sábado, 3 de novembro de 2012

Crônica do Dia - Use e jogue fora - Walcyr Carrasco

Minha ficha caiu há alguns anos, na época do videocassete. Quando o meu quebrou, enviei a um técnico para consertar. Custou 25% do valor de um zero. Alguns meses depois, voltou a quebrar. Mais 25%. Na terceira vez, joguei o aparelho fora e comprei um novo. Não compensava continuar arrumando. Desde então, percebi que as coisas não são feitas para durar. Tanto que me referi à “época do videocassete”. Nem faz tanto tempo assim. Hoje impera o DVD. Até a próxima invenção.

Tudo fica defasado tão rapidamente que até assusto. Meu celular tem dois anos e é velho. Já surgiram dois novos modelos, com uma infinidade de recursos que eu não saberia usar. Com exceção de crianças e adolescentes, antenadíssimos, a maior parte das pessoas também não tem ideia de como usar todo o aparato tecnológico. Mas trocam de celular. Ou tablet. Sentem-se antiquados sem o novo modelo. Tive um freezer que durou uns 20 anos. Os novos aparelhos quebram num tempo relativamente curto. Já mandei consertar minha máquina de lavar roupa várias vezes. Chega boa. Algum tempo depois estraga. Estou prestes a desembolsar a grana por uma nova.

Também mudo de computador com frequência. É meu instrumento de trabalho. São tantos os programas e possibilidades que fico cada vez mais confuso. Começo a ter saudades dos velhos modelos, da cibernética movida a lenha, mais fáceis de lidar.

Antes as coisas nos pertenciam. Agora, paga-se uma tarifa pelo tempo em que as usamos. Às vezes, explicitamente, como no caso do telefone. Houve um tempo em que se comprava a linha. Era uma propriedade. Virou um pagamento mensal. Em outros casos, a ideia de aluguel é mais sutil: parece que o produto é feito para quebrar em determinado prazo. Muitas vezes, a pessoa mal acaba de pagar e já tem de comprar um novo. Então, está sempre pagando por aquilo que usa.

Fui do tempo em que o Orkut era o máximo. Atualmente, é considerado um tanto brega. Os antenados preferem o Facebook e o Twitter. O MSN já não faz tanto sucesso. O Instagram vem ganhando força. Mas tudo pode mudar de um instante para outro. Basta um sujeito lá no Vale do Silício inventar um novo programa e cria-se um hábito diferente.
Sou do tempo em que se consertavam sapatos. Se furava, o sapateiro da esquina botava meia-sola. O hábito acabou. O sapato, o tênis são descartáveis. Se a camisa rasga, quem manda consertar?

A ideia do use e jogue fora contaminou a forma como vivemos. Antes, emprego podia ser para toda a vida. Existiu até uma lei, isso sim há muito tempo, em que os trabalhadores, depois de anos de trabalho numa empresa, adquiriam estabilidade. Não podiam ser demitidos. A palavra mais falada na administração atual é “renovar”. O que significa exatamente? Que entra um novo executivo, demite um bando de gente e bota novos funcionários no lugar. Quando o chutado é um executivo importante, o coitado ainda tem de engolir um comunicado dizendo que foi “buscar novos desafios”. Quem tem capacidade de “renovação” é bem-visto no mercado. Mas e o fator humano? Pessoas são jogadas fora como um liquidificador fora de moda.

Eu me pergunto o que aconteceu com meus amigos do Orkut. A gente se falava sempre. Chegamos a organizar em minha casa um jantar só do grupo que gostava de conversar entre si. Havia um bolo enfeitado por morcegos, já que meu apelido era Morcegão por sempre entrar à noite. Confesso: eu perdi as senhas de meus orkuts. Nem entrar consigo. Também descartei as pessoas, admito. Falo no Facebook e no Twitter. Sinto que sensação do instantâneo não é exclusiva das relações surgidas pela internet. Vejo isso muito nas montagens de peças de teatro e nas novelas que faço. Durante o trabalho, faço muitos amigos. Jantamos juntos, vamos a festas, nos vemos sempre. Trocamos confidências, até as mais escabrosas. Termina a temporada ou acabam as gravações, nos despedimos com um jantar repleto de promessas.

– Olha aqui, não some!
– Eu te ligo!

A relação se esfiapa. Não acontece só no meio artístico. Nas empresas é igual. Se alguém sai de um emprego, ainda vê os antigos colegas por algum tempo. Depois, adeus!
Use e jogue fora se tornou o lema da atualidade.

Tenho simpatia pelos colecionadores de vinil. Acreditam que algo deve ficar. É preciso não se deixar levar pela maré. Diante dos novos aparelhos, é uma questão de economia. Nas relações pessoais, trata-se de sabedoria. Na vida, há muita coisa que merece permanecer.

Revista Época

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