"Você que inventou o pecado/ Esqueceu-se de inventar o perdão"
Estes conhecidos versos de "Apesar de você" (1970), de Chico Buarque
remetem às origens, na última ditadura brasileira (1964-1985), das lutas pela
anistia. A oposição ao regime levantou esta bandeira no final dos anos 1960
visando permitir a volta dos exilados e a libertação dos prisioneiros políticos.
A anistia, neste contexto, significava, antes de mais nada, restauração da
justiça, já que estes exilados e prisioneiros estavam sendo vítimas de um
governo pontuado por arbitrariedades, no qual o Estado de Direito estava
suspenso. Imperava, portanto, a exceção (instaurada com o golpe civil-militar de
1964 e aprofundada com o AI-5 em dezembro de 1968), e a fachada de legalidade
era mais do que frágil. A anistia neste sentido de cumprimento da justiça, de
restabelecimento do Estado de Direito, tem um valor plenamente positivo, tal
como encontramos no nome da conhecida organização internacional que luta pelos
direitos humanos, a Amnesty International.
No Brasil a anistia chegou apenas em 1979, organizada pelos responsáveis
pela ditadura civil-militar. Sua intenção naquele momento, no entanto, não era a
de realizar a justiça, visada nos versos de Chico Buarque. Antes, os donos do
poder pretenderam então, diante da inexorável derrocada do regime e do avanço
das forças democráticas - que teria como correlato imediato a volta dos exilados
e a libertação dos prisioneiros políticos - decretar, de antemão, a sua própria
impunidade. Esta anistia foi costurada não como justiça - trabalho de
restituição do mal realizado, pagamento de uma dívida para com os perseguidos e
violentados pelos órgãos de repressão do Estado que se voltaram contra a
população que deveria proteger -, mas antes ela foi decretada como suspensão de
toda futura tentativa de se concretizar a justiça. Os donos do poder se
apropriaram da anistia para convertê-la em mecanismo de impunidade. Os militares
e aliados civis brasileiros não estavam sós neste trabalho de reversão dos
ideais de justiça da anistia. Em 1978 o governo militar de Pinochet fizera o
mesmo gesto. Argentina e Uruguai seguiriam o mesmo caminho. Gostaria neste texto
de explorar estas duas faces da anistia (como portadora de justiça e como
portadora da injustiça e da impunidade) privilegiando o caso
brasileiro.
Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento /Vou cobrar com
juros. Juro!/ Todo esse amor reprimido,/ Esse grito contido,/ Esse samba no
escuro
O período de ditadura brasileiro foi marcado pela suspensão dos direitos
básicos que caracterizam a cidadania. A partir da Doutrina de Segurança Nacional
(que marca a constituição de 1967) e da sua incorporação da teoria do "inimigo
interno" ocorreu uma utilização de todo aparato da violência estatal para se
reprimir a oposição. Com o AI-5 a figura jurídica basilar do habeas
corpus fica suspensa nos casos considerados vinculados à segurança nacional.
Em 1969, com a Lei de Segurança Nacional, suspendeu-se as liberdades de imprensa
e de reunião. Em 1971 criou-se a figura dos decretos-lei secretos, um
reconhecimento tácito da total anomalia jurídica deste governo. Se a anomia está
sempre dormitando em qualquer Estado de Direito (como aprendemos com Walter
Benjamin [1974] e com Agamben [2004]), o que aconteceu durante a última ditadura
brasileira foi um flagrante atentado a esta forma mesma do Estado de Direito,
com todos o seus limites estruturais. A violência ao invés de dormitar no seio
da lei (como lemos na Eumênides de Ésquilo2)
passou a dominá-la por completo. A lei foi reduzida a force de loi.
(Derrida 1994) Mas é importante destacar que a prática generalizada da violência
através da perseguição, encarceramento, tortura, assassinato de opositores
deu-se inteiramente fora da lei, nas bordas deste aparato jurídico em si
monstruoso (que além de implantar o Estado de Exceção e suspender o habeas
corpus previa a pena de morte, que nunca foi aplicada juridicamente, mas
apenas às escondidas nos porões da ditadura). Este ponto é essencial, porque
revela o quanto este Estado de Exceção desprezou (e despreza) as regras do jogo
jurídico e, portanto, as ações acobertadas por este mesmo Estado merecem um
tratamento excepcional no sentido de que não se deve alegar que nele havia algo
como um Estado de Direito amparando as ações dos membros do aparelho de
repressão. As execuções eram realizadas sem prévio julgamento. As leis de
exceção serviam apenas para dar uma aparência de ordem judicial a um governo que
na verdade "punha e dispunha" das leis e dos homens como queria.3
Elas serviam para encobrir a radicalidade da exceção e da violência
praticada pelo Estado.
Durante o período da ditadura e posteriormente os militares e civis
vinculados à ditadura negaram sistematicamente a existência desta violência.
Esta negação já estava na origem destas mesmas práticas ilícitas e da sua forma
clandestina de execução. O aparato de violência negava suas ações ao praticá-la
em quartéis, delegacias e outros lugares escondidos da vista do público em
geral. Ele negava às famílias o direito de informação sobre o paradeiro dos que
haviam sido presos (a bem da verdade raptados) por este aparato. Negava também
os corpos das vítimas de tortura (que eram ou enterrados em valas comuns
clandestinas ou lançados ao mar). E, por fim, o Estado continua negando até hoje
a abertura dos arquivos que poderiam possibilitar uma busca da verdade do que
ocorreu e da justiça. É dentro desta cadeia de negações que se insere a Anistia
de 1979. Se ela serviu para se costurar a passagem do governo civil-militar para
um regime democrático, e não nego que ela teve um papel histórico importante,
isto não significa que a sociedade deve se submeter ao seu arbítrio para sempre.
Temos que ter a coragem de perceber que esta lei, tal como ela foi feita,
significou também mais um ato de arbítrio dentro da série de disparates
político-jurídicos dos governos da ditadura.
Como o jurista Fábio Konder Comparato notou, para além das querelas em
torno da aplicabilidade da Anistia aos torturadores homicidas, vale antes e mais
nada observar que "esse aparente obstáculo [a Lei de Anistia] não tem nada a ver
com o dever estatal de investigar os fatos, nem com o direito fundamental dos
familiares de saber a verdade". (Comparato 1995: 59) Citando um documento da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele recorda que com relação a estes
atos de violência acobertados pelo Estado "a responsabilidade existe, não só
independentemente das mudanças de governo em determinado período de tempo, como
também de modo contínuo desde a época do ato gerador de responsabilidade até o
momento em que tal ato é declarado ilegal." (Ibd.) Ou seja, diante da
excepcionalidade dos atos de violência, vale levar-se em conta uma
excepcionalidade temporal também. A prescrição de crimes hediondos está
suspensa, a continuidade temporal e de responsabilidade devem ser reconhecidas.
De resto, como o professor Dalmo de Abreu Dallari notou em um artigo de 1992,
havia uma contradição entre a Lei de Anistia e constituição de 1967 que desmente
a tese que catapulta os crimes praticados sob a cobertura do Estado no regime
ditatorial para fora da esfera jurídica. Citemos as palavras do jurista: "Com
efeito, a Lei de Anistia, lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi ditada
quando vigorava no Brasil, formalmente, a Constituição de 1967, com a nova
redação que lhe deu a chamada Emenda Constitucional n.1, de 1969. Essa
Constituição estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes dolosos,
intencionais, contra a vida seriam julgados pelo Tribunal do Júri." (Dallari
1992: 32) Ele concluía que "os dispositivos da Lei de Anistia não podem
prevalecer contra a Constituição. [...] os torturadores eram servidores públicos
civis ou militares que agiam profissionalmente, mediante remuneração, não
podendo alegar objetivos políticos. [...] Os torturadores homicidas, e
possivelmente outros, nunca foram anistiados." De resto, Comparato levantou
dúvidas já em 1995 sobre o fato de que a Anistia cobriria os crimes cometidos
pelos agentes estatais. O texto de 1979 dita que "é concedida anistia a todos
quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes [...]". Como se sabe, é
por esta clausula da conexividade que se tenta eliminar os agentes da ditadura
da esfera da lei. É evidente que esta lei, como mencionei, foi feita, antes de
tudo, pelos agentes da ditadura e para estes mesmos agentes. Mas não
cabe, na interpretação da letra, especular sobre as intenções que estavam na sua
origem. Se ela está "mal" redigida e não acoberta os crimes do aparato
civil-militar tanto melhor para os que, hoje, visam à justiça.
Este debate sobre a conexividade ou não dos crimes dos agentes da ditadura
voltou à baila recentemente após a abertura do processo da família Teles
(Maria-Amélia Teles, César Teles, Janaína Teles, Edson Teles e Criméia Almeida
Teles) contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigiu a unidade do
DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1974.4
No período "houve 502 denúncias de torturas" contra esta unidade. (Folha de
S.Paulo, 9.11.2006, p.A9) O juiz Santini Teodoro considerou que o coronel
Ustra era passível de ser réu e não necessariamente a União. Como o que está em
jogo são "direitos humanos", para ele este tipo de crime é imprescritível.
Apesar deste processo ter um caráter declaratório e não visar a punição do
membro do aparelho de repressão, trata-se sem dúvida do maior passo já dado no
Brasil, desde a decretação da Anistia, em direção à busca da justiça referente
aos desmandos da ditadura de 1964-1985. Este processo trouxe mais uma vez à tona
os malabarismos jurídicos e "narrativos" dos membros do regime ditatorial. O
ex-ministro Jarbas Passarinho, em entrevista Folha de S.Paulo
(22.11.2006, p. A11) tentou ao mesmo tempo dizer que, diferentemente dos regimes
totalitários, a tortura no Brasil não era institucional. De fato, ela era
"institucionalizada", ou seja, parte integrante da instituição da ditadura, mas
não institucionalizada no sentido de ter um código legal que a justificasse
integralmente: mas tampouco nos regimes totalitários a tortura foi
institucionalizada desta forma. Sabemos que os Campos de Concentração nunca
foram propagandeados pelos nazistas, assim como a tortura e a execução nas
câmaras de gás também não passavam por tribunais ou processos jurídicos. A
decisão da chamada "solução final" foi feita em uma reunião secreta, na casa de
Wansee em Berlim. Passarinho atribui o grande número de torturados e
desaparecidos na Argentina, Uruguai e Chile ao "sangre caliente" dos espanhóis.
Por outro lado, na mesma entrevista Passarinho afirma que "Ustra, jovem major,
recebeu uma missão", e que, portanto, estava submetido a seus comandantes...
logo não seria responsável por crimes que o próprio Passarinho afirma não terem
existido. Ou seja, a tentativa de levar lado a lado o argumento da "obediência
devida" com o da inexistência da tortura revela um típico gesto (antes de mais
nada cínico) dos membros do poder que querem acobertar a todas custas os fatos e
afastar seus responsáveis do "julgamento devido".5
Outro argumento contraditório com relação à afirmação de que não houve violência
do lado dos agentes do regime ditatorial é o que volta a bater na tecla da
Anistia de 1979. Passarinho afirma que esta "foi uma anistia mútua. É preciso
reconciliação. Para reconciliar é preciso esquecer." Este argumento é excelente
pra os verdugos, mas para as vítimas da violência (e estas vítimas são não
apenas os torturados, os assassinados e desaparecidos, mas seus familiares e
também toda a sociedade que é vítima da violência ao excluí-la da esfera
jurídica) este argumento é cínico. Finalmente, outro argumento usual entre os
defensores da "anistia mútua" é o de que os crimes ocorreram dos dois lados.
Este argumento novamente assume que ocorreram crimes praticados pelos agentes do
poder ditatorial. Ele reaparece em artigo recente publicado no mesmo jornal
(28.11.2006, p.A3). Nele Passarinho volta a insistir na tese do esquecimento
reconciliatório: "Intentávamos [com a Anistia] cicatrizar feridas e reconciliar
a nação por meio do esquecimento recíproco das violências mútuas, as quais
haviam despertado emoções intensas e dolorosas." Ora, como decretar-se o
esquecimento de quem foi humilhado, torturado?6
Como pedir aos familiares que esqueçam seus familiares desaparecidos? Como pedir
a uma nação que se esqueça do que aconteceu naqueles anos de chumbo? Muito pelo
contrário, para reforçar-se a democracia e para a construção de um verdadeiro
Estado de Direito, cabem, antes de mais nada, um dever e memória e um dever de
justiça.
Poucos dias antes da publicação deste artigo de Passarinho a mesma
Folha publicara um pequeno artigo do ex-presidente José Sarney defendendo
a anistia e o esquecimento.7
Sarney concluía seu texto com as palavras: "Portanto, é necessário um esforço
nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos esses fatos no silêncio da
história. Não remexamos esses infernos, porque não é bom para o Brasil. Essa
conduta nos distingue dos nossos vizinhos e, assim, o Brasil é uma sociedade
reconciliada." É importante analisar a escolha dos termos por parte do
ex-presidente escritor. Ele afirma que devemos sepultar esses fatos (ou
seja, as torturas, os assassinatos, os corpos insepultos...) no silêncio da
história. Em que medida a história é silêncio, é túmulo, pedra do
esquecimento? Apenas do ponto de vista dos vencedores que vêem na história um
enorme triunfo, silente, por onde desfilam seus heróis sob mantos brilhantes e
louros da glória. Para os humilhados, perseguidos, que se opuseram aos déspotas,
para estes a história grita e exige reparo. O próprio Sarney reconhece que este
passado é um inferno, mas ao defender o pacto do esquecimento se
posiciona do lado oposto ao Estado de Direito e da construção da democracia. Não
podemos montar nossa casa sobre uma montanha de ossos. Estes devem ser
devolvidos às suas famílias e devidamente nomeados e enterrados. Os responsáveis
pelos crimes devem ser julgados. A frase final de Sarney neste texto é mais uma
típica formulação de nossas elites políticas: o brasileiro quer a reconciliação
(e não a luta). Esta boutade, que lembra o mote do brasileiro "homem
cordial", é típica daqueles que sempre teimam em ver no "povo brasileiro" uma
massa amorfa e subserviente. A "cordialidade" sempre foi uma conquista das
elites que usaram para tanto da violência para gerar esta "incrível"
reconciliação e cordialidade.8
Mas a referência tanto de Passarinho como de Sarney aos casos dos países
vizinhos é muito importante. Devemos apenas reverter o acento dado: não devemos
temer estes movimentos em direção à justiça, mas sim saudá-los. De fato, vemos
que nestes países conseguiu-se arrancar a mordaça imposta pela anistia. A Lei de
anistia chilena, de 1978, foi redigida pelos próprios membros do governo
ditatorial e publicada quando o Congresso estava fechado já há cinco anos. O
governo de Michelle Bachelet está revogando esta lei. No Uruguai o governo
Tabaré Vazquez facilitou uma interpretação da lei de anistia que tem permitido o
julgamento de militares e policiais que violaram os direitos humanos na ditadura
de 1973-1984. Na Argentina a lei "del Punto Final" (n° 23.492 de 12/1986), que
limitou o período de acusação dos envolvidos na repressão militar a apenas 60
dias, teve as suas drásticas conseqüências radicalizadas com a "Ley de
Obediencia Debida" (7/1987) que isentou de culpa todos os militares inferiores
ao General de Brigada. O governo Kirchner revogou estas leis. As lutas
persistentes das "Madres de Plaza de Mayo", entre outros grupos de resistência
ao esquecimento oficial, são responsáveis por esta reviravolta. É verdade, por
outro lado, que existem diferenças entre cada um destes países. A ditadura na
Argentina fraturou muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em
torno da memória da ditadura não pode ser comparado ao que aconteceu no nosso
país vizinho. A atual discussão em torno do futuro da ESMA9
reflete a dimensão da violência que foi exercida então pelos militares.
Calcula-se que cerca de 30.000 pessoas desapareceram nas mãos do Estado durante
a ditadura naquele país. Cerca de 300.000 argentinos tiveram que se
exilar.
Mas apesar destas diferenças, certas questões são comuns a estes países.
Isto fica patente, por exemplo, quando algumas obras literárias conseguem
atingir certas estruturas de poder, jurídicas e de memória, que são
compartilhadas no Chile, Argentina, Uruguai ou Brasil. Este é o caso da peça e
Ariel Dorfman La muerte y la doncella. Nesta obra, carrasco e vítima se
confrontam sob uma nova divisão de forças, com a vítima dominando a situação. Um
terceiro elemento, um advogado - recém nomeado para fazer parte de uma comissão
que deveria levantar os casos de abuso dos direitos humanos com conseqüências
fatais - e que é marido da vítima, representa de certo modo a instância
jurídica. A almejada justiça - que não pode ser confundida com o direito e suas
instituições - paira como uma promessa irrealizável na peça. Oposta a ela
encontra-se as forças do oblívio, sugeridas, por exemplo, na frase do personagem
Gerardo, o advogado, "vamos virar essa página de uma vez por todas e nunca mais
falar sobre isso, nunca"...10
Não existe reparação: mas a confissão e o procedimento do julgamento
(mesmo sem a condenação) representados na peça, mostram que estes dispositivos
têm um papel central a desempenhar no trabalho de memória (jurídico e lutuoso)
do período ditatorial. O próprio Dorfman afirma no posfácio de sua obra que ele
buscou uma purgação do terror e da comiseração com a sua peça (Dorfman 1992: 87)
- o que faz lembrar os tribunais sul-africanos de reconciliação idealizados pelo
bispo Tutu que visam a confissão e o encontro catártico com o mal passado sem,
no entanto, ter implicações propriamente penais. Esta obra de Dorfman vale para
boa parte da América Latina.
"Você vai pagar, e é dobrado,/ Cada lágrima
rolada/ Nesse meu penar"
Carlos Alberto Idoeta, em um artigo de 1995, recordou, dentro do debate
sobre a responsabilidade jurídica dos agentes do regime ditatorial, as palavras
de A condição humana, de Hannah Arendt, que afirmam que "Os homens são
incapazes de perdoar o que não podem punir." (Idoeta 1995: 76) No campo da
discussão sobre os fatos ocorridos nas ditaduras civil-militares na América
Latina não cabe se falar em perdão. Como notou Derrida em vários de seus textos,
a justiça, a anistia e, por outro lado, o perdão funcionam em registros
diversos. Perdoar tem a ver com dar um dom (isto vale também para outras
línguas: pardon, forgive, Vergebung). Trata-se de uma restituição, de uma
volta a termos de igualdade: diante da enormidade de certos crimes, isto é
impossível. Como nota ainda Derrida, a cena do perdão exige uma "solidão a
dois", um "face a face": nada disto pode ser desejado ou seria possível diante
dos crimes em questão aqui. A noção de crime contra a humanidade, derivada do
tribunal e Nuremberg e mesmo a "Comissão de Verdade e Reconciliação"
sul-africana não tem também nada em comum com o conceito de perdão.11
(Derrida 2005: 19) Caso este perdão fosse possível, quem pediria perdão a quem?
A princípio caberia sempre às vítimas propor este perdão. Mas quem o concederia?
Pode-se perdoar no lugar de pessoas que morreram? Assim como não se pode
testemunhar no lugar de um outro, também não podemos perdoar pelo outro. Como o
testemunho também, o perdão se liga a situações extremas: em ambos os casos
existe uma espécie de impossibilidade a priori. Não se pode testemunhar
totalmente a catástrofe provocada pelos homens, o mal absoluto, assim como não
se pode perdoar estes fatos. Por outro lado, existem dispositivos
jurídico-estatais que procuram estabelecer certas modalidades ("impuras") do
perdão, tais como a graça e a anistia.
O importante é ter claro que estes dispositivos são justamente os que
tornam explicito o quanto o Estado de Direito é tênue e vive normalmente às
custas de "exceções". Ao decretar a anistia (no seu sentido de "esquecimento
oficial", de "pôr a sujeira para debaixo do tapete") o Estado se revela como
cúmplice de crimes e de criminosos.12
A memória do mal é uma importante contraparte da justiça e sem esta, por sua vez
(por mais imperfeita que ela seja), o Estado de Direito e a Democracia não podem
se construir. Os antigos donos do poder sempre declaram que esta memória do mal
é apenas fruto do ódio, da vontade de vingança. Mas justamente não se
trata da lei do talião, do "olho por olho, dente por dente", porque estamos
diante de crimes sem-medida. Trata-se, antes, do re-conhecimento do mal e
do restabelecimento da verdade. Não se pode falar de memória social e em
democracia sem se levar em conta o papel da instância jurídica neste trabalho de
restabelecimento da verdade dos fatos.
Diante da retomada em boa parte da América Latina da questão dos crimes
cometidos nas últimas ditaduras militares, podemos perceber que atingimos um
novo momento nos debates sobre este passado. Agora não se coloca mais o
tema da proximidade e da necessidade e se calar em troca da democracia. Existe
um clima interno e internacional (lembremos do caso de Pinochet preso na
Inglaterra em 1998) que indica claramente que já atingimos um ponto no qual se
pode sim enfrentar os crimes cometidos neste passado sem que isto signifique
abandonar o projeto democrático. Na Alemanha, para retomar a comparação, o
tribunal de Nuremberg pôde ocorrer já em 1945 por conta dos aliados que o
impuseram. Mas a própria sociedade alemã precisou de décadas para poder encarar
a questão das responsabilidades individuais. Apenas na última década ela começou
a aceitar a culpa do seu exército nas ações de extermínio na Europa Oriental.
Este país mostrou ser possível este enfrentamento do passado, apesar de todas
dificuldades que este trabalho de "perlaboração" do passado implica. Sem este
enfrentamento, que deve ser dar no registro da memória familiar, coletiva e
social e que inclui também necessariamente o enfrentamento jurídico dos crimes
do passado, a sociedade está condenada a repetir seus erros. (Cf. Freud
1914)
Mas a memória pensada em sua chave política, jurídica e moral não pode
ocultar o fato de que ela é também memória antropológica. Nunca é demais
insistir no fato de que a luta pela justiça se dá em diferentes níveis, todos
distintos e ao mesmo tempo determinantes entre si: o da memória e história da
sociedade, o da memória de grupos sociais e o da memória dos familiares. A luta
de Antígona é tanto familiar como cívica. Do mesmo modo, no campo histórico, a
luta pela restituição dos corpos dos "desaparecidos" na ditadura, a luta pela
restituição da verdade e a luta pela justiça, deve levar em conta estes diversos
níveis de relacionamento com o passado. Tratar o desejo de se saber todos os
fatos que cercaram a morte de um parente e o local de seu enterro como um
sentimento nascido do revanchismo ou do ódio é não entender minimamente que toda
nossa identidade e memória social passa pelo nosso relacionamento com nossos
antepassados. O núcleo cultural da memória é o culto e respeito para com os
mortos. A memória do mal de quem perdeu um familiar ou foi torturado é uma
memória onipresente e aterrorizante. É papel da sociedade ajudar estes
indivíduos a tentar reconstruir suas vidas e isto depende tanto da restituição
da verdade como da construção da justiça. Cabe ao Estado abrir seus arquivos
(incluindo os arquivos das forças armadas) visando esta busca da verdade.13
Da memória do mal praticado pelas ditaduras na América Latina podemos
derivar tanto o dever de memória como o de reparação (impossível, mas mesmo
assim inescapável). Não existe "arte do esquecimento", por mais que seja esta
arte que os antigos donos do poder tentam inventar e praticar com o
desaparecimento de corpos e de arquivos. Por outro lado, existe uma arte da
memória e esta, desde as suas origens, tem como núcleo a tentativa de se dar
nome aos mortos e de enterrá-los. Refiro-me aqui ao poeta Simônides de Ceos
(apr. 556-apr.468 a.C.), considerado o pai da arte, da memória clássica e que,
segundo Cícero (De oratore II, 86, 352-354), Quintiliano (11, 2, 11-16) e
o autor anônimo da Rhetorica ad Herennium, teria estabelecido as bases da
mnemotécnica em função de um acidente. Nessa anedota Simônides é salvo do
desabamento de uma sala de banquete onde se comemorava a vitória do pugilista
Skopas. O que nos importa nessa história é o que se sucedeu após essa
catástrofe. Os parentes das vítimas, que queriam enterrar os seus familiares,
não conseguiram reconhecer os mortos que se encontravam totalmente desfigurados
sob as ruínas. Eles recorreram a Simônides - o único sobrevivente - que graças à
sua mnemotécnica conseguiu se recordar de cada participante do banquete, na
medida em que ele se recordou do local ocupado por eles. Ele associou o
nome de cada um dos mortos ao local em que eles foram encontrados mortos - como,
hoje em dia, as equipes de medicina forense o fazem em vários países da América
Latina e de outros continentes. Se a mnemotécnica caiu em desuso há alguns
séculos14,
por outro lado esse procedimento de topografia do terror permanece
central na arte da memória contemporânea. Ele serve de antídoto aos
negacionistas que sempre estiveram e estarão de plantão quando fatos
extremos acontecem.
Para concluir estas reflexões sobre a anistia como amnésia oficial e o
dever de memória gostaria de tecer alguns comentários sobre os versos de uma
música de Chico Buarque que representam de modo compacto e denso muitos aspectos
da memória dos desaparecidos durante a ditadura de 1964-1985 no Brasil.
Refiro-me ao seu "Angélica" (de Chico Buarque e Miltinho de 1977)15,
inspirado pelo assassinato de Zuzu Angel (Zuleika Angel Jones) em 1976 por
membros do aparato de governo que queriam impedir a continuidade de suas
investigações sobre o paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones, raptado
e assassinado por agentes da ditadura). Não por acaso este episódio da história
da ditadura se tornou tão importante hoje, tendo sido inclusive "popularizado" a
partir do filme de Sérgio Rezende. Zuzu representa ao mesmo tempo a vontade de
restabelecimento da verdade, o desejo de reencontrar um parente arbitrariamente
raptado, torturado e assassinado e o peso terrível da realidade do oblívio
imposto pelas autoridades que, ao final, desaguou em um novo assassinato, ou
seja, o da própria Zuzu. É-lhe negado o direito de enterrar seu filho. Sua luta
pela verdade se confunde com a luta pelo corpo do filho. Os desaparecimentos do
corpo e da justiça se misturam em sua história. Este caso revela ao mesmo tempo
as práticas homicidas do Estado terrorista de 1964 e a tentativa de se
representar esta arbitrariedade. Zuzu para fazer seu luto precisava, antes de
mais nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver, enterrá-lo, fazer com
que a justiça se cumprisse. Angélica enfatiza o aspecto repetitivo da
memória do mal, que vive de observar uma ausência que não pode ser sanada a não
ser com a restituição do corpo. Na música, a repetição do verso "Quem é esta
mulher", a volta repetitiva do advérbio temporal "sempre" e a imagem de um sino
que sempre dobra da mesma forma representam esta característica da memória do
mal como constante e reiterativa. A cena desenhada é a da mãe que
quer enterrar seu filho, dar uma moradia e paz para seu corpo - requisito
essencial para que ela mesma recupere a sua paz. Esta mulher, visada pela
pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu, como as outras mães de
desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã de seus filhos
desaparecidos (abandonados em valas comuns ou jogados nas profundezas dos
mares). A mãe na música quer "lembrar o tormento" que fez seu filho suspirar: a
narração dos fatos, a restituição da verdade é uma etapa essencial no
trabalho de luto assim como nos processos de transição de regimes autoritários
para democráticos. As Comissões de Verdade existem justamente para restituírem
os fatos e permitirem a construção de uma sociedade que possa viver livre do
peso do passado com suas injustiças. No fim, na última "estrofe", a mãe quer
cantar por seu menino, que não pode cantar. Ela mesma se torna testemunha desta
história que encerra em si o silêncio, o apagamento da verdade. Assim como a
própria música de Chico Buarque traz em si esta história perfurada, que não
cessa de voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não foram
feitos.16
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