A maioria do país pode ser cristã. Mas o Estado não é
O Brasil já teve um presidente evangélico. Chamava-se Ernesto Geisel. Nascido numa família de imigrantes alemães, ele jamais abjurou as crenças luteranas. Nunca fez praça delas antes, durante nem depois de ocupar o Planalto. Ser protestante lhe era um detalhe íntimo e ínfimo. Formado no positivismo, acreditava de fato no Estado laico.
O general queria tirar as forças armadas da política. Com isso, pavimentaria a passagem da ditadura à democracia sem abalar o status quo e a concentração de renda. Quando julgou necessário, arrochou salários, caiu de pau em dissidentes e peitou seus pares de alto coturno. Geisel não precisava do voto cristão, até porque voto livre não havia. Quando o seu laicismo foi posto à prova, porém, não hesitou: sancionou a lei que autorizava o divórcio.
Os evangélicos já vinham adquirindo peso na sociedade. Quem chamava atenção para eles era o cientista político Francisco Weffort. Certa vez, na segunda quadra dos anos 1970, durante uma campanha em defesa de sindicalistas poloneses acossados pelo stalinismo, topamos com um grupo de crentes a caminho do culto. Fizemos o nosso proselitismo, eles escutaram com polidez (e ouvidos de mercador), e nos separamos numa encruzilhada de um bairro popular.
Weffort comentou que o crescimento dos evangélicos tinha lá o seu lado bom. Apontou para as sardinhas em lata dos ônibus. Para os casebres encimados por caixas d’água. Para a procissão de gente andrajosa e cabisbaixa que voltava do trabalho. Disse que aquele povo todo viera do Nordeste. Sem terra e meios para cultivar, chegava aos magotes às periferias das metrópoles. Buscava emprego, educação, saúde — vida.
E topava com um vale-tudo que pouco tinha a ver com as comunidades e os valores deixados para trás. A adaptação à dilacerada sociedade urbana era penosa. As mulheres tinham que procurar serviço. Homens bebiam e batiam nos filhos. As tentações seculares do consumo seduziam adolescentes. O emprego era longe dos cafundós, e o salário, mirrado. O Estado só se ocupava dos bem assentados. A cidade grande significava perdição, desenraizamento.
A igreja católica bem que buscava intervir na tumultuada paisagem metropolitana. Mas eram raros os fiéis militantes que se aventuravam nos arrabaldes. Os que iam a eles se guiavam pela pastoral de D. Paulo. E o cardeal Arns aplicava a palavra do Concílio Vaticano II: opção preferencial pelos pobres, o que se confundia no Brasil de então com a resistência à ditadura. As comunidades eclesiais de base não davam conta do explosivo mercado de almas perdidas.
Os evangélicos prestavam assistência espiritual e material aos migrantes, disse Weffort. Botavam uma Bíblia na mão das mulheres e um paletó preto no ombro dos homens. Proibiam a bebida e organizavam grupos de autoajuda. No raciocínio do cientista político de esquerda, a palavra “identidade” era central. A religião ajudava os pobres vindos do campo a se enraizar nas metrópoles, dava-lhes uma nova identidade. Ainda que a alienação, a miséria espiritual e o atraso viessem junto com a conversão, Weffort achava o saldo geral positivo.
A identidade religiosa é agora evidente nas eleições. As comunidades eclesiais de base, que ajudaram a construir o Partido dos Trabalhadores, foram dissolvidas pela cúpula católica no período que combinou o pontificado de João Paulo II e a redemocratização. Já a miríade de designações evangélicas não deu preferência a nenhum partido; vota sem distinções em quem os auxilia a cevar o rebanho. Conquanto a maioria dos brasileiros se diga católica, a igreja de Roma vem perdendo fiéis para as evangélicas, que se expandem rapidamente.
A expansão ocorre porque ateus e agnósticos são oportunistas que escondem intramuros o que realmente pensam das religiões. Daí se explica a ladainha: o paparicar de prelados e pastores, o ar compungido que os candidatos adotam em templos, a peregrinação de políticos a Aparecida do Norte e ao Templo de Salomão, o apreço a tudo o que vem das sacristias. Eles argumentam que os salamaleques eclesiásticos denotam respeito à fé popular.
Longe disso. Não há nada de simbólico quando candidatos de renome engolem a seco a pauta retrógrada de religiosos, que consideram coisas do diabo o aborto, o casamento gay e a política de repressão às drogas. No comezinho aspecto material, os partidos majoritários isentam as igrejas de impostos; entregam emissoras de rádio e televisão a elas; destinam verbas a escolas confessionais; permitem que a cruz seja ostentada no plenário do Supremo Tribunal Federal.
A maioria do país pode ser cristã. Mas o Estado não é. Das guerras de religião na Europa de ontem à jihad de hoje no Oriente Médio, nada de bom ocorre quando se se mistura uma coisa e outra.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/pelas-barbas-do-profeta-1-13895203#ixzz3EZMCJhZq
Nenhum comentário:
Postar um comentário