A trapalhada é tamanha que fica difícil decidir por onde começar. Mas
trata-se de oferecer gratuitamente a novela O alienista, de Machado de
Assis, para trabalhadores pobres não habituados à leitura. Como enfatiza a
autora do projeto, Patricia Engel Secco, a tiragem de 300 mil exemplares, com o
selo do Ministério da Cultura e da Lei de Incentivo à Leitura, quer chegar a
esses não leitores, privados dos benefícios da literatura.
Diríamos que a causa, de um ponto de vista genérico, é nobre, e o dia em que
ela se cumprir será o da redenção do país desigual e mal letrado (mal letrado na
média, fique bem claro, e em todos os níveis sociais). Mas a edição propõe-se a
resolver, num desastrado salto mortal, a quadratura do círculo: pessoas que
nunca leram nada lerão Machado – esse autor deveras fascinante, capcioso,
sibilino, cujos textos não se reduzem à anedota, e que pressupõem certa
convivência anterior com a leitura. A solução encontrada foi a de facilitar o
texto original expurgando-o das supostas dificuldades: palavras difíceis são
substituídas por outras corriqueiras; construções sintáticas enviesadas,
tornadas mais diretas; alusões de duplo sentido e passagens que exigem uma
leitura relacional menos linear, eliminadas.
O argumento dos que são a favor, que se soma ao da serventia social, é o de
que essa não é a primeira nem será a última adaptação de textos clássicos. Quem
não leu algum Moby Dick, Dom Quixote, a Odisseia ou
Shakespeare em alguma versão condensada e facilitada? Quem negaria que essa
prática promove de alguma maneira o incremento da leitura, e o acesso a outros
textos e a obras originais? Uma linha influente da teoria literária critica, por
sua vez, o chamado cânone literário, o panteão das obras “imortais”, a
sacralização dos textos e a sua transformação em fetiches intocáveis, ligados a
privilégios de classe que também se querem intocáveis. Essa concepção pragmática
vem geralmente acompanhada, no entanto, da dificuldade de identificar
propriedades singulares dos textos literários que são inerentes à sua
composição, ao ritmo, ao corpo da linguagem, e que os fazem insubstituíveis e
irredutíveis a qualquer outra forma que não a sua. Mas, para não cair na
pendenga sem saída entre o purismo e o completo relativismo, o melhor é analisar
cada caso concreto.
O caso da adaptação de O alienista é muito diferente do das outras
obras clássicas citadas, em que se faz uma redução genérica da estória,
claramente distinta do original. Em vez disso, trata-se aqui de uma intervenção
linha a linha sobre o estilo, a pontuação, o ritmo, o vocabulário e a sintaxe, e
como se nada disso estivesse acontecendo. É escandaloso que a informação “texto
facilitado para incentivo à leitura” apareça apenas no final do volume, sem
nenhum destaque, perdida entre outros créditos menos relevantes (produção,
concepção, projeto gráfico, imagens e tiragem), e onde a referência (nem digo
reverência) à autenticidade do texto original vira pó.
Política de leitura
Nas primeiras linhas, “filho da nobreza da terra” vira “filho de nobres”,
“regendo a universidade” vira “dirigindo a universidade”, “o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, vira “da Espanha”. O pretexto,
discutível em todos esses casos, é o de que palavras mais usuais deixam o texto
mais compreensível, mas junto com isso vem, na verdade, a mentalidade da
padronização, praga generalizada e generalizante que não faz senão tirar o
travo, o gosto e o sabor de qualquer texto. Prova disso é que, na primeira
linha, a adaptadora insere vírgulas inexistentes no original (“dizem que, em
tempos remotos, vivera ali um certo médico”), que não se explicam senão pela
pulsão de copidesque que quer adequar textos a normas editoriais, atropelando o
que vier pela frente. Chego a pensar que a demagogia social envolvida no projeto
é um álibi inconsciente para copidescar Machado. Tanto assim que, mais adiante,
“achou-se a mais desgraçada das mulheres” vira “considerou-se a mais desgraçada
das mulheres”. A palavra “achou-se” era simples demais, dessa vez, e fez-se
necessário procurar outra menos usual? Qual é afinal o critério? Aqui e ali
pinga uma nota de rodapé, mas uma citação de Dante Alighieri em italiano passa
batida.
Literatura nos pega ao pôr em contato o que somos com o que não somos —
tempos, experiências individuais e coletivas, linguagens e valores que se tornam
nossos sem serem nossos. É preciso passar pela diferença a que o texto nos
submete. O narcisismo contemporâneo reage a isso querendo facilitação,
padronização e autorreconhecimento. Ironicamente, Machado de Assis é um dos mais
incríveis analistas do narcisismo, em toda a literatura universal. Não há como
chegar a ele sem chegar a ele. Há modos e modos: o livro organizado por Marcos
Bagno, Machado de Assis para principiantes, por exemplo, faz uma boa
introdução antológica sem precisar alterar uma vírgula do original.
Num país de analfabetos funcionais, como o nosso, uma verdadeira política de
leitura é crucial para todas as políticas. O episódio é um índice gritante da
falta disso. Machadiano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário