quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Resenhando - A mais genial das ausências

A MAIS GENIAL DAS AUSÊNCIAS


Um historiador francês reconstitui a trajet6ria de uma intrigante obra perdida: a peça em que Shakespeare teria feito sua versão de uma narrativa de Cervantes

A primeira pane de Dom Quixote foi publicada em 1605. Dois anos depois, em uma festa popular no Peru colonial, já aparecia um cavaleiro caracterizado como o herói miserável e delirante criado pelo espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). O livro e seu protagonista muito cedo alcançaram uma popularidade prodigiosa, que não se limitou aos falantes do castelhano. Em 1628, uma peça francesa colocava em cena Cardenío, protagonista de uma das várias historias que Cervantes teceu em seu livro, paralelamente às peripécias do Cavaleiro da Triste Figura. Na Inglaterra, o mesmo Cardenio já aparecera como título de uma peça teatral encenada pela Companhia King’s Men em duas ocasiões festivas na corte do rei Jaime I, entre 1612 e 1613. O texto dessa provável comédia perdeu-se, o que por si só não seria circunstância excepcional: um dos levantamentos mais otimistas sugere que apenas um terço das peças apresentadas nos palcos ingleses de 1565 a 1642 (quando os teatros foram fechados)  teve edição impressa. Cardenio, que estaria entre os dois terços que nunca ganharam as páginas de um livro, só tem relevância porque foi atribuída ao eminente autor titular dos King’s Men: William ShaIcespeare (1564-1616). A história do provável cruzamento dos dois gênios maiores das línguas espanhola e inglesa – que é também a história de uma ausência, de uma gigantesca lacuna literária – é reconstituída pelo estudioso francês Roger Chartier,professor do College de France, em Canlenio entre Cervallles  e Slulkespeare (tradução de Edmir Missio; Civilização Brasileira; 294 páginas; 39,90 reais).

O historiador francês faz um levantamento exaustivo
e minudente de todas as circunstâncias que cercam o texto perdido.Nas relações de peças apresentadas na corte em que aparece’Cardenio, não se informa o nome do autor. É só quarenta anos depois, em 1653, numa lista de livros registrados por um editor, que a peça é atribuída a Shakespeare e John Fletcher,dupla que também colaborou em Os Dois Nobres Parentes e Henrique VIIL O título permite concluir com segurança que o entrecho vem de Dom Quixole, cuja primeira tradução em inglês fora publicada em 1612. Cardenio é. um cavaleiro ensandecido por um amor frustrado que certo dia cruza com Dom Quixote, o fidalgo que enlouqueceu de tanto ler romances de cavalaria.A descabelada história de Cardenio e de sua amada Lucinda comporta elementos que Shakespeare privilegiou nas comédias: traição, casais trocados, donzelas travestidas  de homem. A história, aliás, foi
adaptada para o palco também na Espanha e na França com a diferença de que os textos dessas versões dramáticas sobreviveram  até nossos dias.   mistério de Cardenio complica-se com a entrada em cena, no século XVIII, do dramaturgo Lewis Theobald. Em 1727, ele apresenta um texto intitulado Double Falsehood (Dupla Falsidade). O enredo é basicamente o mesmo criado por Cervantes, embora o nome dos personagens tenha sido trocado – Cardenio toma-se Julio. Theobald dizia que a peça fora adaptada por ele a partir de manuscritos utilizados nos teatros de Londres lá pelos anos 1660 – e que o texto desses manuscritos seria originalmente de Shakespeare. Na edição que ele mesmo fez das obras completas do bardo, Theobald não incluiu nem Double Falsehood nem Cardenio. E ele nunca apresentou os tais manuscritos  reencontrados aos céticos que duvidavam da autoria shakespeariana. Fraude? Talvez. Roger Chartier tende a acreditar, no entanto, que Theobald se baseou de fato em um manuscrito reencontrado.  Mesmo que o texto anterior tenha existido, porém, não há como saber quanto desse original terá sido preservado na adaptação de Theobald. E nem há como afirmar que Shakespeare tenha sido um de seus autores.
No entanto, o nome “Shakespeare” sempre aparece no cartaz das várias montagens, releituras e readaptações que a peça de Theobald vem tendo no palco contemporâneo. De forma ainda mais controversa, em 2010, Double Falsehood foi incorporado à prestigiosa coleção de,obras de Shakespeare publicada pela editora Arden. Embora o prefácio do livro busque se mostrar cauteloso quanto à atribuição de autoria, na capa não constam os nomes de Theobald ou Fletcher – apenas o de William Shakespeare. Chartier mostra-se reticente com essa temeridade editorial, que mereceria ser denunciada em termos mais francos como um lance do mais baixo sensacionalismo comercial.
A atribuição tardia de Cardenio a Shakespeare pode ter sido um equívoco. O autor de Hamlet talvez nem sequer tenha tomado contato com Dom Quixote. Mas a peça perdida sempre alimentará especulações de acadêmicos e especialistas. Reconhecimento tácito de um gigante literário a seu par em um país rival, Cardenio é a obra dos sonhos de todo leitor.

REvista Veja

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