Não termina nunca o festival de horror e mau gosto que envolve numa luz soturna o olhar aéreo e vítreo do ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes. No final de abril, Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, recebeu a pena de 22 anos de prisão pela morte e pela ocultação do cadáver de Eliza Samudio. Agora, em maio, o julgamento de outros dois envolvidos, Elenilson da Silva e Wemerson Marques, vulgo Coxinha, foi adiado. Amigos de Bruno, os dois são acusados de sequestrar e manter em cárcere privado o filho de Eliza. O júri popular que os julgaria, antes agendado para 15 de maio, foi, na semana passada, remarcado para 28 de agosto. Quanto mais se estende, mais o infindável processo revela cruezas indizíveis. O semblante de Bruno, com aquele ar de quem se divorciou da razão, vai virando um signo do mal ou, pior ainda, do lixo humano. Antes uma celebridade, ele se reduziu a um dejeto de si mesmo. Representa o que desejamos negar, esconder, cuspir fora, esquecer, apagar. Tão vil, tão desqualificado, tão imundo, não surpreende que tivesse uma amante.
Restasse ao goleiro Bruno um grão que fosse de prestígio, ninguém diria que ele tinha amante. Diriam, em sílabas polidas, cúmplices, submissas, que ele tinha uma... namorada. Sim, sim, ele era casado com outra quando, em 2009, se deitou com a jovem Eliza. Foi, tecnicamente, o que se chama de um caso extraconjugal. Mesmo assim, não importaria, não faria diferença.
Eliza Samudio, morena jambo de 24 anos, sorriso quente, saboneteiras amplas e delicadas, cumpriria com perfeição o papel de namorada de famoso. Mas Bruno não é um famoso. Ele é a escória. Logo, hoje, nas páginas policiais de todo lugar, Eliza é chamada de amante. Para gentinha como ela - e ele está mais que de bom tamanho.
Ninguém aqui abraçará a defesa de Bruno, o arqueiro caído. Ninguém aqui enaltecerá a biografia de Eliza, uma mulher que lutou como pôde, viveu como desejou e morreu como nenhum ser humano merece morrer. Esta coluna não se ocupa de emitir juízo moral sobre ele ou sobre ela. O ponto é outro. É preciso observar agora, com todas as letras, que esse modo tão brasileiro de chamar de amantes as namoradas dos párias e de namoradas as amantes dos de cima é profunda e escancaradamente preconceituoso.
Não é de hoje. Há dez anos, no dia 2 de março de 2003, o então ombudsman da Folha de S.Paulo, Bernardo Ajzenberg, publicou em sua coluna dominical um texto que merece ser lembrado. Sob o título de "Grampo e preconceito" o artigo tratava das escutas telefônicas ilegais, na Bahia, que, na ocasião, renderam um desses escândalos estrondosos depois esquecidos. O nome do senador Antônio Carlos Magalhães surgia como um dos suspeitos de ter encomendado o grampo. Entre as muitas perguntas que o caso despertava, o ombudsman ficou encafifado com uma em particular:
- Por que a advogada Adriana Barreto, uma das pessoas grampeadas, é tratada pela imprensa como ex-na-morada e não como ex-amante do senador Antônio Carlos Magalhães?
Registre-se que ela admitira a relação amorosa com ACM - e ele, casado, jamais contestou a versão. Claro: a palavra namorada entrou em cena. Só deu ela. ACM era influente, poderoso ou, como alguns gostam de dizer, importante, muito importante, importante demais para ter amantes.
Mais recentemente, o mesmo tratamento foi dispensado ao senador Renan Calheiros. Em 2007, estourou outro desses escândalos de temporada, o Renanga-te. Os jornais noticiavam freneticamente que a jornalista Monica Veloso, depois de um envolvimento amoroso com Calheiros, com quem tivera uma filha, recebia pensão não do senador, mas de uma empreiteira. Naquele tempo, como agora, o senador presidia o Senado. Apesar do desgaste, tinha autoridade, notoriedade, fama. Logo, não teve amante. Teve, como os melhores homens das melhores famílias às vezes têm, uma singela namorada.
Os exemplos não param. Se você procurar bem, encontrará até ex-presidentes da República que desfilaram com namoradas. Algumas gostavam de se apresentar a terceiros, orgulhosamente, como namoradas do tal. Botando banca. O curioso - e triste - é que a imprensa vai na onda e reforça o uso preconceituoso dos dois termos: amante para a ralé, namorada para os abastados.
Hoje, o goleiro Bruno encarna a ralé. Eliza, a mulher bela e destroçada que o beijou, ainda paga por isso, mesmo depois de morta. Ela foi a vítima - que não tem descanso. Essa palavra implacável, amante, procura fazer dela uma culpada.
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP