional e internacional. Grande foi sua luta para definir um campo específico para o perito em Medicina Legal. Segundo ele, o médico que quisesse se envolver com a Medicina pública teria de possuir uma formação especial em higiene e Medicina Legal, e isso deveria ser exigido pelo governo.

Além de se posicionar politicamente, ele tentava estabelecer as “bases científicas” do trabalho do médico-legal. Tanto que, em 1901, elaborou o Manual da Autópsia Médico-Legal para suprir o “conhecimento da insuficiência no preparo dos nossos peritos em exames cadavéricos, da preterição de todas as regras, de todo e qualquer methodo nas autopsias”. Minucioso, abordava desde aspectos do corpo, da importância do local até o seu transporte, além das regras e condições legais da redação do auto da autópsia. Coube a ele, aliás, examinar o crânio de Antônio Conselheiro e estabelecer que o professor da cadeira de Medicina Legal seria o perito oficial do Estado da Bahia.

Já gozando de certa visibilidade internacional, Nina Rodrigues representou a Faculdade de Medicina em Milão em 1906. Ao fazer uma escala em Portugal, ele já estava bastante debilitado por conta de uma grave infecção. Acabou falecendo em Paris no dia 17 de julho do mesmo ano.

Sobre a morte de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre declarou: “Curioso é ter Nina Rodrigues falecido em Paris no começo do século XX de morte misteriosa, não tendo os médicos europeus chegado a acordo quanto à doença que o fizera sucumbir ainda moço. O que fez mais de um baiano acreditar que Nina morrera vítima de feitiço ou ‘despacho’, por ter levado sua bisbilhotice de pesquisador científico a extremos contra os quais fora mais de uma vez advertido por alguns dos seus amigos africanos.”

Após a morte prematura de Nina Rodrigues, o Instituto Médico Legal de Salvador recebeu o seu nome. Isso o consagrou não só como verdadeiro pioneiro da Medicina Legal, mas principalmente como um inquieto intelectual que – antes que isto se tornasse comum – realizou estudos sobre a religião afro-brasileira, os africanos que aqui aportaram e nossas loucuras epidêmicas.



Jeferson Bacelaré professor da Universidade Federal da Bahia e autor de A Hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador (Pallas, 2008).

Cláudio Pereiraé pesquisador da Universidade Federal da Bahia e coautor de O negro na Coleção do Tempostal (Salvador, 2005).



Saiba Mais - Bibliografia



BARRETO JÚNIOR, Jurandir Antonio Sá. Raça e Degeneração: análise do processo de construção da imagem dos negros e mestiços, a partir de artigos publicados na Gazeta Médica Baiana (1880-1930). Salvador: Uneb, 2005.

CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade - A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Edusf, 1998.

LIMA, Lamartine de Andrade. Roteiro de Nina Rodrigues. Salvador: Centro de Estudos
Afro-Orientais/UFBA, 1980.

RIBEIRO, Marcos A. P. “A morte de Nina Rodrigues e suas repercussões”. In: Afro-Ásia nº 16. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, 1995.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Revista da Biblioteca Nacional

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