quinta-feira, 2 de maio de 2013

Entrevista - Ellen Otéria

 
 
Dona de uma das vozes mais marcantes da atualidade e com um carisma ímpar, Ellen Oléria se tornou fenômeno desde que entrou para a primeira edição do programa The Voice Brasil, exibido pela Globo no final de 2012. Mas se engana quem acha que a carreira desta jovem brasiliense começou no programa. Seu talento para a música vem desde criança, na busca do ritmo entre bater tampa de panela e brincar com a sonoridade de copos com água. Em 2009, quando lançou seu primeiro projeto autoral, já era apontada como o maior expoente do cenário musical de Brasília. Hoje, se divide entre gravação do novo CD, entrevistas e shows, sem deixar que a fama lhe tire a humildade e a perseverança de uma verdadeira artista.
 

 
Mulher, negra e homossexual, Ellen é merecedora da atenção que tem recebido dos mais diversos veículos de comunicação. Quem já teve a oportunidade de assistir a uma de suas apresentações dela sabe que, dos vários talentos da cantora, sua presença de palco se mostra como uma das marcas mais genuínas. O olhar penetrante e a voz envolvente são somente a porta de entrada para um universo que, muitas vezes, parece não caber dentro de uma única pessoa. Não restaram dúvidas sobre a validade de sua vitória mais do que merecida, afinal, foi a escolha do público, com 39% dos mais de 10 milhões de votos computados. A vitória garantiu um contrato com a Universal Music, um prêmio de 500 mil reais em dinheiro e uma apresentação no réveillon de Copacabana, onde esteve no palco ao lado da Claudia Leitte.
Ellen faz questão de revelar-se como sua própria referência de beleza e atitude. Em uma das mais emocionantes apresentações do The Voice Brasil, ela já chegou à telinha mostrando a que veio, e foi uma das poucas candidatas a ter a aprovação dos quatro jurados do programa em sua primeira audição. Mas não é apenas sua voz que surpreende. Desde muito pequena se mostrava uma ótima instrumentista também. Aos 16 anos já tinha aprendido a tocar violão, bateria, baixo, cavaco e clarinete, embora admita que o último instrumento seja o único que não domina muito. Essa negra de sorriso largo tem o irmão como grande mestre de alguns instrumentos, embora seja autodidata e não negue a influência da igreja em sua formação musical, já que frequentava uma Igreja Batista onde chegava antes dos ensaios da banda só para tocar poder tocar bateria, set de percussão, baixo, violão, e qualquer instrumento que visse pela frente.
Influências é o que não faltaram para a cantora. Sua música é considerada uma mistura de samba, afoxé, jazz e hip hop, tudo com muito equilíbrio e sobriedade. Entre os ídolos sempre citados, tem no repertório nomes como Gilberto Gil, Alceu Valença (que interpretou uma de suas apresentações finais no The Voice), Carlinhos Brown (seu "tutor" no programa) e Racionais MC's, além de divas do samba, como Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus e Leci Brandão. E o resultado deste caldeirão musical é visto (e ouvido) em seu primeiro CD, Peça, lançado em 2009, onde a brasiliense se mostra uma intérprete versátil, com letras e melodias envolventes, com flexibilidade e maturidade na voz, sem perder a sensibilidade feminina.
Ellen Oléria é formada pela Universidade de Brasília em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas. "Sou uma professora de teatro que nunca exerceu a profissão." Atua desde o ano 2000 no circuito cultural como cantora, compositora e instrumentista, ou seja, fazendo de tudo um pouco. No currículo exibe os prêmios do Festival Universitário FINCA (Festival Interno de Música Candanga), da Universidade de Brasília (UnB), e o fato de ser a maior vencedora da história do Festival de Música Tom Jobim do Sesc/ DF. Enfim, Ellen já vivia uma vida profissional empolgante, reconhecida regionalmente, mas que depois do The Voice Brasil ganhou o país. Agora conta com a assessoria de sua namorada, Poliana Martins, que também cuida dos figurinos da artista.
Em entrevista exclusiva, sua primeira para a revista RAÇA BRASIL, Ellen Oléria foi espontânea em demonstrar sua força como mulher negra. Ela falou sobre as dificuldades de ser artista no país, sua relação com o movimento negro e contou detalhes de sua participação no programa, que emocionou o Brasil inteiro.
Como você começou na carreira musical?
Eu acho que a música tem algo de especial, uma das melhores memórias que temos. Socialmente, eu acho que ativamos a nossa memória, a nossa lembrança, a partir da música e da sonoridade das coisas. Às vezes, escutamos uma canção e transcendemos para outro mundo. A música sempre esteve presente, e sempre fez parte do meu mundo, seja a sonoridade da sanfona do meu pai, as aventuras com os meus irmãos na cozinha - enfim, achando as sonoridades que nos interessassem. Cansei de bater tampa de panela, fazer instrumentos com arroz, copos, esse tipo de coisa, ou seja, experimentar, que é até comum com as crianças, mas é fazer música também.
Então é uma questão de berço?
A música sempre foi um ponto de encontro para nós. Tinha o rádio da minha mãe, que ficava sempre em cima da geladeira, a sanfona do meu pai que ele tocava todo domingo de manhã. A gente ouvia de tudo. Minha mãe tinha um gosto musical muito peculiar, inclusive, com estas histórias que a gente escutava no rádio da Dona Eva. Tudo foi muito importante musical e artisticamente para mim. Mas a minha primeira aproximação com um instrumento profissional foi bem minha, na verdade: meu irmão tinha um violão que não me deixava tocá-lo. Então, quando ele saía, eu arrombava o quarto dele, pulava a janela, pegava o violão e tocava, sozinha mesmo, e quando estava perto da hora de ele chegar, pulava de volta a janela e colocava o violão no mesmo jeitinho na cama.
Sua carreira profissional começou aos 16 anos?
Sim, digo sempre isso porque eu entendo que ser profissional é necessariamente ter o apoio de uma instituição e ter o cotidiano dedicado exclusivamente para esta função. Isso faz de mim profissional. Falo que comecei com 17 porque foi o ano em que tirei a carteira da Ordem dos Músicos do Brasil, mas acredito que antes disso eu já estava atuando profissionalmente.
Você se formou na UnB, uma das primeiras universidades brasileiras a aderir ao sistema de cotas. Para quem vivenciou o dia a dia da instituição, o que você acha das cotas?
Houve muitas conversas sobre as cotas, encontrei muitos professores que expressavam na sala de aula os seus "achismos". A gente ouve falar em cotas raciais há muito tempo para garantir o acesso a pessoas brancas, principalmente no sentido imigratório para o Brasil na década de 30, quando pessoas vinham de outros países para "embranquecer" o país. Se isso foi tão utilizado para nos violar no passado, por que não podemos utilizar este recurso para reparar danos causados durante todos estes séculos? As cotas, a meu ver, são um grande sucesso, não só para a comunidade negra, mas para toda a população brasileira. Ele não é um sistema perfeito - na verdade nenhum sistema é, porque é feito por pessoas, e as pessoas não são perfeitas - mas eu acredito que é possível que a sociedade observe que nós não temos nada a perder com a implementação deste sistema. Muito pelo contrário, nós estamos um pouco mais perto de vivenciar uma expectativa que vem sendo construída há muitas décadas, de que nós somos o futuro. Acho que podemos ter uma história muito bonita, com a equidade que temos sonhado há tanto tempo.
Você se considera parte do movimento negro?
Acredito que, diante de uma luta histórica dos movimentos negros, nós já alcançamos vários direitos, inclusive a possibilidade de eu não apanhar de graça da polícia quando estiver caminhando com o meu pandeiro. Quem é [negro] sabe que isso já aconteceu com muita frequência. Hoje podemos pisar nos palcos e ter o direito de ser tratados iguais a qualquer outra pessoa. Uma vez ouvi a Leci Brandão dizer que a Jovelina Pérola Negra foi pouco convidada para fazer TV porque a pele dela era muito escura para fazer televisão. Eu tenho os traços marcados por estas histórias, que são tão minhas quanto as histórias que eu ouvia a minha mãe contar, de casas onde ela não conseguia trabalhar porque havia pessoas mais claras do que ela para exercer a função.
Você já tinha uma carreira antes do programa da Globo. O que te motivou a entrar no The Voice Brasil?
Existe algo muito cruel em termos de arte, que tem a ver com esta dificuldade em garantir estabilidade financeira. Mesmo com status, uma carreira consolidada, ou mesmo com pessoas acompanhando o seu trabalho, isso tudo nem sempre garante pão na mesa. Nós que estamos nesta área sabemos disso. É algo que se repete: há grandes nomes da história da arte brasileira que estão passando dificuldades de várias ordens. A instabilidade do meu ofício me fez passar por problemas por tanto tempo, que cheguei a um momento crucial: todos os dias eu pensava em não fazer mais música, não seguir mais a profissão de cantora, até para poder atender às minhas demandas. Eu também quero atender aos meus desejos, quero comprar aquele vestido, fazer uma viagem com a minha família, como todo mundo. Estas inconstâncias de poder passar três meses sem trabalho mexem muito com a nossa autoestima.
Foi aí que você se inscreveu para o programa?
Eu decidi participar porque acredito que há algo de muito imponente nesta caixinha de ondas eletromagnéticas que é a TV. O Brasil é um país com uma cultura televisiva muito intensa, apesar de eu não ser uma telespectadora. Para você ter uma ideia, eu nem tenho o aparelho em casa, não me interesso. Mas sei da importância deste veículo. Toda a geração da década de 80 foi criada por ela, por isso acho que já assisti televisão o suficiente para o resto da minha vida. Mas eu acredito que a TV chega com uma força muito grande nos lares brasileiros, não só aqui como em todo o mundo, e achei que seria inteligente acessar este meio para fazer minha música, chegar até estas pessoas com a minha arte. Tantas coisas chegam pela TV - o cinema, por exemplo, foi popularizado entre as classes mais pobres pelo mundo com a televisão - e acho lindo isso: levar tanto para as casas ricas quanto para as casas pobres, brancas ou negras, hétero ou homossexuais, enfim, levar para todos uma força cultural. Eu acreditei no crivo de cada olhar das pessoas, pois independente de sua origem, todo mundo tem condições de ver e ouvir algo e ter critérios para avaliar. Assim me coloquei à prova para o povo brasileiro. Eu não imaginava que teria tamanha expressão, que iria encontrar as pessoas pelas ruas emocionadas ao me encontrar, porque, ao me ver, elas voltaram a ter a mesma sensação que tiveram ao me ouvir. São pessoas que ficam arrepiadas a até mesmo chegam às lágrimas. Esta é a força da televisão, e eu acho maravilhoso que a música chegue a essas pessoas por meio dela.
E foi esta emoção da sua música que conquistou o público?
Eu tenho convicção de que sim. Existe uma certeza no meu coração desde que comecei a musicar, e é um ensinamento que eu trago desde quando eu me apresentava com os amigos e amigas na Igreja Batista, onde toquei até os meus 15 anos. Eu sei que a música que faço é muito maior do que eu. Ela é muito mais esperta, mais rápida, e chega às pessoas numa velocidade brutal. Eu sou só um canal para a minha música. Provavelmente se não fosse eu musicando, seria outra. O corpo é finito, mas a música não. Ela continua. É essa magia que extrapola fronteiras quando estamos em um grupo, e não importa de onde eu vim ou para onde eu vou, se essa música diz o que ela vem dizer, isso basta.
A temática afro sempre esteve presente nas suas apresentações. Qual a importância de trazer as suas raízes para o público em geral?
A força afro não está só nas músicas que toquei ou nas poesias que embalam as minhas apresentações. Eu acredito que a influência negra está presente em grande parte da produção musical do Ocidente. Não só nas músicas que interpretei no programa, mas em toda a música pop ou contemporânea. Esse encontro étnico que temos ao longo dos anos marca demais a produção universal de música. E essa presença no meu trabalho é indissociável, porque é de um lugar afro que ela emana. Eu poderia cantar uma música erudita, mas essa ancestralidade são os fundamentos das canções que faço. Esse é o grande barato das músicas ocidentais, que promovem este encontro de tantas tradições. Não posso negar que a minha música em especial tem muito de raízes: essa sou eu.
Sua mãe acompanhou suas apresentações no The Voice Brasil. Como você vê a presença dela na sua vida profissional e pessoal?
Minha mãe é minha heroína; é minha referência no encontro com as pessoas. Ela me deu vários presentes como este, o contato especial com o próximo. Ela me apoiou sempre, apesar de esta profissão não ter sido uma razão de tranquilidade para ela, afinal eu às vezes tinha que sair de madrugada para tocar e ela não dormia enquanto eu não chegasse em casa. Mas eu fico feliz que a música tenha dado a ela não apenas aflições, mas também muitas alegrias. Minha mãe é minha conselheira, é a pessoa para quem eu vivo, minha filósofa, que guarda todos os meus passos e me faz seguir adiante.
Durante o programa, houve uma reação positiva sobre a Globo ter colocado a Poliana como sua namorada na legenda. Você acha que este detalhe pode ser considerado uma conquista, mesmo que pequena?
Eu não acho pequena. Acredito que é uma conquista muito grande quando vemos a força da repercussão na sequência do fato. Acho que se falou muito disso por ser importante, e é muito legal ser referência de uma coisa boa como esta. Esta é uma categoria tão sofrida: ainda temos tantas coisas a fazer, tantas lutas, e ainda há tantas violências contra a nossa escolha. A questão da legenda foi algo muito bonito, pois ilumina quem demonstra seus afetos como eu. É importante que possamos celebrar essas conquistas juntos, como um grupo, já que infelizmente os nossos ancestrais não puderam viver isso.
Qual foi o impacto de vencer o The Voice Brasil e como você vem lidando com esta fama?
A vida tem sido muito generosa comigo. Fui muito abençoada e, quando acabou o programa, os dias seguintes serviram para que eu visse que existem pessoas que gostam muito de mim, que talvez haja forças celestes que estão do meu lado e que me deram forças para que eu fizesse algo bom para a minha gente, para o meu lugar. Espero poder multiplicar as coisas boas que tenho recebido e que tenha a oportunidade de produzir e compartilhar com as pessoas que acreditaram e se comoveram com a minha música. Eu sou muito grata por tudo isso.
O que é ser mulher negra?
Ser mulher é ser realizada. É viver um sonho dentro de um sonho.
Quais seriam as suas principais influências? Você se encontrou com alguns deles depois de vencer o The Voice Brasil?
Sim, tenho a felicidade de compartilhar a minha alegria e cantar com pessoas como a banda Preto Tu, com quem tive a honra de cantar em Salvador. No The Voice Brasil, tive o Carlinhos Brown ao meu lado, conheci a Maria Gadú. Como eu disse antes, a música está muito ligada a tudo o que vemos no dia a dia, e eu me sinto privilegiada por encontrar pessoas que estão embalando a memória de tanta gente, há tantas gerações, inclusive a minha. Quando eu penso sobre qualquer coisa, estas pessoas estão ali, do meu lado, no meu imaginário, e é muito bom ter este sentimento materializado.
Quais são os próximos desafios para Ellen Oléria?
Os desafios nunca acabam, não é? Agora é produzir um álbum, trazendo esta alegria que o povo brasileiro me deu. Quero devolver para as pessoas a fé que elas depositaram em mim. Será para mim um disco histórico, porque será a primeira vez que estarei assistida por uma grande instituição como a Universal Music Brasil, e vamos fazer um disco bem bonito. Este é o desafio.
O que o público deve esperar deste novo CD?
Este CD deve sair em junho deste ano, e o público pode me esperar inteira nele. O disco tem a produção de Alexandre ___, que tem se tornado um grande amigo desde o programa e está cuidando com muito carinho deste trabalho que está chegando. O que eu posso garantir é que estarei inteira neste disco.
Você já sofreu preconceito?
Eu não quero trazer à minha memória, que é para não dar espaço para isso. O que posso te dizer é que a minha presença no planeta incomoda muita gente, e de fato isso não me interessa muito. Como diria a Rita Lee: "Quem não está do meu lado, que saia da minha frente". Eu continuo caminhando, a despeito destes encontros ou comentários, eu quero ao meu lado quem for produtivo, e o que não for eu quero deixar para trás.
E a Ellen Oléria fora dos palcos? O que você faz quando não está cantando?
Gosto muito de namorar, mas faço isso enquanto trabalho também. Confesso que o trabalho não tem me abandonado muito. Mas eu gosto de cozinhar, ver filmes, principalmente desenhos animados.
Como vencedora, que mensagem você gostaria de deixar para as mulheres que votaram em você e que estão lendo esta matéria?
Eu cheguei a dizer quando venci o programa que eu não sou alguém a ser alcançado, eu sou o padrão da mulher brasileira. Depois eu fiquei pensando e descobri que realmente sinto isso, que eu sou o meu próprio padrão. Eu queria dizer que me colocaram nesta posição e mentiram sobre muitas coisas sobre mim, mas eu continuo com o meu próprio discurso. Fico feliz por ter tantas mãos segurando nas minhas, me trazendo sempre muito carinho. Quero dizer para todas: vamos que vamos, que o show não pode parar. Muito axé. Sarava!

Revista Raça Brasil

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