O diretor Luiz Fernando Carvalho diz que conviveu 25 anos com sua “mãe preta”. Ela se chamava Betânia e foi empregada da família durante esse tempo. Analfabeta, viera de Minas Gerais para o Rio de Janeiro ainda criança atrás de uma vida melhor − como tantos outros migrantes. Carvalho conta que, às vezes, a encontrava rindo e cantando uma ciranda na cozinha. Perguntava o que era e ouvia histórias da infância de Betânia. Outras vezes a encontrava chorando. Ela, que trabalhou desde muito cedo, tinha muitas histórias tristes. Carvalho anotou-as. Quando a TV Globo pediu um projeto para ir ao ar neste ano, ele viu que tinha um extenso material para trabalhar. Betânia morreu há três anos por complicações de uma cirurgia de varizes. Suas histórias ficaram como inspiração para Carvalho, seu “filho branco”, criar a série Suburbia, que estreou semana passada.
Escrita em parceria com Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus), Suburbia é a saga de Conceição (Érika Januza). Aos 12 anos, ela foge num trem de carga da carvoaria onde trabalhava, no interior de Minas, para o Rio de Janeiro. Não quer o destino dos pais, analfabetos e embrutecidos pelo trabalho, nem do irmão, morto numa explosão nos fornos de carvão. No bolso, leva uma foto do Pão de Açúcar e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, sua santa de devoção. Já longe de casa, Conceição verá que o Rio não é a “cidade de açúcar” que imaginava. Presa num abrigo para menores de rua, a menina precisa fugir. Depois, mais velha, sofre abuso sexual do namorado da patroa. Graças a uma amiga, a protagonista conhece Madureira, bairro da Zona Norte do Rio, onde se passa boa parte da história, ambientada nos anos 1990. Em Madureira, ela se apaixona por Cleiton (Fabrício Boliveira) e conhece Jéssica (Ana Pérola), uma dançarina de funk famosa, mulher de traficante e sua antagonista.
“Suburbia é uma desconstrução do trabalho que fiz até agora”, diz Carvalho. Aos 52 anos, ele é conhecido por séries como Hoje é dia de Maria (2005), A pedra do reino (2007) e Capitu (2008), exibidas pela Globo. Todas com cenários lúdicos e influenciadas pela linguagem do teatro. Desta vez, Carvalho quer uma representação mais naturalista da periferia carioca − ou do subúrbio como ele é. Sai o teatro e entra em cena a influência do documentário. Em Suburbia, a câmera na mão é operada pelo próprio diretor. Não foram usados cenários, apenas locações externas, em Minas e no Rio. A explicação para essa escolha: Carvalho se diz insatisfeito com a representação da periferia na indústria cultural. Para ele, o retrato é quase sempre superficial e irrealista. A Zona Norte que ele retrata, afirma, tem violência. Mas também tem lirismo, sensualidade e elegância.
Suburbia promoverá algo inédito na TV brasileira. A série usará não atores e atores desconhecidos − a grande maioria negros. A intenção de Carvalho era ter autenticidade nas cenas, buscando na experiência de vida dos não atores a coragem para superar a vergonha diante da câmera e do público. Para ele, esse trabalho não constrói personagens, mas deixa que eles surjam com naturalidade. Érika Januza, de 27 anos, que vive a protagonista Conceição, era auxiliar administrativa numa escola de Minas Gerais. Uma jovem romântica e delicada que tentava ser modelo sem conseguir nada. Como sua personagem na série, a moça de Minas Gerais tinha sido eleita a melhor dançarina num baile funk carioca, desbancando popozudas experientes. As coincidências entre Érika e Conceição pesaram na escolha. Ao entrar no Projac pela primeira vez, ela chorou, lembrando o dia em que, impedida por um segurança, não conseguiu tirar fotos na portaria. “Há cinco anos, quando vim ao Rio, tinha ido de ônibus ao Projac só para isso”, diz. “Nem queria tirar foto com atores, só da entrada!”
Outra descoberta foi Ana Pérola, carioca de 26 anos, que vive a rival de Conceição. Ana era gari e varria uma rua do centro do Rio quando foi abordada pela produção. De uniforme laranja, nem levou a sério quando o produtor pediu para tirar uma foto. Achou que não era sério e tratou de dispensar o homem. Na dúvida, disse que, se ele quisesse mesmo fotografá-la, fosse ao viaduto de Madureira, no Baile Charme, onde a veria como ela é “de verdade”. Queria ser fotografada como uma “charmeira”, de calça larga e blusa tomara que caia. Ao avistar o fotógrafo da produção da Globo no baile, Ana se assustou. Pensou se tratar mesmo de um maluco. Só relaxou quando percebeu que ele fotografava outras moças, sem interesse pessoal. Quando chegou o convite da Globo para os testes, ela diz ter sentido uma mistura de inibição, insegurança e ansiedade. Precisou fazer várias cenas de nudez e sexo, um desafio até mesmo para atores experientes. Passado o período de provas, hoje se diz decidida a viver como atriz. Não trabalha mais como gari. “Aprendi que, ao atuar, você sai um pouco de você e empresta seu corpo ao personagem, que é verdadeiro, existe”, afirma Ana. “É emocionante quando você supera a timidez e consegue fazer isso.” Se era essa é a autenticidade que o diretor de Suburbia buscava, encontrou.
Revista Época
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