quarta-feira, 4 de junho de 2014

Crônica do Dia - Memórias da Ditadura - Artur Xexéo

Memórias da ditadura



Talvez tenha sido um dia depois do golpe. É difícil precisar. Afinal, até hoje ninguém sabe direito em que dia aconteceu o golpe. Sempre soube que foi no dia Primeiro de Abril, mas que, ao contar a história, os militares o anteciparam para o dia 31 de março para que não coincidisse com o Dia da Mentira. Leio agora, entre as muitas reportagens que marcam o 50º aniversário do fato, que foi na madrugada de 2 de abril. Então deve ter sido no dia 3 de abril de 1964, uma sexta-feira, primeiro dia de aula depois do golpe. Quando entrei na sala do colégio em que estudava em São Paulo, estava lá, com letra bonita, toda redondinha, escrito no quadro-negro: “Para uma fortaleza vermelha, só mesmo um Castello Branco.”

A frase nunca fez sentido. O medo de uma “fortaleza vermelha” foi justamente  o que justificou o golpe que levou Castello Branco ao poder. Por isso, nunca achei que ela tinha sido escrita por um dos irmãos maristas que nos davam aula. Aquela bobagem só poderia ter sido de autoria de algum colega de classe. Alguém que tivesse 12, no máximo 14 anos e estava ali cursando o segundo ano ginasial. Alguém que confiava em trocadilho mesmo que ele não fizesse sentido político. O irmão que entrou conosco na sala para a primeira aula da manhã mandou alguém apagar rapidamente o quadro-negro.  Foi apagado. Mas não da minha memória. Ainda hoje, quando me lembro do golpe, dos primeiros dias do golpe, o que me vem à cabeça é aquela sentença desconexa: “Para uma fortaleza vermelha, somente um Castello Branco.”

Na semana seguinte, começou a crise lá em casa. Deixa eu explicar: meu pai era oficial do Exército. Era um tenente-coronel. Não era o que se chamava naqueles tempos de um revolucionário. Ou golpista. Mas era um militar. Respeitava hierarquia. Então, respeitava o que chamávamos naqueles tempos de Revolução. Minha mãe, de alguma maneira, sentia-se ligada a Jango. Uma de suas irmãs, a Dinda, trabalhava com Maria Teresa Goulart. Minha mãe foi antirrevolucionária de primeira hora. De algum lugar, fez saltar uma veia jornalística e passou a escrever, madrugadas adentro, em folhas de papel almaço, artigos contra os militares. Ela os mostrava para meu pai que ficava irritado. Não ficava bem uma mulher de militar expor assim seu pensamento contra a Revolução. Ela resolveu a parada assinando os artigos com um pseudônimo, Madame X, e continuou varando as madrugadas escrevendo, escrevendo, escrevendo e aguardando a volta triunfal de Jango e Brizola. O plano era enviar os textos a algum jornal que já estivesse na oposição. Aqueles artigos nunca foram enviados para jornal algum. De manhã, ela os rasgava, insatisfeita com o resultado, e começa a escrever de novo. Eu tentava fugir das brigas indo ao cinema. Naquela semana, vi “Sherlock de saias”, no cine Jamor, logo ali no Jabaquara, com Margareth Rutheford interpretando a miss Marple de Agatha Christie.

A crise passou rápido. Minha mãe abandonou o talento de articulista político, meu pai voltou à hierarquia e íamos vivendo em paz até que o Golpe me mandou para a Avenida Atlântica. Já disse que minha tia trabalhava com a primeira-dama? Pois então, como acreditava que seu exílio seria rápido, Jango pediu para a Dinda cuidar do apartamento que ele mantinha na Avenida Atlântica. E lá fui eu, durante minhas férias escolares, exilar-me no Edifício Chopin. Tecnicamente, não era o Chopin. Era um dos outros dois prédios anexos ao famoso edifício das festas de réveillon.  Um se chama Prelúdio; o outro, Balada. Acho que o apartamento do Jango ficava no Prelúdio, com vista para a piscina do Copacabana Palace. Não me lembro de muitos resquícios de Jango e Maria Teresa no lugar. Dela, havia um massageador, eletrodoméstico das dondocas da época que caiu em desuso, no quarto principal. Dele, uma biblioteca vistosa. Nunca vi ninguém lendo livro algum daquela biblioteca. Acho que era só decorativa. Daquelas bibliotecas que só têm lombadas, sabe? Isso durou dois ou três anos. Depois, quando Jango percebeu que sua temporada no Uruguai seria bem mais longa do que previa, um cunhado dele _ não, não era o Brizola, era o irmão de Maria Teresa _ pediu o apartamento de volta. E assim acabou nosso exílio na classe alta.

Pouco tempo depois, testemunhei minha tia  recebendo um telefonema do irmão de Maria Teresa. Ele tinha dado por falta de algumas toalhas de banho no apartamento do ex-presidente. A Dinda mandou o cunhado presidencial à merda, e nunca mais tive contato com os Goulart. Para mim, a ditadura risonha e franca acabou ali. Em seguida, a barra pesou. Uma prima querida que vivia na clandestinidade foi presa, entrei em conflito com alguns militares da família e... bem, mas isso é uma outra história que fica para uma outra vez.

Um comentário:

  1. A ditadura militar acabou?

    A ditadura só nos fez mal, matou milhares de inocentes, prendeu outros milhares, as mulheres perderam seus postos na época, eram vistas como objetos, não se investiu em nada, apenas em armamentos e no poder militar. Perdemos 21 anos de investimentos, tanto culturas como na economia e pior: milhares de vidas.
    Acredite ou não, mas ela nos deixou marcas invisíveis nas quais são tão claras que qualquer um pode ver, só não vê quem não quer. O caso do Amarildo é um grande exemplo disso, pois na ditadura muitas pessoas se apresentavam as delegacias, eram torturadas, mortas, e dadas como desaparecidas, o que exatamente ocorreu com Amarildo, que até hoje não sabemos onde ele está, mas sabemos quem o torturou e matou, e estas pessoas ainda não foram julgadas, e pelo andar da carruagem nem vão ser, e se forem, o que vai mudar? A impunidade nos cerca que de tal modo destrutivo só vai fazer com que percamos cada vez mais nossa dignidade de ser brasileiro.
    André Cadinelli Ramos - 901

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