sábado, 27 de setembro de 2014

Crônicas do Dia - O que é imoral ? - Ruth de Aquino

É imoral trazer ao mundo um filho com síndrome de Down, se você tem a escolha. A mulher deveria abortar e tentar novamente. Quem deu essas declarações incendiárias na semana passada foi o biólogo britânico Richard Dawkins, ateu assumido e um dos maiores estudiosos da evolução das espécies. Produziu um “big bang” de ressentimentos, ódios e mágoas. Compreensível.


Dawkins não falou isso do nada. Era uma resposta a uma leitora grávida, que o consultou por estar com um “dilema ético real”,  ao saber que seu feto era Down. Em seu perfil no Twitter com mais de 1 milhão de seguidores, Dawkins disse exatamente o que pensava e o que faria se fosse ela. Não mediu consequências. O frenesi foi tamanho que ele pediu desculpas. Lamentou a escassez dos 140 caracteres do Twitter e escreveu um texto mais longo – nem por isso menos polêmico para quem considera aborto um crime. Eis um trecho editado, com alguns cortes:

– Tendo a chance de fazer um aborto cedo ou deliberadamente trazer a criança com Down ao mundo, acho que a escolha moral e sensata seria abortar. E, de fato, isso é o que a grande maioria das mulheres faz, nos Estados Unidos e especialmente na Europa. Concordo que essa opinião pessoal é controversa e precisa ser mais discutida, possivelmente para ser afastada. Em todo caso, você provavelmente estaria se condenando como mãe (ou como casal) a uma vida de cuidar de um adulto com necessidades de criança. Seu filho provavelmente terá uma expectativa de vida curta, mas, se ele viver mais que você, você provavelmente terá de se preocupar com quem cuidará dele depois que você se for.

Discordo de Dawkins quando tacha de “imoral” dar à luz um filho Down. É forte e injusto com as famílias que lutam contra o preconceito e se desdobram em amor. É ofensivo aos filhos Down. Tê-los e cuidar deles é uma opção dos pais, dolorosa e difícil para a maioria. Muitos, por uma questão de religião ou formação, nem cogitam aborto. Não há alternativa.

Levar a gravidez até o fim é, para milhares de famílias, um compromisso moral incondicional, mesmo quando o feto é anencéfalo, mesmo quando não há possibilidade de vida para o bebê, mesmo quando a gravidez resulta de estupro, mesmo quando há risco de morte para a mãe. São os que consideram aborto caso de polícia. Desses, discordo frontalmente. São fundamentalistas, radicais. Mas não imorais.

Também discordo de quem acha a opinião de Dawkins “imoral” e o condena à fogueira da Inquisição. Ele tem todo o direito de defender casais que decidem abortar quando uma síndrome é detectada durante uma gravidez. Ou seriam esses pais “covardes”, “criminosos” e “imorais”, na opinião de tantos outros, inconformados com as diferenças de valores?

Em seu texto maior, Dawkins diz: “Nunca sonharia em tentar impor minha visão a você ou a qualquer outra pessoa”. Visões de foro íntimo não são – ou não deveriam ser – impostas por cientistas, padres, presidentes ou quem quer que seja. A imposição, nesse caso, violenta o livre-arbítrio.

O que é “imoral”? Poucas palavras carregam tanta subjetividade, força e nuances. Poucas questões são tão pantanosas. Embora seu sentido, em sociedades dominadas pela Igreja, lembre a indecência e o pecado, o significado é amplo e cultural. O termo tem origem no latim mores, que significa “costumes”. Bons costumes e maus costumes dependem de onde e quando você nasceu, onde foi educado, quem são seus pais, onde vive, com quem se relaciona, qual é sua fé, qual é sua ideologia.

Os costumes dependem das convenções e da consciência. Dos valores de certo e errado – e até das transgressões aceitáveis, como exercício de liberdade e prazer. Moral e ética se confundem em muitos casos. Na política,  fica muito clara essa associação. O ato de um político pode ser legal e imoral.

A discussão sobre a moral numa sociedade fica mais objetiva quando se escolhe a base de argumento: paixão ou razão? Prefiro a escola da razão. Nessa linha, considero imoral um governo que condena à prisão mulheres que decidem abortar. Não importa o motivo. Não se defende aqui o aborto em si, mas o direito de uma mulher interromper a gravidez sem correr o risco de morrer ou de ser algemada.

É imoral que um país empurre grávidas pobres e sem instrução a um aborto clandestino e perigoso ou a uma maternidade indesejada – ao mesmo tempo que permite informalmente a mulheres ricas e instruídas o direito de abortar sem risco, em clínicas com endereço conhecido. Interrompem uma gravidez acidental pelo desejo de não ser mãe jamais ou naquele momento, por circunstâncias pessoais e intransferíveis. Nenhum candidato à Presidência, católico, evangélico ou agnóstico, ousa tocar nesse assunto. A hipocrisia é imoral.

Um comentário:

  1. Fazer um aborto no brasil ainda é crime, como se você estivesse matando alguém mesmo se este alguém nem estaria “vivo”.
    Acho que cada pessoa tem seu direito de escolher, mas não precisa ficar julgando o outro, pelo o que acredita. Como no texto, “moral” vem de costumes, que vem de cultura, a qual cada um tem a sua. Dependendo da cultura pode ser certo para mim e errado para você.
    Na minha opinião, estimular um aborto a um feto já morto pode ser uma coisa normal, mas uma criança com síndrome de Down é tirar o direito da vida da criança porque hoje, com o nosso desenvolvimento, pessoas com a síndrome consegue viver muito bem, quase com uma pessoa normal.
    Giulia Mancini, 802

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