sábado, 27 de setembro de 2014

Crônica do Dia - Por que só Rafael ? - Thiago Melo e Carlos Eduardo Martins

Judiciário não relativizou o depoimento dos PMs

Rafael Braga Vieira, de 26 anos, morador de rua, catador de latinhas, foi condenado a quatro anos e oito meses de prisão por porte de aparato incendiário ou explosivo. Trazia uma garrafa plástica de desinfetante e outra de água sanitária. Foi preso em flagrante por policiais militares na maior manifestação da história do Rio, em 20 de junho de 2013, denunciado pelo Ministério Público, e condenado em primeira instância. Teve negado o recurso da defesa. Não houve falha no sistema. Pelo contrário, tudo funcionou de forma linear e coerente, com o resultado esperado: mais um preto pobre atrás das grades.


As ruas protestam contra a violência do Estado, as execuções de Amarildo, do dançarino DG e de Claudia, a prisão do ator Vinícius Romão. Denunciam provas forjadas contra manifestantes, flagradas por câmeras de midiativistas (como nos casos dos paulistas Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi, presos por 45 dias com uma garrafa de Nescau e um frasco de fixador de corantes). Mas, no caso de Rafael, o Judiciário não relativizou o depoimento dos PMs que o acusaram do porte de coquetéis molotov. Vigora no Tribunal de Justiça do Rio a inconstitucional Súmula 70, que orienta os julgadores a condenar um cidadão com base apenas no relato policial: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.” Haja fé pública, e cega.

Dos frascos apreendidos com Rafael, a perícia técnica constatou que “uma das garrafas possuía mínima aptidão/ínfima possibilidade para funcionar como coquetel molotov”. Não interessa que o acusado tenha alegado que desconhecia a existência de substância inflamável no frasco. Não importa ter negado que os recipientes estivessem vedados com panos quando apreendidos.

O morador de rua afirmou que usava os produtos para higienizar a calçada onde dormia ou para lavar para-brisas. O Judiciário prefere se agarrar, no entanto, à improvável hipótese do “lumpen black bloc”. Adota-se a bizarra tese criminal de que possuir substância livremente comercializada configura crime de porte de artefato explosivo. Mais um caso que confirma a perversa seletividade da Justiça criminal, que mantém na cadeia maioria esmagadora de jovens negros, pobres e de baixa escolaridade.

Poderia ser só mais um caso de recolhimento involuntário de população em situação de rua. Mas Rafael estava numa manifestação que reuniu mais de um milhão de pessoas, embora não participasse de fato do ato. Nas palavras do juiz, a condenação se deu por considerá-lo parte de uma “minoria, quase inexpressiva — se comparada com o restante de manifestantes — imbuída única e exclusivamente da realização de atos de vandalismo, tendentes a desacreditar e desmerecer um debate democrático”.

É emblemático que, de todos os manifestantes presos, um morador de rua tenha restado como único condenado dos protestos. Prova máxima de que a rua tem razão em sua luta por direitos, contra a desigualdade e a violência do Estado. A rua não abandonará Rafael.

Thiago Melo e Carlos Eduardo Martins são advogados e diretores do Instituto de Defensores de Direitos Humanos



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