sexta-feira, 10 de maio de 2013

Te Contei, não ? - Apesar de mim / Angélica

"Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar o perdão"
 
Estes conhecidos versos de "Apesar de você" (1970), de Chico Buarque remetem às origens, na última ditadura brasileira (1964-1985), das lutas pela anistia. A oposição ao regime levantou esta bandeira no final dos anos 1960 visando permitir a volta dos exilados e a libertação dos prisioneiros políticos. A anistia, neste contexto, significava, antes de mais nada, restauração da justiça, já que estes exilados e prisioneiros estavam sendo vítimas de um governo pontuado por arbitrariedades, no qual o Estado de Direito estava suspenso. Imperava, portanto, a exceção (instaurada com o golpe civil-militar de 1964 e aprofundada com o AI-5 em dezembro de 1968), e a fachada de legalidade era mais do que frágil. A anistia neste sentido de cumprimento da justiça, de restabelecimento do Estado de Direito, tem um valor plenamente positivo, tal como encontramos no nome da conhecida organização internacional que luta pelos direitos humanos, a Amnesty International.
No Brasil a anistia chegou apenas em 1979, organizada pelos responsáveis pela ditadura civil-militar. Sua intenção naquele momento, no entanto, não era a de realizar a justiça, visada nos versos de Chico Buarque. Antes, os donos do poder pretenderam então, diante da inexorável derrocada do regime e do avanço das forças democráticas - que teria como correlato imediato a volta dos exilados e a libertação dos prisioneiros políticos - decretar, de antemão, a sua própria impunidade. Esta anistia foi costurada não como justiça - trabalho de restituição do mal realizado, pagamento de uma dívida para com os perseguidos e violentados pelos órgãos de repressão do Estado que se voltaram contra a população que deveria proteger -, mas antes ela foi decretada como suspensão de toda futura tentativa de se concretizar a justiça. Os donos do poder se apropriaram da anistia para convertê-la em mecanismo de impunidade. Os militares e aliados civis brasileiros não estavam sós neste trabalho de reversão dos ideais de justiça da anistia. Em 1978 o governo militar de Pinochet fizera o mesmo gesto. Argentina e Uruguai seguiriam o mesmo caminho. Gostaria neste texto de explorar estas duas faces da anistia (como portadora de justiça e como portadora da injustiça e da impunidade) privilegiando o caso brasileiro.
 
Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento /Vou cobrar com juros. Juro!/ Todo esse amor reprimido,/ Esse grito contido,/ Esse samba no escuro
 
O período de ditadura brasileiro foi marcado pela suspensão dos direitos básicos que caracterizam a cidadania. A partir da Doutrina de Segurança Nacional (que marca a constituição de 1967) e da sua incorporação da teoria do "inimigo interno" ocorreu uma utilização de todo aparato da violência estatal para se reprimir a oposição. Com o AI-5 a figura jurídica basilar do habeas corpus fica suspensa nos casos considerados vinculados à segurança nacional. Em 1969, com a Lei de Segurança Nacional, suspendeu-se as liberdades de imprensa e de reunião. Em 1971 criou-se a figura dos decretos-lei secretos, um reconhecimento tácito da total anomalia jurídica deste governo. Se a anomia está sempre dormitando em qualquer Estado de Direito (como aprendemos com Walter Benjamin [1974] e com Agamben [2004]), o que aconteceu durante a última ditadura brasileira foi um flagrante atentado a esta forma mesma do Estado de Direito, com todos o seus limites estruturais. A violência ao invés de dormitar no seio da lei (como lemos na Eumênides de Ésquilo2) passou a dominá-la por completo. A lei foi reduzida a force de loi. (Derrida 1994) Mas é importante destacar que a prática generalizada da violência através da perseguição, encarceramento, tortura, assassinato de opositores deu-se inteiramente fora da lei, nas bordas deste aparato jurídico em si monstruoso (que além de implantar o Estado de Exceção e suspender o habeas corpus previa a pena de morte, que nunca foi aplicada juridicamente, mas apenas às escondidas nos porões da ditadura). Este ponto é essencial, porque revela o quanto este Estado de Exceção desprezou (e despreza) as regras do jogo jurídico e, portanto, as ações acobertadas por este mesmo Estado merecem um tratamento excepcional no sentido de que não se deve alegar que nele havia algo como um Estado de Direito amparando as ações dos membros do aparelho de repressão. As execuções eram realizadas sem prévio julgamento. As leis de exceção serviam apenas para dar uma aparência de ordem judicial a um governo que na verdade "punha e dispunha" das leis e dos homens como queria.3 Elas serviam para encobrir a radicalidade da exceção e da violência praticada pelo Estado.
Durante o período da ditadura e posteriormente os militares e civis vinculados à ditadura negaram sistematicamente a existência desta violência. Esta negação já estava na origem destas mesmas práticas ilícitas e da sua forma clandestina de execução. O aparato de violência negava suas ações ao praticá-la em quartéis, delegacias e outros lugares escondidos da vista do público em geral. Ele negava às famílias o direito de informação sobre o paradeiro dos que haviam sido presos (a bem da verdade raptados) por este aparato. Negava também os corpos das vítimas de tortura (que eram ou enterrados em valas comuns clandestinas ou lançados ao mar). E, por fim, o Estado continua negando até hoje a abertura dos arquivos que poderiam possibilitar uma busca da verdade do que ocorreu e da justiça. É dentro desta cadeia de negações que se insere a Anistia de 1979. Se ela serviu para se costurar a passagem do governo civil-militar para um regime democrático, e não nego que ela teve um papel histórico importante, isto não significa que a sociedade deve se submeter ao seu arbítrio para sempre. Temos que ter a coragem de perceber que esta lei, tal como ela foi feita, significou também mais um ato de arbítrio dentro da série de disparates político-jurídicos dos governos da ditadura.
Como o jurista Fábio Konder Comparato notou, para além das querelas em torno da aplicabilidade da Anistia aos torturadores homicidas, vale antes e mais nada observar que "esse aparente obstáculo [a Lei de Anistia] não tem nada a ver com o dever estatal de investigar os fatos, nem com o direito fundamental dos familiares de saber a verdade". (Comparato 1995: 59) Citando um documento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele recorda que com relação a estes atos de violência acobertados pelo Estado "a responsabilidade existe, não só independentemente das mudanças de governo em determinado período de tempo, como também de modo contínuo desde a época do ato gerador de responsabilidade até o momento em que tal ato é declarado ilegal." (Ibd.) Ou seja, diante da excepcionalidade dos atos de violência, vale levar-se em conta uma excepcionalidade temporal também. A prescrição de crimes hediondos está suspensa, a continuidade temporal e de responsabilidade devem ser reconhecidas. De resto, como o professor Dalmo de Abreu Dallari notou em um artigo de 1992, havia uma contradição entre a Lei de Anistia e constituição de 1967 que desmente a tese que catapulta os crimes praticados sob a cobertura do Estado no regime ditatorial para fora da esfera jurídica. Citemos as palavras do jurista: "Com efeito, a Lei de Anistia, lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi ditada quando vigorava no Brasil, formalmente, a Constituição de 1967, com a nova redação que lhe deu a chamada Emenda Constitucional n.1, de 1969. Essa Constituição estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes dolosos, intencionais, contra a vida seriam julgados pelo Tribunal do Júri." (Dallari 1992: 32) Ele concluía que "os dispositivos da Lei de Anistia não podem prevalecer contra a Constituição. [...] os torturadores eram servidores públicos civis ou militares que agiam profissionalmente, mediante remuneração, não podendo alegar objetivos políticos. [...] Os torturadores homicidas, e possivelmente outros, nunca foram anistiados." De resto, Comparato levantou dúvidas já em 1995 sobre o fato de que a Anistia cobriria os crimes cometidos pelos agentes estatais. O texto de 1979 dita que "é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes [...]". Como se sabe, é por esta clausula da conexividade que se tenta eliminar os agentes da ditadura da esfera da lei. É evidente que esta lei, como mencionei, foi feita, antes de tudo, pelos agentes da ditadura e para estes mesmos agentes. Mas não cabe, na interpretação da letra, especular sobre as intenções que estavam na sua origem. Se ela está "mal" redigida e não acoberta os crimes do aparato civil-militar tanto melhor para os que, hoje, visam à justiça.
Este debate sobre a conexividade ou não dos crimes dos agentes da ditadura voltou à baila recentemente após a abertura do processo da família Teles (Maria-Amélia Teles, César Teles, Janaína Teles, Edson Teles e Criméia Almeida Teles) contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigiu a unidade do DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1974.4 No período "houve 502 denúncias de torturas" contra esta unidade. (Folha de S.Paulo, 9.11.2006, p.A9) O juiz Santini Teodoro considerou que o coronel Ustra era passível de ser réu e não necessariamente a União. Como o que está em jogo são "direitos humanos", para ele este tipo de crime é imprescritível. Apesar deste processo ter um caráter declaratório e não visar a punição do membro do aparelho de repressão, trata-se sem dúvida do maior passo já dado no Brasil, desde a decretação da Anistia, em direção à busca da justiça referente aos desmandos da ditadura de 1964-1985. Este processo trouxe mais uma vez à tona os malabarismos jurídicos e "narrativos" dos membros do regime ditatorial. O ex-ministro Jarbas Passarinho, em entrevista Folha de S.Paulo (22.11.2006, p. A11) tentou ao mesmo tempo dizer que, diferentemente dos regimes totalitários, a tortura no Brasil não era institucional. De fato, ela era "institucionalizada", ou seja, parte integrante da instituição da ditadura, mas não institucionalizada no sentido de ter um código legal que a justificasse integralmente: mas tampouco nos regimes totalitários a tortura foi institucionalizada desta forma. Sabemos que os Campos de Concentração nunca foram propagandeados pelos nazistas, assim como a tortura e a execução nas câmaras de gás também não passavam por tribunais ou processos jurídicos. A decisão da chamada "solução final" foi feita em uma reunião secreta, na casa de Wansee em Berlim. Passarinho atribui o grande número de torturados e desaparecidos na Argentina, Uruguai e Chile ao "sangre caliente" dos espanhóis. Por outro lado, na mesma entrevista Passarinho afirma que "Ustra, jovem major, recebeu uma missão", e que, portanto, estava submetido a seus comandantes... logo não seria responsável por crimes que o próprio Passarinho afirma não terem existido. Ou seja, a tentativa de levar lado a lado o argumento da "obediência devida" com o da inexistência da tortura revela um típico gesto (antes de mais nada cínico) dos membros do poder que querem acobertar a todas custas os fatos e afastar seus responsáveis do "julgamento devido".5 Outro argumento contraditório com relação à afirmação de que não houve violência do lado dos agentes do regime ditatorial é o que volta a bater na tecla da Anistia de 1979. Passarinho afirma que esta "foi uma anistia mútua. É preciso reconciliação. Para reconciliar é preciso esquecer." Este argumento é excelente pra os verdugos, mas para as vítimas da violência (e estas vítimas são não apenas os torturados, os assassinados e desaparecidos, mas seus familiares e também toda a sociedade que é vítima da violência ao excluí-la da esfera jurídica) este argumento é cínico. Finalmente, outro argumento usual entre os defensores da "anistia mútua" é o de que os crimes ocorreram dos dois lados. Este argumento novamente assume que ocorreram crimes praticados pelos agentes do poder ditatorial. Ele reaparece em artigo recente publicado no mesmo jornal (28.11.2006, p.A3). Nele Passarinho volta a insistir na tese do esquecimento reconciliatório: "Intentávamos [com a Anistia] cicatrizar feridas e reconciliar a nação por meio do esquecimento recíproco das violências mútuas, as quais haviam despertado emoções intensas e dolorosas." Ora, como decretar-se o esquecimento de quem foi humilhado, torturado?6 Como pedir aos familiares que esqueçam seus familiares desaparecidos? Como pedir a uma nação que se esqueça do que aconteceu naqueles anos de chumbo? Muito pelo contrário, para reforçar-se a democracia e para a construção de um verdadeiro Estado de Direito, cabem, antes de mais nada, um dever e memória e um dever de justiça.
Poucos dias antes da publicação deste artigo de Passarinho a mesma Folha publicara um pequeno artigo do ex-presidente José Sarney defendendo a anistia e o esquecimento.7 Sarney concluía seu texto com as palavras: "Portanto, é necessário um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos esses fatos no silêncio da história. Não remexamos esses infernos, porque não é bom para o Brasil. Essa conduta nos distingue dos nossos vizinhos e, assim, o Brasil é uma sociedade reconciliada." É importante analisar a escolha dos termos por parte do ex-presidente escritor. Ele afirma que devemos sepultar esses fatos (ou seja, as torturas, os assassinatos, os corpos insepultos...) no silêncio da história. Em que medida a história é silêncio, é túmulo, pedra do esquecimento? Apenas do ponto de vista dos vencedores que vêem na história um enorme triunfo, silente, por onde desfilam seus heróis sob mantos brilhantes e louros da glória. Para os humilhados, perseguidos, que se opuseram aos déspotas, para estes a história grita e exige reparo. O próprio Sarney reconhece que este passado é um inferno, mas ao defender o pacto do esquecimento se posiciona do lado oposto ao Estado de Direito e da construção da democracia. Não podemos montar nossa casa sobre uma montanha de ossos. Estes devem ser devolvidos às suas famílias e devidamente nomeados e enterrados. Os responsáveis pelos crimes devem ser julgados. A frase final de Sarney neste texto é mais uma típica formulação de nossas elites políticas: o brasileiro quer a reconciliação (e não a luta). Esta boutade, que lembra o mote do brasileiro "homem cordial", é típica daqueles que sempre teimam em ver no "povo brasileiro" uma massa amorfa e subserviente. A "cordialidade" sempre foi uma conquista das elites que usaram para tanto da violência para gerar esta "incrível" reconciliação e cordialidade.8
Mas a referência tanto de Passarinho como de Sarney aos casos dos países vizinhos é muito importante. Devemos apenas reverter o acento dado: não devemos temer estes movimentos em direção à justiça, mas sim saudá-los. De fato, vemos que nestes países conseguiu-se arrancar a mordaça imposta pela anistia. A Lei de anistia chilena, de 1978, foi redigida pelos próprios membros do governo ditatorial e publicada quando o Congresso estava fechado já há cinco anos. O governo de Michelle Bachelet está revogando esta lei. No Uruguai o governo Tabaré Vazquez facilitou uma interpretação da lei de anistia que tem permitido o julgamento de militares e policiais que violaram os direitos humanos na ditadura de 1973-1984. Na Argentina a lei "del Punto Final" (n° 23.492 de 12/1986), que limitou o período de acusação dos envolvidos na repressão militar a apenas 60 dias, teve as suas drásticas conseqüências radicalizadas com a "Ley de Obediencia Debida" (7/1987) que isentou de culpa todos os militares inferiores ao General de Brigada. O governo Kirchner revogou estas leis. As lutas persistentes das "Madres de Plaza de Mayo", entre outros grupos de resistência ao esquecimento oficial, são responsáveis por esta reviravolta. É verdade, por outro lado, que existem diferenças entre cada um destes países. A ditadura na Argentina fraturou muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em torno da memória da ditadura não pode ser comparado ao que aconteceu no nosso país vizinho. A atual discussão em torno do futuro da ESMA9 reflete a dimensão da violência que foi exercida então pelos militares. Calcula-se que cerca de 30.000 pessoas desapareceram nas mãos do Estado durante a ditadura naquele país. Cerca de 300.000 argentinos tiveram que se exilar.
Mas apesar destas diferenças, certas questões são comuns a estes países. Isto fica patente, por exemplo, quando algumas obras literárias conseguem atingir certas estruturas de poder, jurídicas e de memória, que são compartilhadas no Chile, Argentina, Uruguai ou Brasil. Este é o caso da peça e Ariel Dorfman La muerte y la doncella. Nesta obra, carrasco e vítima se confrontam sob uma nova divisão de forças, com a vítima dominando a situação. Um terceiro elemento, um advogado - recém nomeado para fazer parte de uma comissão que deveria levantar os casos de abuso dos direitos humanos com conseqüências fatais - e que é marido da vítima, representa de certo modo a instância jurídica. A almejada justiça - que não pode ser confundida com o direito e suas instituições - paira como uma promessa irrealizável na peça. Oposta a ela encontra-se as forças do oblívio, sugeridas, por exemplo, na frase do personagem Gerardo, o advogado, "vamos virar essa página de uma vez por todas e nunca mais falar sobre isso, nunca"...10 Não existe reparação: mas a confissão e o procedimento do julgamento (mesmo sem a condenação) representados na peça, mostram que estes dispositivos têm um papel central a desempenhar no trabalho de memória (jurídico e lutuoso) do período ditatorial. O próprio Dorfman afirma no posfácio de sua obra que ele buscou uma purgação do terror e da comiseração com a sua peça (Dorfman 1992: 87) - o que faz lembrar os tribunais sul-africanos de reconciliação idealizados pelo bispo Tutu que visam a confissão e o encontro catártico com o mal passado sem, no entanto, ter implicações propriamente penais. Esta obra de Dorfman vale para boa parte da América Latina.
 
"Você vai pagar, e é dobrado,/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar"
 
Carlos Alberto Idoeta, em um artigo de 1995, recordou, dentro do debate sobre a responsabilidade jurídica dos agentes do regime ditatorial, as palavras de A condição humana, de Hannah Arendt, que afirmam que "Os homens são incapazes de perdoar o que não podem punir." (Idoeta 1995: 76) No campo da discussão sobre os fatos ocorridos nas ditaduras civil-militares na América Latina não cabe se falar em perdão. Como notou Derrida em vários de seus textos, a justiça, a anistia e, por outro lado, o perdão funcionam em registros diversos. Perdoar tem a ver com dar um dom (isto vale também para outras línguas: pardon, forgive, Vergebung). Trata-se de uma restituição, de uma volta a termos de igualdade: diante da enormidade de certos crimes, isto é impossível. Como nota ainda Derrida, a cena do perdão exige uma "solidão a dois", um "face a face": nada disto pode ser desejado ou seria possível diante dos crimes em questão aqui. A noção de crime contra a humanidade, derivada do tribunal e Nuremberg e mesmo a "Comissão de Verdade e Reconciliação" sul-africana não tem também nada em comum com o conceito de perdão.11 (Derrida 2005: 19) Caso este perdão fosse possível, quem pediria perdão a quem? A princípio caberia sempre às vítimas propor este perdão. Mas quem o concederia? Pode-se perdoar no lugar de pessoas que morreram? Assim como não se pode testemunhar no lugar de um outro, também não podemos perdoar pelo outro. Como o testemunho também, o perdão se liga a situações extremas: em ambos os casos existe uma espécie de impossibilidade a priori. Não se pode testemunhar totalmente a catástrofe provocada pelos homens, o mal absoluto, assim como não se pode perdoar estes fatos. Por outro lado, existem dispositivos jurídico-estatais que procuram estabelecer certas modalidades ("impuras") do perdão, tais como a graça e a anistia.
O importante é ter claro que estes dispositivos são justamente os que tornam explicito o quanto o Estado de Direito é tênue e vive normalmente às custas de "exceções". Ao decretar a anistia (no seu sentido de "esquecimento oficial", de "pôr a sujeira para debaixo do tapete") o Estado se revela como cúmplice de crimes e de criminosos.12 A memória do mal é uma importante contraparte da justiça e sem esta, por sua vez (por mais imperfeita que ela seja), o Estado de Direito e a Democracia não podem se construir. Os antigos donos do poder sempre declaram que esta memória do mal é apenas fruto do ódio, da vontade de vingança. Mas justamente não se trata da lei do talião, do "olho por olho, dente por dente", porque estamos diante de crimes sem-medida. Trata-se, antes, do re-conhecimento do mal e do restabelecimento da verdade. Não se pode falar de memória social e em democracia sem se levar em conta o papel da instância jurídica neste trabalho de restabelecimento da verdade dos fatos.
Diante da retomada em boa parte da América Latina da questão dos crimes cometidos nas últimas ditaduras militares, podemos perceber que atingimos um novo momento nos debates sobre este passado. Agora não se coloca mais o tema da proximidade e da necessidade e se calar em troca da democracia. Existe um clima interno e internacional (lembremos do caso de Pinochet preso na Inglaterra em 1998) que indica claramente que já atingimos um ponto no qual se pode sim enfrentar os crimes cometidos neste passado sem que isto signifique abandonar o projeto democrático. Na Alemanha, para retomar a comparação, o tribunal de Nuremberg pôde ocorrer já em 1945 por conta dos aliados que o impuseram. Mas a própria sociedade alemã precisou de décadas para poder encarar a questão das responsabilidades individuais. Apenas na última década ela começou a aceitar a culpa do seu exército nas ações de extermínio na Europa Oriental. Este país mostrou ser possível este enfrentamento do passado, apesar de todas dificuldades que este trabalho de "perlaboração" do passado implica. Sem este enfrentamento, que deve ser dar no registro da memória familiar, coletiva e social e que inclui também necessariamente o enfrentamento jurídico dos crimes do passado, a sociedade está condenada a repetir seus erros. (Cf. Freud 1914)
Mas a memória pensada em sua chave política, jurídica e moral não pode ocultar o fato de que ela é também memória antropológica. Nunca é demais insistir no fato de que a luta pela justiça se dá em diferentes níveis, todos distintos e ao mesmo tempo determinantes entre si: o da memória e história da sociedade, o da memória de grupos sociais e o da memória dos familiares. A luta de Antígona é tanto familiar como cívica. Do mesmo modo, no campo histórico, a luta pela restituição dos corpos dos "desaparecidos" na ditadura, a luta pela restituição da verdade e a luta pela justiça, deve levar em conta estes diversos níveis de relacionamento com o passado. Tratar o desejo de se saber todos os fatos que cercaram a morte de um parente e o local de seu enterro como um sentimento nascido do revanchismo ou do ódio é não entender minimamente que toda nossa identidade e memória social passa pelo nosso relacionamento com nossos antepassados. O núcleo cultural da memória é o culto e respeito para com os mortos. A memória do mal de quem perdeu um familiar ou foi torturado é uma memória onipresente e aterrorizante. É papel da sociedade ajudar estes indivíduos a tentar reconstruir suas vidas e isto depende tanto da restituição da verdade como da construção da justiça. Cabe ao Estado abrir seus arquivos (incluindo os arquivos das forças armadas) visando esta busca da verdade.13
Da memória do mal praticado pelas ditaduras na América Latina podemos derivar tanto o dever de memória como o de reparação (impossível, mas mesmo assim inescapável). Não existe "arte do esquecimento", por mais que seja esta arte que os antigos donos do poder tentam inventar e praticar com o desaparecimento de corpos e de arquivos. Por outro lado, existe uma arte da memória e esta, desde as suas origens, tem como núcleo a tentativa de se dar nome aos mortos e de enterrá-los. Refiro-me aqui ao poeta Simônides de Ceos (apr. 556-apr.468 a.C.), considerado o pai da arte, da memória clássica e que, segundo Cícero (De oratore II, 86, 352-354), Quintiliano (11, 2, 11-16) e o autor anônimo da Rhetorica ad Herennium, teria estabelecido as bases da mnemotécnica em função de um acidente. Nessa anedota Simônides é salvo do desabamento de uma sala de banquete onde se comemorava a vitória do pugilista Skopas. O que nos importa nessa história é o que se sucedeu após essa catástrofe. Os parentes das vítimas, que queriam enterrar os seus familiares, não conseguiram reconhecer os mortos que se encontravam totalmente desfigurados sob as ruínas. Eles recorreram a Simônides - o único sobrevivente - que graças à sua mnemotécnica conseguiu se recordar de cada participante do banquete, na medida em que ele se recordou do local ocupado por eles. Ele associou o nome de cada um dos mortos ao local em que eles foram encontrados mortos - como, hoje em dia, as equipes de medicina forense o fazem em vários países da América Latina e de outros continentes. Se a mnemotécnica caiu em desuso há alguns séculos14, por outro lado esse procedimento de topografia do terror permanece central na arte da memória contemporânea. Ele serve de antídoto aos negacionistas que sempre estiveram e estarão de plantão quando fatos extremos acontecem.
Para concluir estas reflexões sobre a anistia como amnésia oficial e o dever de memória gostaria de tecer alguns comentários sobre os versos de uma música de Chico Buarque que representam de modo compacto e denso muitos aspectos da memória dos desaparecidos durante a ditadura de 1964-1985 no Brasil. Refiro-me ao seu "Angélica" (de Chico Buarque e Miltinho de 1977)15, inspirado pelo assassinato de Zuzu Angel (Zuleika Angel Jones) em 1976 por membros do aparato de governo que queriam impedir a continuidade de suas investigações sobre o paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones, raptado e assassinado por agentes da ditadura). Não por acaso este episódio da história da ditadura se tornou tão importante hoje, tendo sido inclusive "popularizado" a partir do filme de Sérgio Rezende. Zuzu representa ao mesmo tempo a vontade de restabelecimento da verdade, o desejo de reencontrar um parente arbitrariamente raptado, torturado e assassinado e o peso terrível da realidade do oblívio imposto pelas autoridades que, ao final, desaguou em um novo assassinato, ou seja, o da própria Zuzu. É-lhe negado o direito de enterrar seu filho. Sua luta pela verdade se confunde com a luta pelo corpo do filho. Os desaparecimentos do corpo e da justiça se misturam em sua história. Este caso revela ao mesmo tempo as práticas homicidas do Estado terrorista de 1964 e a tentativa de se representar esta arbitrariedade. Zuzu para fazer seu luto precisava, antes de mais nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver, enterrá-lo, fazer com que a justiça se cumprisse. Angélica enfatiza o aspecto repetitivo da memória do mal, que vive de observar uma ausência que não pode ser sanada a não ser com a restituição do corpo. Na música, a repetição do verso "Quem é esta mulher", a volta repetitiva do advérbio temporal "sempre" e a imagem de um sino que sempre dobra da mesma forma representam esta característica da memória do mal como constante e reiterativa. A cena desenhada é a da mãe que quer enterrar seu filho, dar uma moradia e paz para seu corpo - requisito essencial para que ela mesma recupere a sua paz. Esta mulher, visada pela pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu, como as outras mães de desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã de seus filhos desaparecidos (abandonados em valas comuns ou jogados nas profundezas dos mares). A mãe na música quer "lembrar o tormento" que fez seu filho suspirar: a narração dos fatos, a restituição da verdade é uma etapa essencial no trabalho de luto assim como nos processos de transição de regimes autoritários para democráticos. As Comissões de Verdade existem justamente para restituírem os fatos e permitirem a construção de uma sociedade que possa viver livre do peso do passado com suas injustiças. No fim, na última "estrofe", a mãe quer cantar por seu menino, que não pode cantar. Ela mesma se torna testemunha desta história que encerra em si o silêncio, o apagamento da verdade. Assim como a própria música de Chico Buarque traz em si esta história perfurada, que não cessa de voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não foram feitos.16

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