Em 64 a repressão desarticulou o sistema político, perseguiu a esquerda,
investiu contra os sindicatos, mas deixou funcionando uma vida universitária e
artística que era majoritariamente oposta ao regime
É sabido, embora muitas vezes esquecido e confundido, que depois do golpe
militar de 1964, e até o AI-5, no final de 1968, viveu-se no Brasil um período
de exuberante cultura pública. Em 64 a repressão desarticulou o sistema
político, perseguiu a esquerda, investiu contra os sindicatos, as organizações
operárias, mas deixou funcionando uma vida universitária e artística que, de
modo contraditório, era majoritariamente oposta ao regime. A rotina da censura
prévia só se instalou a partir de 1969. Antes disso aconteceram os festivais da
canção, o show “Opinião”, o Teatro Oficina, o Arena, o Tuca, o cinema novo, o
tropicalismo. A garotada da classe média formada na escola pública durante o
intervalo democrático de 45 a 64 tinha o que dizer ao Brasil, do Brasil, e
encontrou espaços para isso.
Entrei no curso de Letras da USP, que funcionava na Rua Maria Antonia, em
1967. Calculo que grande parte dos acontecimentos marcantes a que me referi, os
festivais, os teatros, além dos cinemas exibindo Glauber Rocha, aconteceu num
raio não maior do que o de dois quilômetros em torno da faculdade. O público
estudantil era o combustível daquela efervescência, e se sentia no umbigo do
mundo em que o vietcongue derrotava o império. As aulas se comunicavam com o que
acontecia nas ruas, nas casas de espetáculo e na televisão. A universidade em
que tantos se formaram, como é o meu caso, foi a de dentro das salas de aula e a
desse entorno.
Os dois anos cruciais, 67 e 68, fermentaram a passagem de muitos militantes
do movimento estudantil para a luta armada. Outros viriam a passar, na década de
1970, para a guerrilha existencial também chamada desbunde, cujas armas eram as
drogas psicodélicas, e cujo horizonte era não a revolução socialista, mas a
utopia comunitária, ecológica e sexual. As duas linhas se opunham e se
comunicavam de algum modo, como disse Zé Celso em depoimento ao GLOBO. Podem ser
vistas como vertentes de uma mesma crença febril, alimentada na florescente
sociedade de consumo do pós-guerra ocidental, em uma transformação radical das
relações humanas. A terra estava em transe.
Baixeza torpe
No movimento estudantil da faculdade, o Partido Comunista Brasileiro era a
ponta mais à direita do mundo politicamente admitido. O Partidão, no qual
militava clandestinamente meu tio Elson Costa, em meios operários, recusava a
via armada e apostava numa ampla aliança de classes como saída da ditadura, que
iria dos trabalhadores das fábricas e do campo à classe média progressista e à
burguesia nacional, opostos idealmente ao inimigo externo (o imperialismo) e ao
inimigo interno (o latifúndio). Essa concepção clássica da esquerda brasileira,
nacional-populista e aliancista, que ressoava na fé festiva, expressada nos
festivais da canção, de que a ditadura cairia muito em breve graças à força
popular (tantos hinos de protesto disseram isso), se contrapõe à dos grupos que
desacreditaram dessa visão e partiram para a vanguarda da guerrilha urbana e
rural. O alarme da radicalização estética, que ecoava polemicamente a
radicalização política, foi dado pelas canções tropicalistas (como “Divino
maravilhoso” e “É proibido proibir” em ambiente de festival) e rebatido por “Pra
não dizer que não falei das flores”, com a sua cantilena processional de chamado
para a luta (“Vem, vamos embora/ que esperar não é saber”).
Mais do que um pretenso resumo histórico, escrevo para relembrar colegas de
pouco mais de 20 anos que mergulharam tragicamente na luta armada, no redemoinho
da época. Helenira Nazareth, bela jovem negra de fibra e inteligência
inesquecíveis, morta não em combate, como se alega, mas depois de presa no
Araguaia. Suely Yumiko Kanaiama, doce japonesinha cujo olhar de partida ainda
está em meus olhos depois de décadas, e cuja visita de silenciosa despedida,
numa tarde do início dos 70, só compreendi muito depois. Intrigante depoimento
de um militar diz que seu corpo metralhado foi enterrado e mais tarde, quando
exumado por eles mesmos para ser levado para uma vala comum estratégica,
irradiava estranha e intacta brancura. Sinto Diadorim, a donzela guerreira, a
menina de lá. Sobre a admirável Iara Iavelberg acaba de estrear um documentário.
Elson Costa, que se opunha à luta armada, como eu já disse, foi preso em 1975,
barbaramente torturado e desaparecido com métodos parecidos aos que acabam de
ser ostentados pelo torturador Paulo Malhães, em depoimento à Comissão da
Verdade.
A grandeza sacrificial de uns, com tudo que possa ter havido de ilusão nas
suas apostas, e quem somos nós para dizer isto, se choca com a baixeza torpe
assumida pelo outro como programa de vida.
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