Ex- deputado federal Rubens Paiva
Esta é uma tentativa de expor a tortura que vivo desde que meu falecido
marido Amílcar Lobo fez sua denúncia sobre a morte do deputado federal Rubens
Paiva (PTB-SP), cassado pelo regime militar em 1964, preso em sua casa no Rio em
20 de janeiro de 1971 e desde então desaparecido.
Meu marido cumpriu o serviço militar obrigatório na Polícia do Exército, no
quartel da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Lá ouviu falar, escutou e
presenciou o lamento de jovens contrários à ditadura então estabelecida no país,
enquanto eram barbaramente torturados. Esse fato que marcou a vida do jovem
tenente-médico Amílcar Lobo de forma extremamente negativa.
Durante a ditadura (1964-1985) calou-se com medo das possíveis represálias —
afinal, conhecia de perto os métodos aplicados àqueles que não compartilhavam do
mesmo pensamento. Foi omisso, por medo. Medo pela sua vida e de seus familiares,
mas carregou consigo a memória do som insuportável dos gemidos, das cenas de
violação dos direitos humanos ao grau máximo.
Meu marido não queria guardar consigo estes desmandos — escreveu um livro com
episódios, como o encontro com Rubens Paiva torturado na prisão. Não buscava
punir ninguém. Desejou até os últimos dias expiar sua culpa, mas a sociedade não
queria ouvi-lo.
Havia uma ardente necessidade de punir, de dar o exemplo, mostrar que nós,
sociedade brasileira, éramos capazes de fazer justiça. E assim o condenaram, o
acusaram de forma vil.
Hoje, ainda vivo na expectativa de que novamente irão nos acusar. Mudei o
status de esposa de torturador para viúva de torturador. Sou apontada, evitada
por muitos como tal, porque não o abandonei e abracei sua causa como minha, de
acordo com os ensinamentos cristãos que recebi.
Fomos casados na alegria e na dor e assim permaneço, acuada, subjugada,
aviltada pela esquerda por dar o caso como concluído, vangloriando-se da
vitória, e pelos militares por sermos “traidores da pátria”.
Por vezes já ouvi que devo me conformar, mas minha consciência diz que devo
lutar para elucidar a atuação do meu falecido marido, pagando, sim, pelos seus
erros e pondo um ponto final neste triste episódio.
Não é possível quebrar paradigmas sem discuti-los à exaustão. E é com essa
certeza que venho lutando, batendo em várias portas sem encontrar nenhum
acolhimento. Só o que recebo é repúdio ou silêncio. Ninguém quer meter o dedo na
ferida, avaliar os fatos com imparcialidade, verificar o que poderia ser feito
no contexto da época.
Minha esperança agora é que a Comissão da Verdade abra realmente um amplo
debate nacional sobre a questão da tortura.
A tortura me persegue até hoje e precisa ter um fim. Não posso ignorá-la,
pois permanece, pairando, clamando por justiça a partir de uma investigação a
fundo. É preciso essa investigação. Não só para que eu tenha paz e deixe de ser
apontada como a viúva de torturador, mas para que a sociedade passe efetivamente
a repudiar a tortura no cotidiano, não permitindo que se repita.
Evitar falar no assunto, negar ou defendê-la não nos levará a mudanças. É
preciso conscientizar, apontar erros e acertos de ambos os lados, sair deste
dualismo entre o bem e o mal e ir em frente buscando uma sociedade mais humana e
fraterna.
Costumava contar uma história aos meus alunos sobre um incêndio na floresta.
Enquanto o incêndio tomava conta de grande parte da mata, os animais corriam
para se abrigar no rio e dali ficavam olhando o fogo destruir tudo. Ao
contrário, um passarinho voava desesperadamente de um lado para o outro
carregando no bico algumas gotinhas de água.
Um leão que observava a situação disse ao passarinho que deixasse de ser
bobo, que ele não conseguiria apagar o incêndio com apenas poucas gotinhas. O
passarinho, sem parar com sua batalha, respondeu: “Não importa. Mesmo que eu não
consiga, quero ter a certeza de que fiz o que pude.”
Quero fazer a minha parte, expor minha opinião e ouvir versões diferentes
para, juntos, chegarmos a uma conclusão. Quero ter a certeza do dever cumprido.
Aí, sim, poder reconstruir minha vida.
Maria Helena Gomes de Souza é professora.
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