quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Te Contei, não ? - Amor filial e pedidos de votos

 

A correspondência inédita de Carlos Drummond de Andrade revela aspectos de sua atuação política e de seu relacionamento com a mãe

MARCELO BORTOLOTI
           
RARIDADES Drummond em 1948... (Foto: Reprodução)
                                                                            
Doze envelopes de tamanho ofício impregnados por um forte cheiro de naftalina. Dentro deles estão amontoadas cerca de 200 cartas com papel amarelado pelo tempo ou roído por traças, sem nenhuma organização cronológica. Essa é toda a correspondência conhecida que o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) enviou para sua mãe, Julieta Augusta. São cartas escritas entre 1925 e 1948 de fundamental importância para entender melhor a identidade e o universo afetivo de Drummond. Delas emergem aspectos diversos de sua personalidade, como o extremo apego à figura materna, contrariando sua literatura, em que se sobressai a imagem do pai, suas vacilações de funcionário público, dividido entre o serviço governamental e a consciência ideológica, e sua discreta mas intensa atuação política. Tal tesouro está há 20 anos fechado no guarda-roupa de um empresário do interior de Minas Gerais, que agora decidiu colocá-lo à venda.

O proprietário, Eduardo Cicarelli, mora em Lavras, no sul do Estado, e pede pelas quase 200 cartas R$ 21 mil. “Já recebi proposta para que fossem leiloadas em Londres. Mas não vendo para colecionador privado. Elas precisam ir para alguma instituição onde possam ficar disponíveis ao público”, diz Cicarelli. Ele afirma ter se cansado de abrir o guarda-roupa e dar de frente com um acervo tão precioso sem nenhuma utilidade. O escritor e crítico literário Silviano Santiago foi um dos poucos que conheceram o conjunto, décadas atrás. “É uma das coisas mais importantes do país em termos de correspondência. A relação de Drummond com o pai é conhecida por dezenas de poemas. Com a mãe, sempre foi uma incógnita”, diz.
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O acervo chegou às mãos de Cicarelli de forma inusitada. A mãe de Drummond preservou as cartas que recebeu do filho até o final da vida. Já idosa, deu o conjunto de presente à nora, conhecida como Ita, que cuidou de sua saúde nos últimos anos. Ita guardou o conjunto por décadas. No início dos anos 1990, Ita estava idosa, doente e precisava de dinheiro. Não tinha outro patrimônio a não ser as cartas. Quem apareceu para comprá-las foi o filatelista Anísio Khader. Alguns anos depois, ele colocou o conjunto à venda numa feira de filatelia no Rio de Janeiro. Foi lá que o atual proprietário as comprou.

Além das cartas para a mãe, o conjunto inclui fotos antigas, como as que podem ser vistas ao lado, e correspondência enviada por Drummond a seu irmão Flaviano e a sua cunhada Ita. Drummond foi o nono dos 14 filhos do casal Carlos Andrade e Julieta Augusta. Desses, apenas seis chegaram à idade adulta. O pai era um fazendeiro de posses do interior de Minas, com título de tenente, e a mãe, dona de casa. A família é um dos temas recorrentes na poesia de Drummond, em que se sobressai a figura paterna. Ele é representado como um tipo lacônico, severo, muitas vezes rude. O Pai se escreve sempre com P grande/em letras de respeito e de tremor/se é Pai da gente, diz o poema “Distinção”. A mãe aparece apenas de forma esparsa. Longe de ser uma figura apagada em seu universo afetivo, ela se revela na correspondência como elemento capital. Julieta foi o contrapeso do relacionamento duro entre um pai rigoroso e um filho sensível, permitindo aflorar um amor filial cheio de docilidade e delicadeza.
...e na formatura, em 1925. As duas fotos são do  mesmo lote das cartas (Foto: Reprodução)
O filho
As cartas trocadas com a mãe revelam um perfil inusitado de Drummond, atento a assuntos comezinhos, como a vida financeira de Julieta Augusta. Em fevereiro de 1941, ele escreveu para avisar que cobrara de seu irmão um dinheiro que ele lhe devia na partilha da herança, mas não gostaria que a mãe assumisse a dívida. “Não atenda a pedido dele para esse fim, pois, como disse, prefiro não receber nada a sacrificar a senhora, sempre tão generosa para os filhos.” Meses depois, Drummond se coloca num curioso papel de consultor financeiro. Sugere que Julieta venda terrenos em Belo Horizonte para comprar ações do Banco Comércio e Indústria. “Ações do banco lhe dariam renda certa e compensadora, ao passo que os terrenos, de valorização difícil, geralmente só dão despesas com impostos.”

Pelos pequenos dramas que aparecem nas cartas, é possível avaliar as suscetibilidades da relação entre mãe e filho. Em 1942, Drummond mandou dinheiro para Julieta melhorar suas condições de moradia em Belo Horizonte. Ela preferiu não aceitar o cheque. Drummond se sentiu extremamente incomodado com a recusa: “Devo lhe confessar que o meu gesto não tinha nenhum valor, em face do muito, do infinito que qualquer pessoa deve a sua mãe. (...). Agora, esta restituição não me magoa, mas me deixa preocupado. Procuro em vão alguma incorreção ou indelicadeza que eu tenha cometido e que a fizesse mandar-me o cheque”. Drummond insiste que a mãe aceite o dinheiro. “Peço-lhe humildemente licença para restituir-lhe o cheque e continuar a enviar-lhe mensalmente a insignificante quantia combinada. Não se zangue comigo, não se magoe, não desconfie de mim; e mande-me uma palavra carinhosa e confortadora.”
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O funcionário público
Drummond trabalhou como funcionário público de 1926 a 1962, quando se aposentou como chefe de departamento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Entre suas funções, ocupou por nove anos o cargo de chefe de gabinete do ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema. Atravessou com ele a ditadura do Estado Novo. Pesquisadores se dividem sobre esse aspecto da biografia de Drummond. O sociólogo Sérgio Miceli, que estudou o tema, diz que ele foi um dos intelectuais aliciados pelo regime Vargas e que, por ocupar um cargo de confiança, foi leal ao governo. O crítico literário Antônio Cândido o considerava um progressista. Argumentava que o cargo estatal não implicou submissão ideológica ao regime. As cartas não esclarecem definitivamente a questão, mas mostram que, na intimidade, Drummond parecia dividido.

Quando Getúlio sofreu um acidente de carro em 1942, e ficou vários dias internado, Drummond fez questão de comunicar o acontecido. Demonstrou algum afeto por Getúlio: “Tivemos um instante de grande preo­cupação com o desastre sofrido pelo presidente, mas logo depois, felizmente, verificamos que o estado dele era bom”. As cartas revelam o prestígio de Drummond dentro do Estado Novo, a ponto de ele ter influência na distribuição de cargos públicos. Em junho de 1944, fala sobre um jovem parente que estava no Rio à procura de trabalho. “A princípio, pensei em arranjar para ele um emprego interino de 750 cruzeiros”, escreveu, para depois dizer que encontrara solução mais adequada. “Apresentei-o a um amigo do Ministério da Agricultura, que prometeu arranjar-lhe alguma coisa em Pinheiros, no Estado do Rio.”
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Em outros trechos, Drummond demonstra independência em relação ao governo. Em 1942, a cidade de Itabira passou a se chamar Presidente Vargas, numa esdrúxula homenagem determinada pelo interventor de Minas, Benedito Valadares. Drummond, que declarara seu amor à terra natal no poema “Confidência de itabirano”, publicado dois anos antes, ficou furioso com a mudança, que considerava estúpida. “Um nome de duzentos anos, que guardamos com orgulho de pobres, mas que era para nós como um nome de pessoa querida, é bruscamente jogado fora, para uma homenagem desnecessária, que não interessa ao próprio homenageado”. O nome voltou a ser Itabira cinco anos depois.

As cartas mostram que divergências ideológicas o afastaram do cargo, em março de 1945, já no ocaso da ditadura. Drummond assinou um manifesto de escritores contra a falta de liberdade no Estado Novo de Vargas. Recebeu um telegrama da mãe apoiando sua postura. Em carta, ele agradeceu o apoio e deu detalhes do caso: “Tive de me manifestar de acordo com a minha consciência e as minhas convicções. Depois disso, julguei de meu dever dar ao C. (Capanema) inteira liberdade de me dispensar, pois, embora nada tenha a dizer contra ele, e antes pelo contrário só tendo motivos para lhe ser grato e fiel, é de crer que sua situação não lhe permita conservar-me ao seu lado”. Uma semana depois, Drummond efetivamente deixou o cargo.

O político
Depois de sair do ministério, Drummond se aproximou por um breve período do Partido Comunista, então perseguido pelo governo. Nessa surpreendente mudança de lado, chegou a visitar o líder Luís Carlos Prestes na prisão. Durante um mês, foi um dos diretores da Tribuna Popular, jornal oficial do partido. Seu nome foi cogitado para ser candidato a deputado nas eleições de 1945. Mas Drummond se desiludiu com o partido e passou a ser alvo de críticas. Em 1949, chegou a trocar empurrões com militantes comunistas, durante uma disputa no congresso da Associação Brasileira dos Escritores. Esse tipo de turbulência o fez se afastar da vida política e encerrou, por assim dizer, sua fase militante. É justamente nesse período que as cartas ganham um tom mais engajado. A correspondência com o amigo Cyro dos Anjos, publicada em 2009 pela Globo Livros, já revelava tal postura. Agora, as cartas trocadas com a mãe e parentes ampliam o tema.

Embora seja um aspecto apagado de sua biografia, Drummond trabalhou ativamente na campanha do mineiro Cristiano Machado para a Presidência da República, em 1950. Naquela eleição, Capanema concorria a deputado federal. Em carta ao irmão Flaviano, de setembro de 1950, Drummond se mostrava empenhado na luta política e pedia votos à família: “Se isto não contrariar convicção profunda de sua parte, gostaria que, na próxima eleição, você ajudasse um pouco o Cristiano e o Capanema, votando neles e obtendo também para ambos os votos da família”. A carta continua: “São dois velhos amigos meus, muito dignos e capazes, e sempre dispensaram toda a consideração ao nosso pessoal. Para Minas, por certo que é da maior importância colocar na Presidência uma pessoa que, afinal, cuide de uma terra tão abandonada nos últimos anos”.
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Naquele ano, Capanema foi eleito.Cristiano Machado ficou em terceiro lugar – seu próprio partido, o PSD, apoiou o adversário, Vargas, de onde vem a expressão “cristianização” para qualificar candidatos abandonados pelo próprio partido. Em outubro, escrevendo para a cunhada Ita, Drummond dizia: “Só não respondi mais cedo sua carta, porque a campanha eleitoral me absorveu inteiramente no decorrer das últimas semanas, obrigando-me a um esforço total para auxiliar o nosso candidato. Infelizmente, esse esforço foi inútil, à vista dos primeiros resultados que o rádio vem divulgando e que fazem prever a decisão do pleito. (...) Se as preferências do povo se inclinam para quem sabe iludi-lo, nada nos resta fazer, senão aguardar o resultado”. Cartas como essa são fundamentais para entender melhor a personalidade e a biografia de Drummond. Elas poderão ser mais bem estudadas quando saírem do guar­da-rou­pa do empresário mineiro Cicarelli – definitivamente, local inapropriado para acondicionar material tão precioso.
 
“Uma terra abandonada” (Foto: Reprodução)

                                                                        

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