Os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil, escreveu um dia Caetano Veloso. É esse prazer de correr os dedos pelas prateleiras empoeiradas, driblando as traças, que talvez explique a sobrevivência de uma instituição secular na cidade: os sebos. Lugares como a Livraria São José, inaugurada há 73 anos, e que hoje funciona na Rua Primeiro de Março, no Centro, agonizam mas não morrem, oferecendo ao público o derradeiro contato físico com o livro num mundo que insiste em transformar as velhas livrarias em estantes digitais.
Na região da Praça Tiradentes, o corredor dos sebos, livreiros tradicionais do Centro contam que, só no ano passado, nove entregaram os pontos. Nenhum novo abriu as portas por lá. Alguns migraram para o portal Estante Virtual, que reúne na web acervos de todo o Brasil. Os livros digitais e o comércio eletrônico são apontados como os vilões por quem vê as vendas minguando. Nessa batalha inglória, quem menos reclama são os comerciantes que apostam num novo tipo de loja, os “sebos limpinhos”, que tentam atrair e prender a clientela oferecendo um ambiente agradável, com outros atrativos, como já fazem as megastores. Sem perder a personalidade.
A alternativa dos ‘sebos limpinhos’
O Letra Viva, na Rua Luís de Camões, atrás da Praça Tiradentes, é atualmente uma ampla e charmosa livraria de usados — e também de vinis — decorada com peças e móveis antigos e que tem um bistrô na entrada. A loja tem quatro anos, e é filial de uma outra, com dez anos, na mesma rua e com aspecto tradicional, voltada para as publicações técnicas:
— Há quatro anos, quando percebi a ameaça do livro digital e da Estante Virtual, concluí que tinha que fazer algo diferente. Resolvi apostar na mudança para atrair o público fiel e também o novo e não deixar que o Centro ficasse sem sebo, que é uma tradição — afirma o livreiro Luiz Barreto, dono da Letra Viva, que encontrou sua vocação, aos 17 anos, quando foi trabalhar como faxineiro na Editora Record.
Ele diz que o seu negócio, “a grife dos livros usados”, vai bem, mesmo praticando preços amigos e promoções permanentes com até 85% de desconto:
— Mudei um pouco a visão do sebo mal iluminado, empoeirado e quente. Não é porque é usado que o livro tem que ser tratado de qualquer maneira. Eles merecem todo o carinho, como se estivessem na Livraria da Travessa.
Há quem acredite em outros modelos. Sem café ou poltronas para relaxar, a Academia do Saber, que tem três lojas no Centro, sendo duas na Avenida Passos e uma na Rua da Constituição, abriga um mundo, com direito a livros empilhados, poeira e até uma gatinha, a Fifi. O acervo é o de uma biblioteca considerável — são 400 mil livros. Embora, assim como a maioria, tenha aderido ao Estante Virtual.
— Para conseguir manter uma estrutura física tem que ter rotatividade grande. A média de preço do livro é de R$ 15. Aprendi que o segredo é você ter volume de material — afirma Ricardo Correia, sócio dos dois irmãos na Academia do Saber, e cujo pai era do mesmo ramo.
Ele dá a dimensão do baque sofrido:
— Aqui é próximo do Instituto de Filosofia da UFRJ, e quando um professor passava “O Banquete”, de Platão, saía todo mundo correndo atrás dos sebos. Hoje eles saem correndo para a internet e baixam o texto. Mas não tem como lutar contra o progresso, tem que se adaptar. Três sebos em Belo Horizonte viraram uma loja de motopeças. Os sebos não vão acabar, mas vão diminuir.
Para quem precisa encontrar alguma edição antiga, livros esgotados e preços camaradas, eles são uma mão na roda. Estudante de cinema, Gabriel Medeiros, de 22 anos, percorria na terça-feira o entorno da Praça Tiradentes atrás de dois títulos: “Viver para Contar”, de Gabriel García Márquez, e “A imagem-movimento”, de Gilles Deleuze. Achou o primeiro, por R$ 20:
— Certos livros não têm edições novas. Por isso, vou aos sebos.
Apesar dos percalços, sebos antigos, como o São José, resistem e guardam em suas estantes preciosidades de encher os olhos. Nesses, os vendedores sabem o que você procura, não há computadores para consulta e o maior prazer está em garimpar. Reza a lenda que quanto mais ao fundo da loja você for, mais coisas interessantes você descobrirá.
São essas sensações que, aos 90 anos, o livreiro Alberto Abreu tenta preservar na Livraria Padrão, na Rua Miguel Couto. O ambiente é agradável, mas lá não se encontra além de livros e periódicos. Nas prateleiras, edições importadas e livros de filologia, filosofia e crítica literária, especialidades da loja de seu Alberto.
— Gosto de vender o livro para a pessoa indicada — conta o livreiro, o mais antigo do Rio em atividade, que acha graça dos clientes que gostam de fuçar lotes recém-chegados.
Em tratando-se delas, as mais valiosas e disputadas pelos livreiros e clientes, afirma seu Alberto, são as primeiras edições de autores como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, ou publicações com dedicatórias desses escritores. E uma tendência atual são as obras sobre a história do Rio. Alberto tem 75 anos de experiência com livros.
— Me dá saudade, o Rio era outro. Sou anterior a essa coisa pavorosa que é a indústria automobilística, à Avenida Presidente Vargas e ao monstro chamado computador — diz o livreiro, que já desembarcou na Estante Virtual.
Na Avenida Rio Branco, no subsolo do Edifício Marquês de Herval, a Livraria Berinjela faz um estilo antenado. O movimento parece constante, e aumenta na hora do almoço. Sobre o público, tem de tudo: da jovem com roupas moderninhas ao senhor aposentado que bate ponto em dias certos para conversar e, quem sabe, levar um livro. Há quem calcule dez, sebos e outros cerca de 25, a maioria no Centro. O Guia dos Sebos, de Antonio Carlos Secchin e editado pela Lexikon, listou há cinco anos 57 estabelecimentos do tipo na cidade.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/sebos-tradicao-que-resiste-ao-mundo-digital-6694811#ixzz2C8qacx4D
Nenhum comentário:
Postar um comentário