sábado, 20 de setembro de 2014

Crônica do Dia - Lupi e Maria - Joaquim Ferreira dos Santos

Os dois andam sempre juntos. Lupicínio Rodrigues faz centenário neste 16 de setembro. Antonio Maria se foi desta para melhor há 50 anos, num dia 15 de outubro, às três e cinco da madrugada. Por coincidência, a hora que tinha servido de título a uma canção onde ele narrava mais uma cena de ciúme, mais uma briga e mais um arrependimento. O de sempre em suas músicas. “A verdade da vida é ruim”, disse numa delas, como quase todas as outras, de profunda infelicidade. Ele não se iludia com alegrias vãs. O universo conspirava contra.

Lupi e Maria, os reis da dor de cotovelo, sofreram o diabo nas mãos desse tal de amor. Machos sensíveis, não escondiam a decepção. Contavam para todo mundo. O amor não presta. Tinham sofrido, tinham sido outra vez enganados por uma mulher qualquer que se mandou com outro ou simplesmente com ninguém, sozinha, entediada com o que ela também não sabia explicar. Ninguém sabe. O amor trata a todos com a mesma ignorância e falta de consideração. Simplesmente vira as costas. Cai fora. Vai tratar da vida.

Maria, existencialista pernambucano, chorava baixinho, de fracasso em fracasso, o samba canção que na vida lhe era destino. “Ninguém me ama, ninguém me quer” — e ficava por isso mesmo. Maldizia-se solitário num balcão de bar em Copacabana, estimulando a cardiopatia que naquela madrugada, às mesmas três e cinco da canção, o levaria para longe desse inferno.

Estava cansado de saber que o amor era uma maldição a se enfrentar com cuidado, mas vira e mexe lá estava ele atrás de um bem que nunca vinha, como dizia outra de suas letras elegantemente perdedoras. Todo mundo se engana muito, Maria também. Tentou ser feliz. Vedetes do Carlos Machado, moças da sociedade, dançarinas de cabaré, balconistas da Praça do Lido. Todas lhe deram o implacável pé na bunda. No dia seguinte, Maria, romântico incorrigível, fazia uma canção perguntando gentilmente: “As suas mãos, onde estão? Onde está o seu carinho?”.

Já Lupicínio Rodrigues, mulato gaúcho, tinha menos cuidado com as trapaceiras. Era um chifre atrás do outro. A cada traição, ao contrário do gentleman Maria, queria que a infeliz amargasse todo o sofrimento previsto nas escrituras do amor. Corno, sim, manso, jamais. Quase toda a sua obra é devotada a ir à forra dessas rameiras, vagabundas, piranhas e demais ordinárias. Um dia, elas lhe fingiam bom sentimento, logo depois, cachorras num cio eterno, se mandavam com um novo otário.

Lupi queria vingança. Queria mais é que essas canalhas da desventura amorosa rolassem na beira da estrada, sem ter nunca um cantinho para poder descansar. Tinham nascido com o destino da lua, pra todos que vivem na rua. O homem reagia à altura. Guardava rancor. Passava recibo.

As últimas palavras escritas por Antonio Maria, numa crônica sobre um almoço solitário no restaurante Westfalia, na Rua México, foram “só, só, só”, e evidentemente falavam de si próprio. Era amante de bons modos, reprimia o instinto assassino a quem lhe fazia mal. Não à toa, enfartou. Lupicínio preferia palavras como “covardia”, “judiaria” e “ingratidão” para descrever o que sofria nas mãos das vadias. Numa de suas músicas mais típicas, descreveu ter no peito uma caixa de ódio, um coração que não quer perdoar. Era pão-pão, queijo-queijo. “Eu estou lhe mostrando a porta da rua, pra que você saia sem eu lhe bater” — disse em outra canção. Zero de romance, zero de beneplácito com quem lhe bagunçava o coreto. Ao pé na bunda reagia com a porta na cara. Danem-se todas.

Esses dois gênios da canção amorosa estão sendo lembrados agora, centenário de nascimento de um, cinquentinha da morte do outro, num momento em que quase não há mais canção amorosa brasileira — e, quando há, ninguém mais perde no jogo da paixão. Somos todos funkeiros comedores das cachorras mais suculentas, príncipes vitoriosos que sustentam suas coroas sem a galhofa pública dos chifres. Ninguém abandona ninguém. Troca-se de status no perfil do Facebook, compartilha-se a existência, e vida que segue — todos imbuídos da certeza de que o amor deixa muito a desejar. Acho que Lupi gostaria.

Ele não tinha nada contra quem conseguisse ser feliz. Mas, coitado, viveu o amor antigo, a armadilha de um lotação dirigido por pessoas com nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração. Foi atropelado várias vezes pela frieza de suas motoristas. Numa outra letra, uma mulher o trocou pelo médico contratado para lhe tirar os bichos-de-pé.

Definitivamente, amor e bicho-de-pé são doenças de um país rural. Passaram. Ficaram as músicas, das quais, graças a Deus, jamais nos curamos. Ficou também a lição do cadáver de Antonio Maria exposto na calçada suja de Copacabana, quatro meses depois de o compositor ser abandonado pela grande mulher da sua vida. O amor é um samba-canção que deixa muito a soluçar.



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