quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Você já está sabendo ? - Cinco centarrus ... dez centarrus ...


Um dos mais populares programas encontrados pelos que zapeiam os canais da TV brasileira em busca de diversão aos finais de semana é, sem dúvida, o Zorra Total. Veiculado na noite de sábado pela Rede Globo de Televisão, a atração tem, inegavelmente, no mínimo um grande mérito: o de revelar e oferecer oportunidade de atuação profissional para novos talentos. E, dependendo do caso, consagrá-los como grandes humoristas.
É bem verdade que, precedendo Zorra Total, o humor brasileiro ganhou popularidade também por meio de programas televisivos com formatos e concepções diversos. A fórmula atual do humorístico junta diferentes tipos humanos, os travestem com roupagem caricatural e os colocam num vagão de metrô, pilotado por uma caricatural Dilma Rousseff, interpretada pela atriz Fabiana Carla. A atmosfera vai do popularesco clima de “feira livre” ao “grotesco”, categoria estética pautada pela aberração, justificando, assim, o nome do programa.
Antes, porém, no universo televisivo global, tivemos Chico City, Chico Total, Viva o Gordo, TV Pirata, passando pela A Grande Família, Casseta e Planeta, além de uma diversidade de séries, entre as quais se incluem Entre tapas e beijos e Ó pai ó. Entretanto, independentemente do gosto pessoal e da avaliação comparativa que se faça de Zorra Total com outros humorísticos, não há como negar: milhões de brasileiros têm dado muitas gargalhadas, asseguradas por alguns de seus personagens já aclamados pelo gosto popular, como a Valéria e a Adelaide, ambos encarnados pelo talentoso ator Rodrigo Sant’Anna.
 
Não há também como negar o fato de, assim como Grande Otelo, Tião Macalé e Mussum, Rodrigo Sant´Anna, de 32 anos, já ter garantido seu lugar na galeria de artistas afrodescendentes filhos das classes populares e com vocação para extrair doses maciças de riso do povo de seu país. A lista de grandes cômicos afro-brasileiros inclui, ainda, Hélio de La Penna, oriundo de uma escola de humor mais sofisticada, é bem verdade, mas nem por isso, menos talentoso, irreverente e pouco afeito aos princípios do politicamente correto, em seu ofício.
E se o talento de Rodrigo Sant´Anna – nascido e criado na comunidade do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na zona norte carioca – reverbera entre a população, é, de certa forma, esta “identificação”, esta “empatia” com o criador da personagem Adelaide que vem sendo considerada por alguns, circunstancialmente “problemática”, digamos assim. Uma questão que, a princípio, tinha as redes sociais como lugar de debate, migrou para os fóruns da Justiça do Brasil: até que ponto a veiculação da imagem de uma figura como a de Adelaide estimula os estereótipos e práticas racistas no seio da sociedade? A personagem, na opinião de alguns segmentos do público, ativistas dos movimentos negros e formadores de opinião, parece ter sido modelada na conhecida argamassa do preconceito racial, como dizem. Entretanto, esta avaliação está longe de ser consensual. Para muita gente, buscar preconceito racial em Adelaide é pura perda de tempo, entre outras inutilidades. Há questões mais graves na pauta dos movimentos negros com as quais militantes e parcelas do público deveriam se preocupar, contra-argumenta-se. Tem ainda os que entraram na discussão, saindo em defesa do “historicamente sagrado” direito à liberdade artística. Uma parte destes, por sua vez, imputa, inclusive, às audiências de todo o Brasil, o direito de mudar de canal, se a Adelaide lhes incomodar.

CRIADOR E CRIATURA
O ATOR RODRIGO SANT´ANNA FOI DIRETO AO ASSUNTO:
“Nasci e fui criado no Morro dos Macacos até os 18 anos. Na sequência, parti em direção ao subúrbio carioca, onde estive até meus 24 anos. Meus familiares, assim como eu, ou são afrodescendentes, como é o caso da minha avó Adélia, que serviu de inspiração para a Adelaide, ou apresentam traços da raça. Logo, meus personagens vêm de tudo que vivi e convivi, portanto, não vejo como uma ofensa utilizar pessoas que fizeram parte da minha história para ajudar a compor meus personagens, mas sim como uma homenagem à ‘minha gente’, pessoas das quais me orgulho pela história de vida, independentemente da cor de pele, do nariz exagerado, do português errado ou da falta de dente, todos requisitos preenchidos pela Adélia, o personagem da vida real em quem me inspirei.
O humor foi a maneira que encontrei de transgredir as minhas tragédias sem esquecer da minha história. Se, a partir de agora, contar a minha história através da minha arte é denegrir a imagem de um determinado grupo, eu realmente me pergunto de onde vem o preconceito, porque meus personagens serão sim: afrodescendentes, pobres, transexuais.
Nas minhas composições, ao contrário do que as perguntas sugerem, eu procuro não ter preconceitos. Mas, talvez, se eu tivesse uma avó loira de olhos azuis, não estivesse respondendo a perguntas tão hostis e preconceituosas.”

QUEM É ADELAIDE?
Para quem desconhece a personagem, trata-se de uma gaiata que saltou, mesmo sem ter sido avisada, do vagão de trem de metrô em circulação no mundo da ficção cômica de Zorra Total, para a polêmica – esta bastante real – na internet e também na Justiça. Adelaide é uma senhora desdentada, com a pele acentuadamente enegrecida à base de tinta e feições negroides destacadas por um nariz caricaturalmente largo. No que se refere ao conteúdo de sua fala, durante os minutos dos quais a personagem usufrui para, dentro do metrô, promover a mais “descarada” das mendicâncias, Adelaide o faz com um português cheio de erros. Consumista de gadgets, como o tablet de última geração que carrega consigo, ela se desvia do perfil do pedinte tradicional e se insere, subliminarmente, no mundo da trambicagem. Provoca indignação e questionamento dos outros passageiros quando, “pobre, pobre de marré de si”, tira da bolsa seu tablet e mostra-se em sintonia com o admirável mundo novo da tecnologia digital. Ou quando compartilha, com os demais usuários do metrô, a informação de que seu marido alcoólatra consome bebidas finas, como whisky de boa qualidade, não muito usuais no mundo dos mais desfavorecidos. Muito menos dos mendigos, é claro!

O MAU HUMOR E CRÍTICA DA MILITÂNCIA NEGRA
Mas nem toda a graça provocada pela personagem e o endosso dos que saíram em sua defesa não conseguiram desfazer nem a cara feia, nem as providências jurídicas tomadas pela militância negra. Os cyberativistas postaram na rede acusações frontais de racismo aos criadores de Adelaide – entre eles, Rodrigo Sant´Anna, que lhe cede o corpo, a alma e informa ter se inspirado na avó para lhe dar vida. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR) entrou com representação na Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), pedindo que se avaliasse a eventual suspensão da veiculação do quadro em que Adelaide rouba a cena.
Já o advogado Humberto Adami, até o final do fechamento desta edição, preparava a petição por meio da qual pretende entrar com ação coletiva na Justiça pedindo reparação de danos morais.
“Calma gente”, avisou o jornalista Anselmo Góis em nota, publicada em sua coluna, no jornal O Globo, na edição de quatro de setembro. Nela, Góis informava aos leitores mais um procedimento jurídico tomado contra a Adelaide. A nota dizia que a promotora Cristiane Monnerat – a mesma que cuidou do suposto estupro na última edição do Big Brother Brasil, instaurou procedimento sobre a personagem Adelaide, em Zorra Total, interpretada por Rodrigo Sant´Anna. Investiga queixas de alguns telespectadores de eventual procedimento racista da personagem.
Depois de acompanhar a postagem de críticas à personagem em blogs, redes sociais e site de ONGs, como o Portal Geledés, RAÇA BRASIL foi atrás dos envolvidos diretos: o ator que vive a negra Adelaide e o diretor do programa, Maurício Sherman, que não respondeu à revista até o fechamento dessa edição.

“Esse personagem Adelaide, do Zorra Total, já ultrapassou o limite do aceitável. Não há outros personagens negros femininos no programa, e a caricatura só reforça o preconceito contra a mulher negra, pobre e sem trabalho.Não há escusas para a Rede Globo, nem para o silêncio de grande parte do Movimento Negro brasileiro, e das instituições ligadas ao enfrentamento do racismo no Brasil. Essas imagens levadas ao plano internacional envergonhariam qualquer nacional.
A representação ao Ministério Público, acompanhada de eficiente ação de reparação de dano coletivo, nos moldes do caso Tiririca & Sony, já passou da hora. Não há como se fugir ao debate da ‘liberdade de expressão, censura e liberdade artística’, que por certo será levantado, mas sim impor a reparação do dano coletivo, com os rigores de expressiva jurisprudência nacional a respeito. A quem o personagem faz rir? Àqueles que não se comovem com o sofrimento e a luta das mulheres negras brasileiras. E que ainda lhe imputam a responsabilidade pela situação de descuido.
Única personagem negra do programa, a Rede Globo sabe perfeitamente onde (sic) quer chegar, tanto que, no mesmo quadro, incluiu uma mulher índia, que fica sorrindo o tempo todo, de forma infantilizada, reforçando também o preconceito contra indígenas. Creio que a Globo se prepara para o debate, já sabendo o que virá por aí. Na verdade, todo o Capítulo VI do Estatuto da Igualdade Racial, a lei 12.288, abaixo reproduzido, vem sendo desrespeitado. (...) nem cobrado, por quem devia estar cobrando, de forma institucional.
Penso que as entidades de mulheres, negras em especial, (mas não apenas essas), possam promover uma representação ao MP, e a ação de reparação de dano coletivo, cujo limites já ultrapassaram o aceitável.”
(Artigo postado pelo advogado Humberto Adami em seu blog)

A REPRESENTAÇÃO E A PRESENÇA DOS NEGROS NOS MEIOS AUDIOVISUAIS
Numa das visitas feitas ao Brasil, o ex-premier da Itália Silvio Berlusconi, depois de assistir televisão no seu quarto de hotel, foi passear pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Estarrecido, comentaria depois do passeio: “A televisão de vocês parece a de um país nórdico”, dizia ele, um dos maiores empresários de comunicação da Europa, referindo-se à diferença entre a cor da população local e a figura de apresentadores, atores, jornalistas, entre outros profissionais, que frequentam há décadas, com preferência de escolha por parte das emissoras, a nossa telinha. Entretanto, o fato é que o sistema televisivo do país vem recebendo críticas muito mais positivas do que a feita pelo italiano. A televisão brasileira – sobretudo, a Rede Globo de Televisão – é há muito elogiada (internacionalmente, inclusive) quando o assunto é alta qualidade e apuro de suas produções. As telenovelas globais são um exemplo do êxito de público e crítica, até mesmo quando comercializadas fora de nossas fronteiras.
Entretanto, na avaliação de muitos, esta mesma TV tão avançada tecnologicamente, e que reúne talentos humanos de alto calibre, no que diz respeito ao conteúdo de suas mensagens relacionadas a minorias, pode ser considerada “semiologicamente bastante atrasada”. Se formos tomar a questão da representação de grupos e figuras humanas na telinha como exemplo, fica mais fácil entender este tipo de crítica, endossada por acadêmicos, inclusive. Tomando como parâmetro a trajetória da TV brasileira, para muitos especialistas da área faz sentido responsabilizar a emissora de Zorra Total, entre outros canais, por continuar a apostar em personagens negros que acabam por reforçar estereótipos pra lá de questionados.
Refratária a democratizar o acesso de diferentes grupos étnicos a seus quadros profissionais , a televisão brasileira também reedita em figuras como Adelaide a imagem desdentada de Tião Macalé, veiculada durante anos. Daí o questionamento trazido pela negra do humorístico: nossas emissoras não estariam alheias a uma luta histórica dos movimentos sociais por uma identificação mais positiva – e menos grotesca, diriam os radicais – com personagens de filmes, minisséries e outros programas televisivos, a ser feita por uma parcela da população que já é numericamente majoritária?

COM A PALAVRA, A ATRIZ LÉA GARCIA:
“Eu não assisto ao programa, mas conheço a personagem. Minha empregada assiste e gosta.
Não há dúvidas de que se trata de um programa de péssima qualidade, de mau gosto e que ironiza a mulher ‘gostosa’, o homem traído, o índio, o gay, entre outros tipos e grupos humanos. Particularmente, não gosto deste tipo de humor, prefiro o humor mais inteligente. Nós tínhamos, exibidos pela mesma emissora, Viva o Gordo, TV Pirata, Chico Anísio, que eram muito mais interessantes, com um humor menos pastelão, menos bobo. Aliás, de um tempo para cá vem piorando. Mas na vida há gosto para tudo.
Entretanto, não fiquei, em absoluto, assustada com o visual da personagem, já que o ator é negro. Portanto, ele acentuar a cor da pele e o tamanho do nariz, para mim, não significa um problema, isto não me chocou. Por outro lado, quando se é ator, tem-se a liberdade de interpretar qualquer papel. O Romeu Evaristo, por exemplo, faz personagens muito questionáveis e ninguém fala nada!
Mas tem outro aspecto nesta discussão que acho que vale a pena pontuar: a nossa comunidade negra se ressente, por vezes, demais de coisas desimportantes. Temos coisas muito, muito mais relevantes e urgentes para as quais voltar a nossa atenção. Muito mais do que para uma personagem de Zorra Total. O assassinato e a exclusão social de jovens negros, crianças negras, isso sim, é digno de nossa discussão urgente!”

“Faz sentido, a discussão. No meu cotidiano de trabalho, que é a fotografia, esta é uma expressão de arte que tem a capacidade de intervir no tempo, congelar o tempo. E isso significa que aquele momento será eterno. Já disseram que uma imagem vale mais do que mil palavras. E nós sabemos que no processo de veiculação e perpetuação do racismo como ideologia social, a imagem é muito importante. Acho que a Adelaide está situada neste contexto. Acredito que haja várias Adelaides espalhadas pelo país, mas que não aparecem na tela da TV. A personagem está ligada a símbolos em circulação em nossa sociedade que tomam o negro como uma pessoa que chegou ao Brasil na condição de escravo despossuído de sua humanidade, vista como uma peça, uma coisa. Imagem esta que está perpetuada no inconsciente das pessoas, e que é reproduzida em várias atividades e situações. Não é que o negro não queira se ver como a Adelaide, mas o que ocorre é que a televisão quer mostrar à população brasileira que o negro é uma Adelaide. Por isso, a gente questiona.
Januário Garcia é fotógrafo e militante negro, pioneiro por levar o processo de discussão da questão racial para dentro das grandes agências de publicidade e propaganda já a partir dos anos 70.
“Não faz sentido nenhum, porque não acho que seja uma personagem que queira agredir ninguém, não foi criada para isso. É uma sátira, foi feita só para divertir as pessoas, não para agredir ninguém, muito menos a comunidade. Não tem relação, a meu ver, com racismo. E há outra questão: o ator Rodrigo Sant`Anna não é branco, portanto, como é possível ele se predispor a fazer uma coisa destas com a própria raiz, com a avó, que deve tê-lo criado? Não faz sentido nenhum uma personagem interpretada por ele ter este tipo de objetivo. Talvez as pessoas que estejam levantando esta questão sejam mais preconceituosas do que o ator em si. Parece que gostam de mexer na ferida, não colocam as coisas para frente. Não levantam polêmica em cima de discriminações escancaradas. Acho melhor os afro-brasileiros se voltarem para coisas mais graves que estão acontecendo na sociedade, como perseguição e o preconceito enormes contra as religiões de matriz africana em pleno século 21.”
Juraci de Paula Barbosa tem 50 anos. Bacharel em música, assiste ao quadro do programa regularmente.
Eu gosto dos dois personagens interpretados pelo ator, a Valéria e a Adelaide. Não acho que a Adelaide esteja debochando de nenhuma classe social, de nenhuma raça. Ela quer mostrar que os pobres têm direitos iguais, inclusive de consumo de tecnologia, e isso acontece quando ela tira o tablet da bolsa ou quando faz referência à bebida do marido. Ou seja, contesta também esta história de que pobre só bebe cachaça. Quanto à aparência da personagem, acho que faz sentido, pois existem até hoje pessoas nessas condições. Quem diz que não existe, que é preconceito, está querendo tapar o sol com a peneira. Há negros desdentados, brancos desdentados, pessoas de todos os grupos falando errado. Trata-se de um alerta feito, de forma cômica, pela Adelaide. E o fato de ela sacar o tablet produz uma situação que, ao causar riso, contrabalança com a agressividade da imagem dela. No meu modo de ver, é uma forma divertida de amenizar os traços, de fato, muito agressivos de sua fisionomia.”
Dolores Pires Augusto é médica pediatra e assiste ao programa regularmente.
“Vejo algumas semelhanças entre o quadro de Zorra Total e o da personagem da música Veja o cabelo dela, de autoria do hoje deputado federal Tiririca. Ele argumentou que fez a música para a mulher dele, quando acusado de racismo na letra na qual se referia a uma mulher que só tinha dois dentinhos, o cabelo parecia Bombril de arear panela e fedia igual a gambá. Num determinado momento, organizações de mulheres negras se engajaram no processo, mostrando-se ofendidas e esta não seria a primeira vez, já que existem várias músicas tratando pejorativamente a imagem da mulher negra. Ambos os casos fortalecem os mecanismos de representação da mulher negra, enfraquecendo, com este tipo de discriminação, o racismo como crime. Por outro lado, não acho ruim o Rodrigo Sant´Anna interpretar uma mulher negra. Longe disso. O que acontece é a forma que ele a representa. Também acredito que não foi por causa da avó dele que Adelaide foi criada. Se o fosse, ele não o faria: pois quem quer uma avó fragilizada, analfabeta? Ninguém! Não acho que haja nada de ‘especial’ nesses personagens, a não ser que trazem elementos importantes da discriminação, da maneira de a sociedade pensar determinados grupos.
Lúcia Xavier é assistente social, ativista e diretora da ONG Criola.




Revista Raça Brasil

Sandra Almada (autora dessa matéria) é jornalista, mestre em comunicação e cultura pela ECO/UFRJ e professora de teorias da comunicação

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