Renato Grandelle (renato.grandelle@oglobo.com.br)
DIAMANTINA, Minas Gerais - Ser civilizado, no início do século XX, significava desfilar por largas avenidas, passar na frente de prédios modernos, frequentar cafés, preservar um estilo de vida afrancesado e também, no caso das madames, enfeitar-se com penas, peles e plumas. Emas, araras e tucanos são alguns personagens da avefauna a serviço da moda, num tempo em que expressões como "preservar a biodiversidade" eram indecifráveis. Que o digam os números: entre 1901 e 1905, o Brasil vendeu 600 quilos de penas. Poucos anos depois, entre 1910 e 1914, o comércio do artigo saltou para 20 toneladas. Parte disso era usada aqui mesmo, pela elite local. Mas o grosso ia para os mercados externos. Tamanha mortandade acabou por chamar a atenção de naturalistas do Brasil e do exterior, levando a uma maior proteção dos animais.
Os dados, colhidos por Regina Horta Duarte, do Departamento de História da UFMG, podem estar subestimados.
- Essas eram penas negociadas legalmente, mediante pagamento de impostos - pondera a pesquisadora, que apresentou seu estudo no Festival de História, organizado em Diamantina pela Revista de História da Biblioteca Nacional. - Num país imenso como o nosso, onde a presença do Estado era insipiente, provavelmente essa estatística é ínfima.
O surto de elegância deve-se ao contexto político e econômico do período. Os primeiros anos da República foram marcados pela entrada de capital estrangeiro no país e pelo enriquecimento das elites com a crescente exportação de café, cacau e borracha. Durante a Belle Époque, as cidades preocupavam-se em evocar o ideal de modernidade - e a principal manifestação desse projeto no Rio foram as amplas reformas de Pereira Passos, cuja vitrine foi a construção da Avenida Central, hoje Rio Branco.
Como a pena é a parte leve do pássaro - e muitas são danificadas durante a caça -, para reunir tamanha quantidade, uma verdadeira chacina teria ocorrido nos céus brasileiros. Ao visitar Corumbá, hoje Mato Grosso do Sul, Edgar Roquette Pinto, antropólogo e futuro diretor do Museu Nacional, ouviu dizer que ali a lei vigente na resolução de conflitos era "o artigo 44, parágrafo 22", uma referência ao calibre da carabina Winchester e do cano das pistolas de repetição. Durante as caças, os rios chegavam a enrubescer, tamanha a quantidade de sangue vinda de aves abatidas e depenadas.
- Acontecia uma hecatombe pelos sertões do Brasil - ressalta Regina. - Os naturalistas, que se dedicavam ao estudo de aves como as garças, ficavam desesperados ao verem-nas dizimadas. Alguns cientistas, ao andar de bonde no Rio, horrorizavam-se por ver, na cabeça das passageiras, as penas de um animal que eles sabiam ser vítima de perseguições.
Material para um estrago como este não faltava. Enquanto as mulheres distraíam-se pondo pássaros inteiros sobre a cabeça, os aristocratas tinham como passatempo - e sinal de status - tirar essas aves do céu. No Centro do Rio pululavam lojas de armas sofisticadas, que prometiam "não deixar o caçador sem caça". Também eram vendidos manuais, instruindo qual a munição adequada para cada animal.
Eles cumpriam os rituais da caça que, a seu ver, os aproximavam da elite europeia; elas usavam a imprensa para exibir, ao resto da pequena high society, suas últimas aquisições.
O jornalista João do Rio, cujos textos eram um termômetro da sociedade da época, captou o espírito das madames em uma de suas crônicas. Nela, narra uma senhora que, ao avistar um fotógrafo, "ria a bom rir" e abriu o leque. No que levou uma bronca do sujeito:
"- A chapa vai sair preta (...) A cabeça curvada, o leque escurecendo o rosto..."
E a madame pediu "outro instantâneo direito" e, para isso, "ficou de pé, numa pose de ave real, sorrindo".
Adriana Maria Martins Pereira fez doutorado em História Social na USP sobre fotografia amadora no Rio no fim do século XIX e início do século XX. Segundo ela, diversas revistas, como a "Fon-fon", funcionavam como colunas sociais na época.
- Até o fim do século XIX, as mulheres não circulavam muito pelo Centro das cidades - lembra. - Mas a inauguração da Avenida Central torna-a um passeio muito feminino. Mas não para qualquer um: nas colunas de "flagrantes das ruas", onde basicamente eram publicadas apenas fotos das madames, todas elas tinham nomes e sobrenomes.
Os chapéus, comprados em lojas como "A Brazileira", no Largo São Francisco, e "Madame Blanche", na Rua Uruguaiana, ficaram ainda maiores no início do século XX.
- Alguns pareciam cones de plumas - compara Adriana. - Eram tão grandes que frequentemente, na revista, não era possível ver o rosto da madame fotografada.
A única função daqueles adereços era decorativa, visto que eles não protegiam suas proprietárias do clima tropical carioca - na verdade, só deixavam-nas mais desconfortáveis.
- Sua função era conferir status e prestígio, não conforto - ressalta a pesquisadora. - E havia um código para usá-los: alguns eram de festa, outros específicos para casadas ou solteiras, alguns para determinada hora do dia, e por aí vai.
Os adeptos de plumas e que tais, porém, enfrentavam crescente oposição na academia. Cientistas com acesso aos corredores da República defendiam a tese de que um país civilizado precisava impor limites para a exploração de sua natureza. Nada diferente, aliás, do que já faziam algumas de nossas referências. Os EUA, por exemplo, inauguraram sua Sociedade Protetora dos Animais em 1883. A Inglaterra, em 1891. E, em 1884, Viena sediou o primeiro Congresso Internacional de Ornitologia.
- Havia uma mobilização que, no Brasil, atraiu até naturalistas estrangeiros - assinala Regina. - Eles definiam a caça das aves como "crimes contra a propriedade futura e contra o país". Os pássaros eram humanizados, considerados generosos, altruístas, amorosos, devotados à prole e à vida conjugal.
Para quem não se comovia com termos científicos ou comparações românticas, havia campanhas para seduzir os caçadores pelo bolso. Em uma época onde o uso de inseticidas ainda era escasso - e as pragas no campo já eram realidades -, defendia-se o emprego de aves para dar cabo ao insetos.
Os naturalistas fizeram experiências para provar sua teoria. Após o exame do estômago de tico-ticos, uma das aves mais perseguidas, concluiu-se que 40 deles, numa área de 30 km², destruiriam 33.600 insetos por semana. Esses "operariozitos", como eram chamados, poderiam acabar com a triste situação da "pátria das nuvens de gafanhotos".
Após tantos argumentos, a luta dos cientistas teve resultado. Em 1934, décadas após os países em que tanto prezava inspirar-se, o Brasil começou a controlar legalmente a exportação de penas. Sete anos depois veio a Lei de Contravenção Penal, proibindo a crueldade contra os animais e pondo as aves sob a tutela do Estado.
A defesa dos animais, no entanto, é uma história de idas e vindas.
- Ainda corremos contra o tempo para proteger os animais silvestres - lembra Regina. - Hoje não se admite tortura, nem mesmo que uma criança mate um pássaro com estilingue, mas a sensibilidade que dedicamos a eles é superficial. Muitas vezes não entendemos que cuidar dos animais é preservá-los em seu habitat, e não, por exemplo, em uma gaiola
Nenhum comentário:
Postar um comentário