Apesar do histórico de tentativas de fraude dos dois últimos anos, a edição 2011 do exame bate recorde no número de inscritos e tem o desafio de consolidá-lo como a principal porta de entrada para o ensino superior
por Rachel Costa / Revista Isto É
Não só os estudantes serão avaliados no próximo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que acontece nos dias 22 e 23 de outubro. Decisiva para o governo federal, esta edição será a chance de o Ministério da Educação (MEC) comprovar sua capacidade de realizar, com sucesso, um exame de abrangência nacional capaz de substituir o vestibular das principais universidades do País. Se tudo correr bem, são boas as chances de consolidação do modelo que tem atraído cada vez mais candidatos e universidades. Do contrário, corre-se o risco de retrocesso, com a perda da adesão de grandes instituições de ensino superior que estão apostando suas cartas no Enem. Desde 2009, quando foi criado o Sistema de Seleção Unificado (Sisu), o exame tornou-se porta de entrada para importantes universidades públicas. Percalços constantes, porém, têm ameaçado a reputação do exame , como o vazamento de conteúdo e o defeito de impressão que obrigou o MEC a reaplicar a prova a parte dos alunos.
Se o passado não é dos melhores, o presente é promissor. Nunca tantas pessoas se inscreveram no exame como neste ano – são cerca de 5,4 milhões de candidatos, quase a população do Estado de Goiás. E espera-se atingir um número recorde de matrículas usando-se o Enem no próximo ano letivo. Para se ter uma ideia, no primeiro semestre deste ano, 83 universidades preencheram mais de 80 mil vagas apenas com a pontuação da prova realizada no ano passado – um aumento de 73% em relação ao primeiro semestre de 2010. Sem contar as instituições que substituíram a primeira etapa do vestibular pela nota do exame ou que o aceitam como pontuação adicional.
Diante disso, torna-se premente para o governo federal pôr um ponto-final nos problemas, atendendo às expectativas tanto dos estudantes quanto das universidades. O tema traz preocupações, inclusive, para o Palácio do Planalto. Na semana passada, o ministro da Educação, Fernando Haddad, foi chamado pela presidente Dilma que lhe disse para não se manifestar sobre o tema até a divulgação dos gabaritos. A presidente quer evitar que eventuais declarações de Haddad sirvam de munição no caso de algo dar errado. O ministro abordará o tema apenas na quinta-feira 20, em cadeia nacional de rádio e tevê. “Realizar o Enem é quase uma operação de guerra e dificilmente uma seleção desse tamanho não terá algum problema”, compara Antônia Vitória Soares Aranha, pró-reitora de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “A questão é que sejam percalços solucionáveis e que não ameacem a legitimidade do processo.” O próprio Haddad é um dos maiores interessados na realização de um Enem tranquilo. O ministro não só bancou o modelo como tem nele uma plataforma para a disputa pela Prefeitura de São Paulo em 2012. Mais uma sabatina relacionada a problemas na prova certamente poderá atrapalhar sua futura campanha.
Por isso, não se pode errar novamente. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão que coordena a realização do exame, o passado serviu de lição e a promessa é de que tudo ocorrerá bem nas 123 mil salas de aula, espalhadas em 1,6 mil cidades onde o teste será aplicado. Para isso, o Inep investiu em duas parcerias que prometem pôr fim à dor de cabeça causada por ter de organizar, praticamente sozinho, um exame das proporções do Enem. Nesta edição, o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e as próprias instituições federais de ensino superior foram recrutados para ajudar. “Demandamos ao Inmetro a observação do processo de produção gráfica, manuseio e distribuição das provas”, diz a presidente do Inep, Malvina Tuttman. Esse primeiro contato pode evoluir para a criação de uma espécie de certificação do órgão para as edições futuras. Já as universidades atuarão como observadoras durante a aplicação das provas, sugerindo mudanças nos procedimentos de segurança a partir de sua expertise na realização de vestibulares.
Quem defende o exame acredita que torná-lo mais seguro é apenas mais um passo na caminhada iniciada em 1998, com a sua criação – àquela época, uma espécie de autoavaliação dos alunos ao fim da educação básica. “Temos ainda problemas, mas isso não pode inviabilizar esse interessante instrumento para a democratização do ensino superior que é o Enem”, avalia Marilza Regattieri, oficial de programas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil. Em 1998 o Enem era tratado de forma marginal pelos estudantes do ensino médio, mas hoje a situação é outra. A adesão em massa das maiores universidades do País, o que parecia improvável há alguns anos, tornou-o potencialmente interessante para quem pretende cursar o ensino superior. Decisões como a da UFRJ, que neste ano extinguiu o vestibular para fazer a seleção apenas pelo Enem, dão ainda mais força ao exame. Outras instituições, como a UFMG e a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), substituíram a primeira etapa pela nota na prova. Até mesmo quem vinha se mostrando irredutível ao uso do Enem, como a Universidade de São Paulo (USP), parece dar sinais de arrefecimento. Por meio de sua assessoria, a instituição informou que, para o próximo ano, deve analisar a possibilidade de uso da nota.
Há quem acuse, nos bastidores, que a adesão das grandes universidades não foi consensual. Teria havido pressão por parte do Ministério da Educação, que forçou as instituições sob pena de restrição de recursos. Na versão oficial das instituições, porém, essa suposta ameaça é amenizada. “O MEC sinalizou a importância do Enem, mas não houve imposição. Tanto que optamos, por enquanto, por manter o vestibular”, diz Maria Adélia Pinhal de Carlos, presidente da Comissão Permanente de Seleção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A instituição gaúcha usa o Enem apenas como parte da composição final da nota, caso o aluno faça essa opção.
Não é segredo, portanto, que a adesão das universidades vem acompanhada por um grande interesse delas próprias. A moeda de troca em questão é ter mais voz nos processos decisórios do Enem – até então muito restritos ao Inep. “Se a gente acredita que esse sistema é melhor, temos que aderir a ele até mesmo para tentar mudá-lo”, sintetiza a pró-reitora de graduação da UFRJ, Ângela Rocha dos Santos. “Queremos participar.” Anseio que pode ser bom para todos. Para as instituições de ensino superior porque poderão garantir a entrada de candidatos mais próximos ao perfil por elas desejado. Para o MEC por poder aproveitar a expertise dessas universidades na realização de processos seletivos – não só para ajudar na segurança do exame, como também na definição de conteúdos. “Pela primeira vez as universidades estão sendo chamadas para contribuir com o banco nacional de itens, uma espécie de arquivo com questões para as próximas edições do exame”, diz Luiz Antônio Prazeres, consultor em processos de avaliação educacional e professor do Centro Pedagógico da UFMG. “Esse é um caminho interessante e sem volta.”
Além da negociação política, há os benefícios práticos de se aderir ao Enem. Um deles, a redução de custos com o vestibular. Outro ponto positivo é tornar as universidades e seus cursos conhecidos nacionalmente. Com a unificação do processo de seleção, instaurada pelo Sisu, se favorece a mobilidade dos alunos. Só no último ano, mais de 11 mil estudantes optaram por universidades de outros Estados, o que representou 15% das matriculas via Sisu. O efeito disso é que os próprios coordenadores de curso têm pedido para incluir algumas graduações no sistema. É o caso de oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “O interesse é atrair alunos de várias regiões do País”, diz Armando Cavalcanti, presidente da Comissão de Vestibulares da UFPE. Oceanografia é o único curso da instituição no Sisu. Para os demais, o Enem substitui somente a primeira etapa do vestibular.
A concorrência nacional também pode representar a garantia de sala cheia para determinados cursos nos quais há dificuldade no preenchimento das cadeiras disponíveis. Foi o caso da graduação em ciências da matemática e da Terra da UFRJ. Criado em 2009, o curso nunca havia tido todas as suas vagas preenchidas. Sem contar os benefícios para os candidatos, que, com apenas uma prova, podem tentar vagas em diversas universidades. Isso simplifica o processo de ingresso no ensino superior, amenizando a tensão de uma agenda repleta de vestibulares e, muitas vezes, a necessidade de se deslocar para outras cidades para participar de processos seletivos.
Embora muitos fatores apontem para a consolidação do Enem como principal processo de seleção universitária no Brasil, pairam ainda dúvidas sobre suas potencialidades. Em especial a respeito de sua tão aclamada capacidade de democratizar o acesso ao ensino superior no País. É fato, a mobilidade dos estudantes tem se tornado realidade, mas até que ponto ela tem gerado inclusão de alunos de classes socioeconômicas mais baixas? Como o tempo é pouco, faltam ainda dados conclusivos, mas os especialistas divergem em relação à capacidade democratizante do Enem. “Nosso vestibular fazia com que um grande número de estudantes se autoexcluísse, ou seja, eles ou não se inscreviam ou não compareciam à prova por achar que aquilo não era para eles”, diz Ângela Rocha dos Santos, da UFRJ. “O Enem, de certa forma, amplia esse espectro de candidatos que fazem a prova.” Discorda de Ângela o professor da USP Ocimar Alavarse. Para ele, embora se discurse muito sobre a democratização, nada mudou. “O exame não tem aumentado a probabilidade de ingresso de alunos de nível socioeconômico mais baixo em cursos concorridos”, alerta.
Também tem recebido nota baixa o excesso de questões do teste. Em 2009, quando foi reestruturado para se tornar uma ferramenta de seleção para o ensino superior, o Enem foi expandido. Aumentaram-se os dias de prova (de um para dois), e as questões subiram de 63 para 180. “Em quantidade de dias, a carga do Enem não me parece excessiva, mas ele se torna cansativo porque os enunciados são mais densos e mais longos quando comparados aos dos outros processos de seleção”, diz Alessandra Venturi, coordenadora pedagógica do cursinho da Poli, em São Paulo. Para o professor da USP Nilson José Machado, consultor na elaboração do exame de 1998 a 2002, há um mal-entendido, por parte da equipe atual de elaboração das provas, sobre a proposta original de contextualizar melhor as perguntas. “Quem faz as questões parece entender que contexto é com muito texto, por isso as provas estão muito longas e cansativas”, ironiza. Há até mesmo quem já proponha algumas alterações que poderiam ser feitas, como é o caso de Alberto Nascimento, coordenador do Vestibular Anglo, também em São Paulo. “A prova é boa, mas ela poderia ser melhorada. Por exemplo, por que são 45 e não 40 questões por área?”, avalia.
É preciso também que o MEC se decida, finalmente, sobre as funções do exame. “Ele está sendo usado como vestibular, como termômetro para medir o desempenho da escola e para certificar os alunos no ensino médio”, diz Remi Castioni, professor da Faculdade de Educação da UnB. “Devíamos limpar esse excesso de funções e focá-lo como instrumento de acesso ao ensino superior.” O que se vê é que, superada a prova de fogo do próximo fim de semana, restará ainda ao MEC o dever de casa de investir mais no aperfeiçoamento do Enem, se a pretensão é mesmo a de que ele se consolide como o principal caminho para o ensino superior.
REVISTA ISTO É / 19/10/2011
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