RIO - Ele passava o dedo pelo bolo e, enquanto corria em volta da mesa, ia riscando o confeito. Os rabiscos de glacê, que o menino levado lambia, lhe custaram um puxão de orelha na festa de aniversário, mas ensinaram que desenhar é gostoso. Daniel Azulay, aos 66 anos, ainda é uma criança inquieta. Por dentro e por fora. Ele combina gravata berrante com colete preto, óculos coloridos — que, às vezes, troca por um inacreditável modelo com grandes olhos pintados nas lentes — e tênis. Ao andar, dá pulinhos engraçados. A risada entremeia sua fala e deixa no ar a sensação de que ele pode estar rindo de si mesmo, numa eterna piada particular. Quando se lembra de algo, levanta-se abruptamente no meio da conversa, assustando seu interlocutor, para buscar uma foto antiga, um desenho ou um dos muitos brinquedos da cristaleira de seu estúdio em Copacabana. Só então, por alguns segundos, os olhos de moleque brilham como um antiquário zeloso que sabe que o tempo guarda as melhores histórias.
Longe da TV, onde esteve por uma década como ídolo da geração dos anos 70 aos 80, Daniel investiu toda sua energia em suas oficinas de desenho, no Crescer com Arte para crianças carentes — que tem 12 anos e já atendeu 25 mil crianças — e no seu eu artístico mais profundo, levando para galerias de arte do mundo inteiro um trabalho moderno, que ele chama de “imageria”. Uma produção múltipla, com forte inspiração na pop art, que vai do desenho às telas hiper-realistas. A grande virada foi com a “A porta”, uma tela gigante de 2,18m por 1,20m, concebida num momento obscuro, quando sua mãe morreu, em 2006.
— Se as portas não se abrem, construa uma para você. Para mim, é a porta dos sonhos, das oportunidades. Tanto que eu a fiz entreaberta. Pela fresta, é possível ver o céu azul — diz ele e, ao lembrar que pintava na casa da mãe já muito doente para não deixá-la sozinha, faz uma pausa. — Acho que atravessei esta porta.
Do surrealismo à reciclagem
Desde então, a “A Porta” virou livro com passagens da vida do artista, portfólio e exposição que, de 2007 a 2008, rodou pela Suécia, Finlândia e Nova York. Também expôs no Louvre e, há pouco, voltou do MoMA, onde deu uma consultoria sobre como fazer as crianças se aproximarem da arte. Entre os dias 7 e 19 de maio, “A Porta” estará no Arquivo Contemporâneo, em Ipanema. Serão cerca de 15 peças, entre pinturas, esculturas e portraits inéditos.
Antes mesmo da Xuxa, Daniel já tinha seus baixinhos. Ele conseguia a façanha de fazer as crianças largarem a bola e a boneca, quando ainda não havia a febre dos jogos eletrônicos — o Atari só chegaria com força mais tarde —, e sentarem em frente à televisão para aprender a desenhar. Diante das câmeras, o “professor” ensinava o conceito de surrealismo de Dalí, desenhando um macaco dentro de uma caneca — “a arte nos faz voar” —, fazia surgir imagens de um pincel mágico, falava de fotografia e transformava uma caixa de ovos num jogo divertido. Foi um dos primeiros a usar a palavra reciclar na TV e, mais importante, a mostrar na prática a sua utilidade. O primeiro programa foi na TV Cultura e depois, em 1981, na Bandeirantes, a convite de Maurício Sherman. Um par de anos depois, o mesmo Sherman levaria Xuxa para a Manchete.
— Ele tinha habilidades que nenhum outro apresentador homem teve antes dele. A gente colocava palhaço, tinha o Carequinha, mas de cara limpa não existia. Foi o único em toda a história da televisão. Isso contribuiu muito para que o programa fosse variado e atingisse a sensibilidade das crianças — diz Sherman, diretor da TV Globo.
Daniel diz não ter nostalgia, mas não nega um pedido de fã. Com três riscos, faz a autocaricatura com que presenteava as crianças durante os programas. Sem muita insistência, arranca-se dele um longo assovio, seguido do bordão “Algodão doce para você!”, outro clássico para nove entre dez adultos com mais de 40 anos. Reminiscências das cores da infância. Uma vez, na British School, em Botafogo, perdeu-se da mãe, que foi encontrá-lo com o nariz colado numa carrocinha “onde o açúcar cor de rosa virava nuvens”. Sobre os programas infantis atuais, Daniel, que criou jogos de raciocínio nos anos 70, e CD-ROMs multimídias nos 80, não polemiza, mas é sincero:
— A TV não é mais a mesma, a programação aberta é um ponto de interrogação. Cada emissora faz do jeito que bem entende, e a criança, definitivamente, não é uma prioridade para as redes de televisão. Para elas, quando muito, a criança é viável apenas como produto.
Um artista, muitas imagens
De família judaica, Daniel, criado em Ipanema, é filho caçula do advogado Fortunato e de Clarita, que fez desenho clássico em Paris. É irmão do cineasta Jom Azulay, diplomata aposentado, e de Rubem, que morreu precocemente em 63 num acidente de caça submarina. Para agradar ao pai, ele formou-se em direito. A vida escolar foi penosa.
— Nunca levei bomba, mas só passava em segunda época ou raspando. Meu pai tinha um gênio incomum e perdia paciência de estudar comigo. Eu desenhava a aula inteira, não prestava atenção. Meus irmãos e até meus primos eram convocados para me dar aula particular. Imagino como devia ser chato para eles. Eu vivia no mundo da lua — diz.
Até sobreviver do desenho, Daniel desenhava em tudo que via pela frente. Recentemente, andando pelas ruas de Ipanema, emocionou-se ao ser reconhecido por um sapateiro, antigo cliente para quem desenhou letreiros. Suas referências são muitas. Jackson Pollock, Andy Warhol, Ralph Steadman ou Saul Steinberg. Sem falar em Picasso, Miró, Dalí. Mas seu mentor artístico é Ziraldo. O jovem Daniel batia ponto no apartamento do cartunista no Lido, só para observá-lo trabalhando.
— Aos 16 anos, ele já era um talento. Ele, o Miguel Paiva, e uns tantos outros que apareciam lá em casa. No início, faziam coisas parecidas com o meu Jeremias, o Bom. Depois, seguiam voo próprio. O Daniel, além de todo o mérito artístico que provou ter a vida inteira, é uma das melhores pessoas do mundo. É um absurdo de qualidades humanas. Eu brinco dizendo que é um anjo judeu.
Pelas mãos de Ziraldo, fez um suplemento de humor no “Jornal dos Sports”. Depois, foi do “Pasquim”, “Jornal do Brasil” e “Correio da Manhã”. Na ditadura, ganhou um prêmio internacional de desenhos de humor na Grécia, mas a censura fez com que a obra só fosse conhecida anos depois. Ele já estava na mira do DOPS por causa de caricaturas de Che e Dom Helder Câmara. Era para a boutique de roupas descoladas de uma amiga, mas passou por subversivo. Daniel teve a própria grife, a Farfan. Casado há 31 anos com Beth, pai de Paloma e avô de Baruck, ele namorava na época a modelo Vicky Schneider.
— Fiz a pedido da Luiza Konder, dona da Barbarella. Tive que sair de cena por um tempo, mas não cheguei a ser preso. Eu me escondia no Country, onde jogava tênis. Ninguém ia lá.
A propósito, Daniel ainda é visto entre voleios na quadra do Country
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