quinta-feira, 30 de maio de 2013

Resenhando - O poeta apaixonado

A vida do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) pode ser interpretada como uma lenta desencarnação. Ele foi saindo da vida discretamente, sem estampido, para entrar na história do mesmo jeito, de forma irreversível. Deixou um baú de 30 mil páginas com que pretendia alcançar a eternidade literária – e alcançou. “Deixem estar, que, quando eu morrer, ficam cá caixotes cheios”, disse aos amigos, inconformados com tão poucas publicações em vida. A lenda conta que morreu virgem, aos 47 anos. Como o definiu seu biógrafo, João Gaspar Simões, era “o enigma de Eros”. No ano de sua morte, escreveu: “Todas as cartas de amor são ridículas”.
 
Serão mesmo? Ainda assim, Pessoa caiu na tentação do “ridículo” e escreveu 51 cartas de amor a uma datilógrafa lisboeta chamada Ofélia Queiroz (1900-1996). Ela lhe enviou 272. A correspondência traz à tona a faceta de Pessoa que ele menosprezava: o namorado ciumento, atrevido, lírico e erótico. Algumas cartas de Pessoa e Ofélia foram publicadas em separado, respectivamente, em 1978 e 1996. A própria Ofélia ajudou na edição de seu material. A estudiosa portuguesa Manuela Parreira da Silva lançou, em 2012, uma versão parcial da correspondência conjunta. Agora, pela primeira vez, a troca de mensagens de Pessoa e Ofélia é reunida com transcrição e fac-símiles dos textos, no livro Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz – Correspondência amorosa completa, 1919-1935 (Editora Capivara-Portugal Telecom, 274 páginas, R$ 140). O livro foi organizado pelo professor americano Richard Zenith, um dos maiores estudiosos atuais de Pessoa. Reúne 348 documentos, entre cartas, telegramas e cartões-postais. Desses, 156 são inéditos.
 
O acervo amoroso de Pessoa e sua namorada pertence ao colecionador paulistano Pedro Corrêa do Lago. Ele o arrematou parcialmente em leilão na Sotheby’s, em Londres, em 2002, e completou-o em compras posteriores. Lago e a mulher, a pesquisadora Bia Corrêa do Lago, editaram o volume. “É um tesouro cultural luso-brasileiro”, diz ele. “Fico feliz que essa história de amor esteja no Brasil.” A correspondência cruzada, segundo ele, revela detalhes pouco divulgados da personalidade de Pessoa, como sua linguagem coloquial e o modo ardoroso e ousado como se relacionava com uma mulher. “As cartas suscitam especulações sobre sua sexualidade”, afirma.
RARIDADES O colecionador Pedro Corrêa do Lago, em São Paulo. Ao lado, o mapa em que Fernando mostra o trajeto onde ele e Ofélia namorariam às escondidas (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Sempre houve especulação sobre o homossexualismo de Pessoa ou sobre sua assexualidade. De acordo com Zenith, é possível agora constatar que a relação não era apenas mero jogo, como fazia crer a edição das cartas de Pessoa, de 1978. “Muito jogo havia, mas, com o acréscimo de todas as cartas de Ofélia, fica claríssimo que Pessoa estava preso e envolvido e que gostava dos ‘jinhos’ (beijinhos) que os dois trocavam no início da relação”, afirma. “Depois, aborreceu-se e criou uma espécie de triângulo, que incluía Álvaro de Campos.” Zenith acha que os dois não foram além de beijos e carícias. “Para quem quiser pensar o contrário, o fato de Ofélia ter-se mantido fiel a Fernando até que ele morresse pode sugerir que se sentia fisicamente comprometida”, diz. A pesquisadora Manuela Parreira da Silva diz que as cartas mostram que o casal manteve relações sexuais. “O que liga uma carta à seguinte é uma espécie de canal aberto à necessidade premente e permanente da presença do outro, própria, afinal, de um estado de paixão.”
 
A relação entre Pessoa e Ofélia ocorreu em três fases: um ano de paixão, de novembro 1919 a dezembro 1920; a reconciliação, que rendeu cartas entre 11 de setembro de 1929 e 11 de janeiro de 1930; e a troca de cartas e telegramas até 1935. Pessoa se encantou por Ofélia em 1919, em Lisboa. Aos 31 anos, era funcionário do comércio e colaborava para revistas literárias. Ela, aos 19, empregou-se como secretária no escritório do primo de Pessoa, onde ele também trabalhava. Iniciaram o namoro às escondidas, passeavam pela cidade (seguindo um esquema que ele desenhava num papel de embrulho), trocavam cartas e beijos ardentes (ele a beija “loucamente” num canto escuro, chamando-a de “ácido sulfúrico”) e se telefonavam. Ele é reservado e estranho, quase nunca diz o que sente. Lia para ela uma versão francesa do Kama Sutra. Ela era tão miúda e brincalhona que ele a tratava por apelidos infantis: Bebé, Ofelinha. Ela retribuía, chamava-o de Pretinho e Amorzinho. Ofélia escrevia mais cartas que Fernando. Queria se casar – assinou uma carta como “Ofélia Pessoa (quem dera)”. Ele se assustou e passou a evitá-la, enquanto se entregava à vida literária e à bebedeira. Ela ficou horrorizada. Ficaram sem se falar por nove anos. Voltaram, mas ele logo rompeu. As cartas minguaram, até virar telegramas. Ofélia só se casou depois da morte dele, não teve filhos e viveu até os 96 anos. Nessa idade, revelou que fora namorada de Pessoa e publicou as cartas.

Para os críticos, Ofélia nunca entendeu os heterônimos de Pessoa, apesar de ele os ter usado para apimentar o “namoro” – palavra que abominava. Ele mandava cartas ou telefonava como Álvaro de Campos, o engenheiro sensacionalista. Assinava como Íbis ou A.A. Cosse, nome com que publicava jogos de palavras em jornais ingleses. Ofélia odiava Álvaro de Campos, e Pessoa fazia blague com isso: “Mas ele gosta tanto de você”. Pessoa usava seus heterônimos para confundi-la. Fazia com que Ricardo Reis lhe escrevesse para dizer que “Fernandinho” não voltaria mais. “Já se sabia que o heterônimo Álvaro de Campos se metia na relação, mas percebemos agora que não era apenas um figurante ocasional; era também um protagonista”, diz Zenith. “Chegava mesmo a telefonar à namorada. O que isso significa? Fernando telefonava e anunciava-se como Álvaro? Mudava o tom da voz? Não há como saber. Ofélia era cúmplice no jogo. Mas, para Fernando, talvez não fosse mero jogo. Talvez Ofélia tivesse boas razões para ter ciúmes do Álvaro.”

Mesmo apaixonado por seus outros eus, Pessoa era ligado às cartas de Ofélia, pois guardou-as todas no baú. “Eu preferia não lhe devolver nada e conservar suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão”, escreveu ao romper com ela, em 29 de novembro de 1930. Para Ofélia, a relação esfriou. “Embora a ternura por mim fosse a mesma, eu sentia que o Fernando estava diferente”, afirmou ela em 1978. “De resto, já não respondi às suas últimas cartas, porque achei que já não eram para responder. Não valia a pena. Sentia que já não tinham resposta.”
 
A correspondência reúne o casal para sempre. Carrega a memória de uma banalidade essencialmente humana – o amor – que se repete ao longo da história, mesmo contra a vontade dos poetas. Eles gostariam de ser sempre sublimes como seus versos, mas os sentimentos comuns os levam a sentir e escrever coisas ridículas. Sim, as cartas de amor são ridículas. Ainda bem que sobrevivem assim. 
Entres "jinhos" e brincadeiras (Foto: Divulgação Ed. Capivara)
 
 
 

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