quarta-feira, 22 de maio de 2013

Te Contei, não ? - CALABAR - Põe as mãos em mim





 
 
 
RIO - Com lotação esgotada para a estreia, no dia 8 de novembro de 1973, e mais quatro sessões já vendidas, a peça “Calabar: o elogio da traição”, de Ruy Guerra e Chico Buarque, não pôde abrir as cortinas. Naquela noite, o Teatro João Caetano, sede do espetáculo, tornou-se palco de um dos maiores crimes contra a liberdade de expressão da história do teatro brasileiro. Por determinação do general de brigada Antônio Bandeira, então diretor-geral da Polícia Federal, o espetáculo, produzido por Fernando Torres (1927-2008) ao custo de três milhões de cruzeiros, foi interditado — e assim ficou por sete anos. Depois de dois meses de ensaios sob o comando do diretor Fernando Peixoto (1937-2012) e a direção musical de Dori Caymmi, uma trupe de 48 atores, entre eles Betty Faria, viu o sonho de encenar um musical brasileiro se desmanchar. Esse sonho perdido alimenta a montagem, já em andamento, que irá celebrar os 40 anos do espetáculo, com direção do próprio Guerra. (Ouça acima 'Fado tropical', da trilha do musical)
A estreia será também em novembro e no mesmo João Caetano que deveria ter abrigado a saga de Domingos Fernandes Calabar (1600-1635). Realizador de marcos do cinema nacional como “Os fuzis” (1964), Guerra já convidou Letícia Sabatella para integrar o elenco, no papel de Bárbara, vivida por Tetê Medina na versão proibida.


— Em 1973, queríamos que a Censura viesse logo, já nos ensaios, para evitar uma proibição depois que já tivéssemos levantado o espetáculo inteiro. Corremos atrás dos censores para que eles nos vissem e decidissem logo o que seria da peça, mas eles adiaram até o último minuto, deixando todos no prejuízo — conta Guerra, que escreveu o texto na então casa de Chico, na Lagoa. — Durante meses, trabalhamos sentados um na frente do outro, cada um numa máquina de escrever. Pesquisamos muito sobre a primeira metade do século XVII. Cheguei a ir a Minas atrás de livros raros, e pedimos a opinião do pai do Chico (o historiador Sérgio Buarque de Holanda).
Parceira de Torres na produção (e sua mulher), Fernanda Montenegro dimensiona o prejuízo:
— Perdemos muita grana com a proibição. O que nos salvou foi uma montagem de “O amante de madame Vidal”, cujo sucesso pagou as dívidas. Mas o desespero após a censura foi tanto, pelo prejuízo e pelo medo de uma retaliação mais violenta, que sequer guardamos a documentação da peça.
Entre as justificativas dadas pelos censores à produção havia a suspeita de que a montagem teria sido financiada por comunistas, direto de Moscou.
— Cozinharam a gente por muito tempo na Censura porque não queriam caracterizar a intervenção à peça como proibição, e sim como um abandono da nossa parte, pela incapacidade de sustentar a produção — acusa Ruy, lembrando que a coreografia do espetáculo era do bailarino tcheco Zdenek Hampl (1946-2007).
Com cenas de batalha, a peça foi cenografada por Hélio Eichbauer, que assinava ainda os figurinos, ao lado de Rosa Magalhães. Calabar não aparece em cena. Os feitos do personagem que se aliou aos holandeses contra os portugueses são cantados por figuras também reais, como Mathias de Albuquerque, Felipe Camarão e Maurício de Nassau. Mas a trama se debruça sobre a ligação entre ele, que conhecia as entranhas das matas brasileiras, e os invasores vindos da Holanda, em meio a conflitos contra Portugal pela posse do Brasil. Por isso, segundo a Censura, “os responsáveis pela peça se situam entre os que optariam de bom grado pela colonização holandesa em detrimento dos portugueses”.
“No tempo mais duro da Censura havia sempre uma história oficial que a gente sabia não corresponder à verdade”, disse à época Chico Buarque, atualmente envolvido na produção de um novo romance.
Orquestração de Edu Lobo
Intérprete de Ana de Amsterdam, Betty Faria era um dos rostos principais de uma trupe formada por Hélio Ari, Antônio Ganzarolli, Lutero Luiz, Odilon Wagner, Flávio São-Tiago e Anselmo Vasconcelos. A orquestração era comandada por Edu Lobo. E entre os músicos estava o pianista Tenório Jr., que desapareceu em 1976, na Argentina (sob ditadura).
— Numa noite, 48 pessoas ficaram desempregadas — lembra Betty. — Ensaiamos em Ipanema, onde hoje é a Casa de Cultura Laura Alvim, numa animação plena. Aí, na véspera, o veto chegou. Foi ridículo.
Até 13 de novembro de 1973, o elenco ensaiou, com a esperança de que os advogados da produção pudessem reverter a decisão da Censura. Mas o esforço foi em vão.
— Confesso que, quando a interdição veio, não estávamos no ponto, musicalmente — admite Dori Caymmi. — Eu tinha invertido o ritmo da música “Ana de Amsterdam” e tinha medo de atrapalhar a Betty. Mesmo assim, as músicas que fizemos ficaram célebres.
Caymmi se refere a canções que, no próprio ano de 1973, foram gravadas no disco “Chico canta”, como “Tatuagem”, “Tira as mãos de mim” e “Fado tropical”, que, no LP, inclui versos declamados com a voz do próprio Guerra.
— Originalmente, o disco se chamava “Chico canta Calabar”, mas os censores vetaram pelas iniciais, CCC, que poderiam fazer alusão a Comando de Caça aos Comunistas. O nome Calabar foi proibido de ser mencionado, pois, segundo eles, evocava traição. E, quando gravamos o disco, a palavra “sífilis” teve que sair de “Fado tropical”. No disco original, em vez de “sífilis” ouvia-se um chiado, algo como “shishsishs” — conta Guerra, nascido em Moçambique, há 81 anos.
Lançado com uma capa dupla, projetada pela artista Regina Vater (e que serviu de base para a arte que ilustra a capa do Segundo Caderno), com o nome “Calabar” pichado num muro, o LP do musical foi proibido e relançado, ainda em 1973, com outra capa (branca) já com o título “Chico canta”. No encarte original, a canção “Vence na vida quem diz sim” veio sem a letra, que foi censurada, e “Bárbara”, que escancara a primeira relação lésbica na MPB, foi mutilada no verso “no poço escuro de nós duas”. O livro da peça também foi patrulhado, mas sobreviveu nas livrarias, foi adotado em escolas e está na 34ª edição.
— Uma vez, eu fui chamado para fazer um debate sobre o livro num colégio. Cheguei lá crente que ia discutir com estudantes maduros. Quando vi, era uma turma com meninos entre 9 e 12 anos — diz Ruy, que irá montar a peça com a ajuda dos produtores Rafael Cannigia e Diogo Oliveira.
Direito à rebeldia
Sete anos após a censura, em 24 de janeiro de 1980, o texto foi anistiado e liberado para uma montagem no Teatro São Pedro, em São Paulo, com Martha Overbeck, Othon Bastos e Renato Borghi no elenco e direção do próprio Peixoto. A peça estreou quatro meses depois. E outras montagens se seguiram. Mas só agora seu criador vai pôr as mãos na trama novamente.
— É a primeira vez que enfrento o texto depois de tê-lo escrito com Chico — diz Guerra, que também se prepara para rodar, no início de 2014, o longa “Quase memória”, adaptação do livro homônimo de Carlos Heitor Cony, com Murilo Benício como protagonista. — Escrachado como uma sátira da História, “Calabar” preservou seu substrato analítico sobre o direito do indivíduo à rebeldia, à liberdade ideológica.
Cortes notáveis no teatro:
“Rasga coração”
Concluída em 1974, a peça de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha, ficou cinco anos proibida. Nesse período, se tornou um dos textos nacionais mais lidos e discutidos do país, até ser encenada por José Renato (1926-2011) em 1979, com Raul Cortez (1931-2006) no papel de Manguary Pistolão.
“Patética”
Apreendido antes de se tornar público, em concurso de dramaturgia em 1977, o texto de João Ribeiro Chaves Netto ficou proibido até 1980 por abordar a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, nos porões do DOI-CODI. Chaves era cunhado de Herzog.
“Prova de fogo”
Texto de estreia de Consuelo de Castro, cronista de conflitos da classe média, a peça foi levada para o Teatro Oficina em 1968, mas vetada por falar do movimento estudantil. Circulou o país em leituras clandestinas. Só em 1993 foi montada, por Aimar Labaki.
“Abajur lilás”
Escrita por Plínio Marcos (1935-1999) em 1969, auge da repressão, a peça, com foco no universo das garotas de programa, seria montada no mesmo ano por Paulo Goulart, mas foi proibida. Em 1975, Antônio Abujamra tentou reviver o texto, de novo vetado. A liberação só veio em 1980.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/marco-da-censura-no-brasil-calabar-faz-40-anos-com-nova-montagem-8363246#ixzz2U3LulAME

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